27 junho 2011

al berto / quinta de santa catarina

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3.

     pouco mais há a dizer, caminho largando os últimos resíduos da memória. fragmentos de noite escritos com o coração a pressentir as catástrofes do mundo. a grande solidão é um lugar branco povoado de mitos, de tristezas e de alegria. mas estou quase sempre triste. algumas fotografias revelam-me que noutros lugares já estivera triste, por exemplo, no fundo deste poço vi inclinar-se a sombra adolescente que fui. água lunar, canaviais, luminosos escaravelhos. este sol queimando a pele das plantas. caminho pelos textos e reparo em tudo isto. o que começo deixo inacabado, como deixarei a vida, tenho a certeza, inacabada. o mundo pertenceu-me, a memória revela-me essa herança, esse bem. hoje, apenas sinto o vento reacender feridas, nada possuo, nem sequer o sofrimento. outra memória vai tomando forma, assusta-me. ainda quase nada aconteceu e já envelheci tanto. um jogo de estilhaços é tudo o que possuo, a memória que vem ainda não tem a dor dentro dela. as fotografias e os textos, teu rosto, poderiam projectar-me para um futuro mais feliz, ou contarem-me os desastres dos recomeçados regressos. mas, quando mais tarde conseguir reparar que a vida vibrou em mim, um instante, terei a certeza de que nada daquilo me pertenceu. nem mesmo a vida, nenhuma morte, na mesma posição, reclinado sobre meu frágil corpo, recomeço a escrever, estou de novo ocupado em esquecer-me. a escrita é precária morada para o vaguear do coração. resta-me a perturbação de ter atravessado os dias, humildemente, sem queixumes. anoitece ou amanhece, tanto faz.





al berto
o medo
assírio & alvim
1997
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20 junho 2011

josé ángel cilleruelo / canção triste de cabaré

 
 
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Muitas vezes me viam passear
Junto do rio e olhar a cidade
Com tristeza. Apenas essas águas,
Apenas um ar esverdeado nos dias limpos
Substituía o tremor de uns olhos
Ao cobrirem-se entre as mãos.
Regressava de eléctrico ao escurecer
Alheado por montras que esvaziam
Iluminadas. Descemos
Em silêncio os cinco eternos patamares,
Voltaste-te ao chegar à entrada,
nunca mais esquecerei essas palavras:
Olha, rapaz, eu não acredito
no amor, mas apenas nos corpos.
 




josé ángel cilleruelo
trípticos espanhóis 2º
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000
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17 junho 2011

natália correia / autogénese

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Nascitura estava
sem faca nos dentes
cómoda e impura
de não ter vontade
de bater nas gentes.

Nasce-se em setúbal
nasce-se em pequim
eu sou do açores
(relativamente
naquilo que tenho
de basalto e flores)
mas não é assim:
a gente só nasce
quando somos nós
que temos as dores.

Pragas e castigos
foram-me gerando
por trás dos postigos
e fórceps de raiva
me arrancaram toda
em sangue de mim.

Nascitura estava
sorria e jantava
e um beijo me deste
tu Pedro ou Silvestre
turvo namorado
do verão ou de outono
hibernal afecto
casca azul do sono
sem unhas do feto.
 
Eu nasci das balas
eu cresci das setas
que em prendas de sala
me foram jogando
os mulheres poetas
eu nasci dos seios
dores que me cresceram
pomos do ciúme
dos que os não morderam
 
nasci de me verem
sempre de soslaio
de eu dizer em junho
e eles em maio
de ser como eles
as vezes por fora
mas nunca por dentro
perfil de uma estátua
que não sou de frente.
 
Nascitura estava
e mais que imperfeita
de ser sorte ou dado
que qualquer mão deita.
 
Eu nasci de haver
os bairros da lata
do dedo que escapa
dos sapatos rotos
da fome que mata
o que quer nascer
e que o sábio guarda
em frascos de abortos
 
eu nasci de ver
cheirar e ouvir
dum odor a mortos
(judeus enlatados
para caberem mais
mas desinfectados)
pelas chaminés
nazis a sair
de te ver passar
de me despedir
de teus olhos tristes
como se existisses.
 
Nascitura estava
tom de rosa pulcra
eu me declinava
vésper em latim
impura de todos
gostarem de mim.
 




natália correia
edoi lelia doura
antologia das vozes comunicantes
da poesia moderna portuguesa
assírio & alvim
1985
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15 junho 2011

eugénio de andrade / o peso da sombra

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Inventarei o dia onde contigo
e o outono corra pelas ruas.
A luz que pisamos é tão perfeita
que não pode morrer, como não morre
o brilho do olhar que te viu despir.
 



eugénio de andrade
poesia
o peso da sombra
fundação eugénio de andrade
2000
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13 junho 2011

fernando pessoa / livro do desassossego

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71
 
Pobres diabos sempre com fome — ou com fome de almoço, ou com fome de celebridade, ou com fome das sobremesas da vida. Quem os ouve, e os não conhece, julga estar escutando os mestres de Napoleão e os instrutores de Shakespeare.

