10 maio 2010

rené char / folhas de hipno 16










O entendimento com o anjo, nossa primordial preocupação.

(Anjo, o que, no interior do homem, se mantém à margem do compromisso religioso, a palavra do mais alto silêncio, a significação de valor incalculável. Afinador de pulmões que doura os cachos vitaminados do impossível. Conhece o sangue, ignora o celeste. Anjo: a vela que se debruça a norte do coração.)






rené char
furor e mistério
trad. margarida vale de gato
relógio de água
2000

07 maio 2010

andre breton e paul éluard / o sentimento da natureza







O processo do espelho em esfera serviu mais uma vez para o estudo das origens do orvalho; logo que está completo pelo fogo da chaminé, é possível submetê-lo sem dificuldade a medições precisas, e estudar o fenómeno em todos os seus pormenores; assim se reconhece que as sardas nascem bruscamente, permanecem brilhantes por um curto instante, extinguem-se depois gradualmente. A sua duração total varia com a formação dos anéis de verdura nas clareiras favoráveis à neve. Mas nenhuma dura mais que uma vida média, calculada tendo em conta os seus eclipses e os seus nós.
A grande questão seria conseguir que quando um ser enganou um outro ser, se tornasse incapaz de segurar na mão um copo que não se partisse imediatamente. Muitos inventores dedicaram o seu sono e as suas vigílias à solução deste problema, mas sem que até este momento nenhum dos vidros imaginados tivesse apresentado as qualidades requeridas. O facto está em que se é apenas a elegância do copo que permite beber e se é apenas o tremor do bebedor ou da bebedora quem comunica as suas vibrações à tempestade sempre imaginada no interior do copo vazio, a emoção de um ou da outra não pode bastar na maior parte dos casos para provocar o estilhaçamento de uma parcela de matéria transparente que faz bomba na extremidade dos dedos. Estas saraivadas que amadureceram na inconstância e no olvido não permitem àqueles que bebem tomar a atitude desligada dos amadores do ciúme.
Sob as árvores, às mãos-cheias, o cheiro de roupa queimada de velhas roseiras enche as caves do Outono. O coração da dama do lago foi perfurado por um lagarto. Está na aurora até ao coração. Existe escondido um tal movimento de estrelas que a sombra cai em flocos, um tal movimento de estrelas grandes e terríveis que a vida está em farrapos. E o eco responde: Aqui, há um cadáver.
Pouco a pouco, o cadáver pinta-se. O pó de arroz dá lugar à alvaiade, o sublimado aparece à varanda, é o rei dos cosméticos. O sulfureto de zinco comunica ao corpo bem--amado na noite aquela bela luminosidade verde--esbranquiçada, aquele clarão inteiramente enigmático na meia luz. A neve do pensamento continua a cair contendo sempre no interior dos seus cristais o pó fino do colo da janela, nascido no sangue.
Quando observamos atentamente a própria vida temos muitas vezes a impressão de que as alegrias e as dores se mantêm durante um tempo apreciável. Fomos surpreendidos, da Rua Louis-Blanc à Rua Louis-Noir, com a duração do período do fenómeno oscilatório: segundo a nossa opinião os pontos brilhantes são aqueles onde a vida é vista em ponto pequeno.
O inimigo da sua natureza assombra as fiorestas perigosas cujas grades se fecham todas as manhãs sobre a árvore dos vícios. Finda a saúde as suas geadas de malvas e as suas canículas de tigre. O inimigo da sua natureza está perdido no meio das flores salgadas e leques de gesso. Será necessário indicar-lhe a direcção do deserto? Irei voltá-lo para a estrela polar? Deseja ele que este empedrado que aí está se torne e fique constantemente paralelo ao equador infernal? Agrada-lhe que esta boca que cobiça permaneça indefinidamente à porta do primeiro palácio dos fenómenos? Que escolha! Ou prefere então ter tudo isso na abertura da sua mansarda que dá para o céu aturdido?
- Tudo, responde ele. Com isso e um sorriso do Sol, sem pôr o nariz fora da minha janela, saberei ao certo com que me contentar acerca da força incompreensível das aptérix e dos grampos de ferro dos seus hábitos crepusculares.
Saberei ao certo com que me contentar quanto ao processo empregado para guarnecer o artigo desértico preexistente no velho mundo de personagens, de aves ou de diferentes cenários em relevo, relativamente bastante bem feitos. Em presença do preço módico do conjunto — a vida — e da execução sofrível do cenário pensava que fora sem dúvida empregado um processo mecânico simples, tal como urna moldagem, mas, após exame, pareceu-me que estas ornamentações, sobretudo os pássaros, não eram de despojo e, não podendo sair de um molde vulgar, teriam exigido uma moldagem dispendiosa. Não sei se me será permitido visitar um dia as oficinas do fabricante. É provável que o artista tenha como único material e como ferramentas folhas de macieira e a matéria plástica; que seja com estas folhas de macieira que ele dá forma a esta matéria formada de céu encarneirado (muito produtivo) e de esperma ligado com gulosos de morangueiros. Teve de tirar o almíscar nas cabeças de trutas, misturá-lo com o ácido oxalo-sacárico e encerrá-lo numa primeira hóstia de cor carne. Numa segunda de cor espírito teve de guardar bicarbonato de sódio seco. Na época das chuvas, as duas hóstias misturadas deram ácido carbónoco expirável na forma de hálito.
A maldade que lança o espírito sobre a carne e a carne sobre as imagens do espírito habita as miragens da cabeça e a água gelada das cozinhas surdas. É preciso respirar este ar selvagem que estende os punhos através do apetite voraz das ruínas com cintura de vespa e cabeça de víbora. Elas sobrepõem-se gradualmente e cada um dos seus degraus está coberto de coágulos de musgo vivo que a névoa torna a cobrir de musgo morto. A atmosfera ganha então um tom amarelo mais intenso que o da crosta da aurora. A vista espraia-se sem limites e escava nas profundidades do coração humano, que sempre produziram naquele que as contemplou urna extraordinária impressão.
Gostaríamos de ilustrar este texto com urna curiosa figura representando um animal de tronco excepcionalmente bifurcado a partir do meio do seu comprimento. É assinalada a existência de seres análogos um tanto por toda a parte. Este género de divisão anormal de eixos ou de órgãos habitualmente simples conhecido das árvores com o nome de partimento, ainda não foi estudado senão pelos sexualistas. Foi em Paris, onde íamos herborizando ao longo das fortificações, que pela primeira vez fomos surpreendidos ao avistar uma, depois duas, depois mil destas excrescências lembrando, num grau muito mais avançado de deformação, esta variedade móvel da mandrágora em busca do vento na erva rasa e lamentavelmente observada pelos carrosséis de cavalinhos. A sua excitabilidade representava-nos bastante bem um quadro assaz análogo ao de um leito tal como seria se a velocidade dos movimentos executados pelos vários membros que nele se agruparam estivesse multiplicada por mil. Tudo ali está em movimento, os braços sobem, baixam, torcem as mãos, os troncos contornam em hélice a sua culminância delicada, as bocas rebentam, projectam os seus beijos ao longe, os beijos caídos sobre os olhos não ficam ali, logo partem numa outra direcção, as pernas mergulham nos lençóis transparentes, enfim tudo está cm acção, desde o grito que se abandona até aos dentes de veludo.
Os caminhos que sulcam o arrabalde, nos últimos raios da preguiça, repousam nas redes das grelhas. É difícil dispor os lugares da aldeia para não se deixar morrer de fome, à noitinha. Toda a sua puerilidade não lhe serve senão para confundir os despojos do turismo com o porte estúpido das grandes glicínias da Beauce.
O Verão, como tinta simpática, reaparece a favor de dois negativos quando não está calor não está frio, sobre o palimpsesto coberto de geada da palavra inverno.
O fogo é um amigo que nos presta serviço, é a razão por que a aliança estabelecida com ele lisonjeia tão vivamente a população terrestre. Todo o aparelho preventivo do fogo está colocado num ramo de cerejeira. O ramo de cerejeira alto, sem o botão a dominá-lo, de 0,35 .m, está fixado por quatro parafusos, também em madeira, do modelo conhecido, ao tronco da árvore. Eis-nos no meio da Primavera. Quantas transformações já se cumpriram! O preventivo é visitado por uma borboleta branca que se detém a meio da fotografia. O Outono: a maior parte das folhas caíram; o capitel de um estilo coríntio híbrido faz o regalo de uma libélula.
Um mar imenso de penca vermelha protege os instrumentos de trabalho da centelha. Em breve se dará um eclipse de coragem. As vagas de lava que se rasgam na planície e as incursões do machado inútil, o machado paternal, o machado com dentes de serra já não terão história. A centelha, sempre resplandecente, será glacial. Elevar-se-á teatral e vã, sobre um mundo demasiado afagado pelos simuladores. O monumento do dia fará os sonhos de fuligem.
Preparar-se-ão para o demolirem nos alicerces, logo que estiver saturado de sonho. Cairá enfiando-se umas partes nas outras, à maneira dos telescópios, como dizem os Ingleses, sem destroços ao longe. Então o telégrafo só aparecerá como o chapéu adornado de andorinhas de uma dama parisiense em 1889.
Entretanto, o céu e os seus derivados não fazem efeito no maciço. O sangue é mais procurado devido à sua cor complementar do verde da pele (1914-1918).
Após o sangue vem o negro da glória: peguem num livro branco, limpem-no, mergulhem-no folha a folha durante alguns minutos numa mistura pastosa formada por: 500 gramas de estrume de carneiro, uma pitada de sal, um copo de vinagre a que juntam 200 gramas de pó de bagas de sabugueiro e assinem.
As representações convencionais das origens geométricas da natureza só são sedutoras em função do seu poder de obscurecimento. O cristal é um dédalo seguido pelas toupeiras, as uvas queimam as últimas borboletas. Vista através da substância afrouxada, a paisagem seduz-nos com todas as suas masmorras. Peixes feitos de redes, pássaros de grades, mamíferos de gotas. A flecha odorífera do ar tendo-a atravessado de lado a lado faz que a nossa barca meta água num mar que se esvazia.
Que dizíamos nós? Ah! pois as ruínas empenachadas de avestruz, as ruínas continuam assaz
solidamente belas. Não existe senão um grau de calor entre a foliação do lilás e o último canto do cuco mas pode ter-se a certeza que este grau é bem empregado entre o trigésimo sétimo — daqui — e o quadragésimo segundo — ali.