Há os que vencem no amor, há os que vencem na política, há os que vencem na arte. Os primeiros têm a vantagem da narrativa, pois se pode vencer largamente no amor sem haver conhecimento celebre do que sucedeu. Ë certo que, ao ouvir contar a qualquer d’esses indivíduos as suas Marathonas sexuais, uma vaga suspeita nos invade, pela altura do sétimo desfloramento. Os que são amantes de senhoras de título, ou muito conhecidas (são, aliás, quasi todos), fazem um tal gasto de condessas que uma estatística das suas conquistas não deixaria sérias e comedidas nem as bisavós dos títulos presentes.

Outros especializam no conflito físico, e mataram os campeões de box da Europa numa noite de pândega, á esquina do Chiado. Uns são influentes junto de todos os ministros de todos os ministérios, e estes são aqueles de que menos há que duvidar, pois não repugna.
Uns são grandes sádicos, outros são grandes pederastas, outros confessam, com uma tristeza de voz alta, que são brutais com mulheres. Trouxeram-nas ali, a chicote, pelos caminhos da vida. No fim ficam a dever o café.

Há os poetas, há os (…)

Não conheço melhor cura para toda esta enxurrada de sombras que o conhecimento direito da vida humana corrente, na sua realidade comercial, por exemplo, como a que surge no escritório da Rua dos Douradores. Com que alívio eu volvia daquele manicómio de títeres para a presença real do Moreira, meu chefe, guarda-livros autêntico e sabedor, mal vestido e mal tratado, mas, o que nenhum dos outros conseguia ser, o que se chama um homem...




fernando pessoa
livro do desassossego
por bernardo soares
ática
1982
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10 junho 2011

josé de almada negreiros / a cena do ódio

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(…)

Eu creio na transmigração das almas
por isto de Eu viver aqui em Portugal.
Mas eu não me lembro o mal que fiz
durante o Meu avatar de burguês.
Oh! Se eu soubesse que o Inferno
não era como os padres mo diziam:
uma fornalha de nunca se morrer...
mas sim um Jardim da Europa
à beira-mar plantado...
Eu teria tido certamente mais juízo,
teria sido até o mártir São Sebastião!
E inda há quem faça propaganda disto:
a pátria onde Camões morreu de fome
e onde todos enchem a barriga de Camões!
Se ao menos isto tudo se passasse
numa Terra de mulheres bonitas!
Mas as mulheres portuguesas
são a minha impotência!
 
(…)




josé de almada negreiros
excerto de “a cena do ódio”
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08 junho 2011

douglas coupland / geração x

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(…)

«Tornei-me assexual e sentia o corpo virado do avesso – coberto de gelo, carbono e contraplacado como os mini centros comerciais, as moagens e as refinarias de petróleo abandonadas de Tonawanda e das cataratas de Niagara. Os sinais sexuais tornaram-se omnipresentes e eram repulsivos. O contacto visual acidental com marçanos de 7-Eleven revelaram-se carregados de significado vil. Todas as trocas de olhares com estranhos se tornaram na muda pergunta “É você o estranho que me vem salvar?” Faminto de afeição, apavorado pelo abandono, comecei a pensar se o sexo não passaria realmente de uma desculpa para olhar mais fundo nos olhos de outro ser humano.


«Comecei a achar a humanidade repelente, reduzindo-a a hormonas, flancos, protuberâncias, secreções e constrangedores fedores a metano. Nesta fase, pelo menos, senti que não tinha hipótese de continuar a ser o consumidor modelo ideal. Se, de regresso a Toronto, tentei viver das duas maneiras considerando-me livre e criativo ao mesmo tempo que fazia de bananas mandrião na empresa, também paguei o meu preço.


«Mas aquilo que realmente me apanhou foi o aspecto que os jovens podem ter aos nossos olhos, curiosos, mas sem rasto de fome do corpo. Adolescentes, até mais novos, que eu via felizes de fazer inveja durante as minhas jornadas agorofóbicas pelos centros comerciais de Buffalo ainda abertos. Esse olhar sem malícia tinha-se varrido para sempre de mim, bem o sentia, e convenci-me de que iria passar os quarenta anos seguintes no vazio, agindo por movimentos vitais enquanto ouvia o escárnio do barulho das maracas do pó de jovens múmias a bater dentro de mim.


«Okay, okay. Todos temos as nossas crises, senão, suponho, não seríamos completos. Não sei contar quantas pessoas conheço que se gabam de ter tido muito cedo a sua crise de meia-idade. Mas chega invariavelmente um certo ponto em que nos falta a juventude; falta-nos a faculdade; falta-nos a Mamã e o Papá. Por mim, nunca mais encontrei refúgio nas manhãs de Domingo passadas em quartos desarrumados, rugosos por causa do isolamento de vidro, a ouvir a voz do Mel Blanc na televisão, a respirar estupidamente vapores de xénon dos blocos de escória, a petiscar comprimidos de mascar de vitamina C e a atormentar as Barbies da minha irmã.

«Mas a minha crise não era apenas o fracasso da juventude, era também um fracasso de classe e de sexo e do futuro e ainda não sei de que mais. Comecei a ver este mundo como um sítio onde os cidadãos ficam especados a olhar, por exemplo, para a Vénus de Milo sem braços e a fantasiar sobre sexos amputados ou a aplicar por direito próprio uma parra à estátua de David, não sem que antes lhe tenham partido a piça para levar de recordação. Todos os acontecimentos se tornam presságios; perdi a capacidade de tomar seja o que for literalmente.

«Portanto, a questão toda era que eu necessitava de uma folha em branco e não tinha quem a lesse. Precisava de sair umas paragens adiante. A minha vida tinha-se tornado uma série de incidentes assustadores que simplesmente não se encadeavam para formarem um livro interessante e, Meu Deus, envelhecemos tão depressa! O tempo estava (e está) a fugir. Por isso pisguei-me para onde o tempo é quente e seco e os cigarros baratos. Como tu e a Claire. E cá estou.»


douglas coupland
geração X
trad. telma costa
teorema
1994

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07 junho 2011

fiama hasse pais brandão / da radioterapia

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A mais radical solidão,
eu, com todo o meu corpo apenas,
pela primeira vez. Eu, que sempre
levava comigo somente os olhos, primeiro,
depois, o ouvido e o tacto. Ali,
naquela câmara do absoluto, do vazio,
do amplo – amplidão que multiplicava o vazio,
atenta enfim, a um cheiro ácido,
do grande Universo invisível.
 



fiama hasse pais brandão
as fábulas
quasi
2002
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06 junho 2011

ruy cinatti / vigília

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Paralelamente sigo dois caminhos
Abstracto na visão de um céu profundo.
Nem um nem outro me serve, nem aquele
Destino que se insinua
Com voz semelhante à minha. O melhor do mundo,
Está por descobrir. Não segue a lua
Nem o perfil da proa. Vai direito
Ao vago, incerto, misterioso
Bater das velas sinalado e oculto.

Quero-me mais dentro de mim, mais desumano
Em comunhão suprema, surto e alado
Nas aragens nocturnas que desdobram as vagas,
Chamam dorsos de peixe à tona da água
E precipitam asas na esteira de luz.
Da vida nada se leva senão a melhoria
De um paraíso sonhado e procurado
Com ternura, coragem e espírito sereno.

Doçura luminosa de um olhar. Ameno
Brincar de almas verticais em pleno
Sol de alvorada que descerra as pálpebras.




ruy cinatti
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001
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30 maio 2011

gil t. sousa / marés

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Os dias sucedem-se como marés, espraiam-se como portas nesse palácio absurdo que é a vida. Cada uma encerra a surpresa do futuro ou a agressão violenta do passado, numa desordem que nos domina sempre na razão inversa da vontade e do desejo.

Há pontos no tempo que são como lupas apontadas à minúcia desse caos. E é por aí que a loucura ronda e nos seduz ao limiar dos abismos, numa espécie de sonolência inocente onde todos os pensamentos concorrem para a realização desse vitral que é a alma: domínio de todas as sombras e de todos os brilhos.




gil t. sousa
falso lugar
2004
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24 maio 2011

agustina bessa-luís / inteligência nacional

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À medida que a angústia aumenta numa sociedade, vemos que os cargos estranhos são criados. Aparece um sem número de profissões e de ocupações paralelas que absorvem a consciência e a maturação efectiva. Portugal é, de certa maneira, um campo de ensaio onde se testa o progresso da tendência a ser-se mais consciente. Por um lado, a maturação afectiva que depende da força moral personalizada e não projectada pelo preconceito da organização social. Por outro, a soberania duma razão ainda fundada no direito que foi notabilizado pelas evidências fictícias e as ideologias em função do poder. Tudo isto exige muito mais que simples pensamentos estereotipados ou convenções nulas que operam estatutos deficientes. A sociedade não funciona como tal, pois os modelos de comportamento recíproco entre indivíduos ou grupos estão completamente desarmados do seu comportamento normativo. No caso português, é flagrante: o passado parece-nos mais fácil viagem do que admitirmos conceitos novos e um empenhamento da alma colectiva noutros caminhos e instituições. É pena. Onde estão os mágicos do meu país estranho que não vêm magicar? Deitando às ortigas a angústia de culpabilidade que nos está a roer a pele, o osso e os vícios. Pelo que o diabo deserta, e a inteligência emigrará com ele.



agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008
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17 maio 2011

julio cortázar / distribuição do tempo

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Cada vez são mais os que crêem menos
Nas coisas que preencheram as nossas vidas,
Os mais altos, os incontestáveis valores de Platão ou Goethe,
O verbo, a pomba sobre a arca da História,
A sobrevivência da obra, a descendência e as heranças.

Nem por isso caem do céu do neófito
Na ciência que expõe máquinas na lua;
Na verdade, tanto faz que o doutor Barnard
Faça transplantes do coração
Era preferível mil vezes que a felicidade de cada um
Fosse o exacto, o necessário reflexo da vida
Até que o coração insubstituível pudesse dizer simplesmente basta.

Cada vez são mais os que crêem menos
Na utilização do humanismo
Para o nirvana estereofónico
De mandarins e estetas.

Sem que isto queira significar
Que quando houver um instante de inspiração
Não se leia Rilke, Verlaine ou Platão,

Ou se escute os nítidos clarins,
Ou se vislumbre os trémulos anjos
De Angélico.





julio cortázar
trad. jorge henrique bastos
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001

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15 maio 2011

isidore ducasse conde de lautréamont / cantos de maldoror

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Durante toda a minha vida vi os homens, de ombros estreitos, fazerem, sem uma única excepção, actos estúpidos e numerosos, embrutecerem os seus semelhantes e perverterem as almas por todos os meios. Aos motivos das suas acções chamam glória. Ao ver estes espectáculos, quis rir como os outros; mas isso, estranha imitação, era impossível. Peguei num canivete, cuja lâmina tinha um afiado gume, e rasguei a carne nos sítios onde os lábios se reúnem. Por um momento julguei ter atingido o objectivo. Contemplei num espelho esta boca ferida por minha própria vontade! Era um erro! O sangue que abundantemente corria dos dois ferimentos não deixava aliás distinguir bem se era realmente aquele o riso dos outros. Mas, após alguns instantes de comparação, vi claramente que o meu riso não se assemelhava ao dos humanos, que eu não ria. Vi os homens, de cabeça feia e terríveis olhos enterrados na órbita escura, ultrapassarem a dureza do rochedo, a rigidez do aço fundido, a crueldade do tubarão, a insolência da juventude, a fúria insane dos criminosos, as traições do hipócrita, os comediantes mais extraordinários, a força de carácter dos padres, e os seres mais escondidos por fora, os mais frios dos mundos e do céu; vi-os cansar os moralistas para descobrirem o seu coração e fazerem recair do alto sobre eles a cólera implacável. Vi-os todos ao mesmo tempo: ora, com o mais robusto punho erguido para o céu, como o de uma criança, já perversa, contra a mãe, provavelmente incitados por algum espírito do inferno, com os olhos carregados de um remorso agudo mas cheio de ódio, num silêncio glacial, sem ousarem emitir as meditações vastas e ingratas que abrigavam no peito, tão plenas de injustiça e de horror elas eram, e entristecerem de compaixão o Deus de misericórdia; ora, em cada momento do dia, desde o começo da infância até ao fim da velhice, espalhando inacreditáveis anátemas sem senso comum contra tudo o que respira, contra si próprios e contra a Providência, prostituírem as mulheres e as crianças e desonrarem assim as partes do corpo consagradas ao pudor. Então, os mares erguem as suas águas, engolem as tábuas nos seus abismos; os furacões e os tremores de terra derrubam as casas; a peste e as diversas doenças dizimam as famílias em oração. Mas os homens não dão por isso. Também os vi a corarem e empalidecerem de vergonha pelo seu comportamento sobre a terra; raramente. Tempestades, irmãs dos furacões; firmamento azulado, cuja beleza não admito; mar hipócrita, imagem do meu coração; terra, de misterioso seio; habitantes das esferas; universo inteiro; Deus, que com magnificência o criaste, é a ti que eu invoco: mostra-me um homem que seja bom!... Mas que a tua graça multiplique por dez as minhas forças naturais; pois, perante o espectáculo desse monstro, posso morrer de espanto; morre-se por menos.





isidore ducasse
conde de lautréamont
cantos de maldoror
poesias
trad. pedro tamen
fenda
1988

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