andre breton e paul éluard
as mediações
a imaculada concepção

tradução franco de sousa
estúdios cor
1972






04 maio 2010

adília lopes / sete rios entre campos






Preciso que
me reconheçam
que me digam Olá
e Bom dia
mais que de espelhos
preciso dos outros
para saber
que eu sou eu







adília lopes
caras baratas
antologia
relógio d´água
2004







gil t. sousa / o sopro dos anjos






17/


hoje,
o sopro dos anjos,
onde já nem
a sombra
chegava











gil t. sousa
falso lugar
2004







01 maio 2010

pier paolo pasolini / « la realtà »








21 de Junho de 1962




Trabalho o dia todo como um monge
e à noite vagueio, como um gato
à cata de amor… Vou sugerir
à Cúria que me santifique.
Com efeito, respondo à mistificação
com a mansidão. Olho com olhos
de imagem os que vão linchar-me.
Observo o meu massacre com a coragem
serena de um sábio. Pareço
sentir ódio, mas escrevo
versos cheios de amor atento.
Estudo a perfídia como um fenómeno
fatal, como se dela não fosse objecto.
Tenho pena dos jovens fascistas,
e aos velhos, que são para mim formas
do mais horrível mal, oponho
apenas a violência da razão.
Passivo como um pássaro que, voando,
tudo vê, e, no seu voo para o céu,
leva no coração a consciência
que não perdoa.








pier paolo pasolini
poemas
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005








30 abril 2010

giorgio caproni / tarefa cumprida








Fabro quidam tignario.




O que se cumpriu,
Cumpriu-se. Podemos
Dar repouso às algemas.
Se o desejar (se houver alguém
À sua espera) cada um
Pode partir livre para onde
Com mais força o coração o chamar.
E eu que não tenho casa alguma
A não ser entre vós,
Para quem sou o próprio Deus,
O qual existe, diz-se,
Só no acto da súplica
- de desespero, esse acto, e negação –
Eu que não tenho onde ir, prefiro
Ficar mais um pouco, aquecer
Os meus dedos ao fogo derradeiro da mentira
E expulsar das minhas mãos o tremor,
Depois, reduzido
A cinzas o tição, desaparecer
«Aproveitando as trevas».








giorgio caproni
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro

trad. ernesto sampaio

assírio & alvim
2001







27 abril 2010

paul auster / desaparecimentos








7



Está só. E a partir do momento em que começa
a respirar,

está em nenhum lugar. Morte plural, nascida

no maxilar do singular,

e a palavra que levantaria uma parede
a partir da mais íntima pedra
da vida.

Porque ele deixa de ser
por cada coisa de que fala —

e em lugar de si mesmo,
ele diz eu, como se também ele começasse
a viver em todos os outros

que não são. Porque a cidade é monstruosa,
e a sua boca não prova
matéria alguma

que não devore a palavra
de um outro.

Assim, há-as muitas,
e todas estas muitas vidas
talhadas nas pedras
de uma parede,
e aquele que começasse a respirar
aprenderia que não há outro lugar para onde ir
senão este lugar.

Por isso, ele recomeça,

como se fosse respirar
a última vez.

Porque não há outra vez. E é o fim do tempo

que começa.








paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002








25 abril 2010

antónio josé forte / desobediência civil











se a preguiça encantadora dos homens
deve acabar a sua obra e a sua língua de fogo
unir os dias e as noites do desejo
então saudemos as grandes afirmações:
«a poesia deve ser feita por todos» e
«a poesia é feita contra todos»

os devoradores de cultura podem sair pela esquerda alta
fiquem os amantes obscuros e o único os raros
todos os nus
porque a língua portuguesa não é a minha pátria
a minha pátria não se escreve com as letras da palavra pátria


Vêde
sobre a coroa de silêncio do vulcão adormecido
uma ave a sua plumagem de cores trémulas
e as asas que escrevem letra a letra o nome definitivo do homem
e no entanto multidões de gnomos
cada qual com o seu estandarte
esperam à entrada dos cemitérios
para saudar o fogo-fátuo


eu passo de bicicleta à velocidade do amor
atravesso a terra de ninguém com um dia de chuva na cabeça
para oferecer aos revoltados












antónio josé forte
uma faca nos dentes
parceria a. m . pereira
2003










21 abril 2010

rui miguel ribeiro / berlin (seestrasse 118)










Subimos até ao quarto que dá
para o pátio interior desta cidade
distante e estrangeira.

Partilhámos a meias a solidão
sob um nome que não pronunciamos
como os nossos, próprios.

Trocamos iniciais e algumas verdades
tão mentirosas como qualquer confissão.
Libertámo-nos do pudor como
o assassino que limpa a sua arma.


Trinta e cinco anos.
O mais eficaz dos calibres.








rui miguel ribeiro
telhados de vidro nr. 13
novembro de 2009
averno






19 abril 2010

miguel torga / comunicado





(Coimbra, 18 de Abril de 1961)




Na frente ocidental nada de novo.
O povo
Continua a resistir.
Sem ninguém que lhe valha,
Geme e trabalha
Até cair.







miguel torga
diário ix
diários 2º vol
dom quixote
1999







15 abril 2010

josé ángel cilleruelo / pintura







Como um ir dando cor às coisas,
Assim deveria ter acontecido, como pintar
Uma fotografia a preto e branco,
Retocando com um pincel muito fino,
Imperceptível, todos os objectos
Com inúmeras camadas de anilina,
Cada uma mais leve que a anterior.
Assim, é certo, deveria ter acontecido.
Mas senti-o como um despejar
Com baldes a cor sobre aquela tela
Citrina que era a minha vida de então.
E de agora, ia já escrever,
Mas não seria exacto, ainda que não esteja,
Comigo fica amanhecido o mundo.







josé ángel cilleruelo
trípticos espanhóis 2º
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000





12 abril 2010

mário cesariny / pastelaria








Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante!

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao
     precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é por ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria e, lá fora - ah, lá fora! - rir de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra.







mário cesariny
nobilíssima visão
assírio & alvim
1991






09 abril 2010

joão almeida / em tempo de miséria









desço por um jardim transparente
entre lodo e hortelã

andam assistentes sociais pelo bosque
à procura de pobres
agitam contas e berlindes

acaba aqui a rédea solta, há que escolher as armas

troco à sombra do derradeiro cipreste
dois versos e um dedo
por uma noite de sono e um detonador








joão almeida
resumo
a poesia em 2009

assírio & alvim
2010