04 setembro 2009

agustina bessa-luís / saúde






Direi como disse um médico famoso: «O ser humano que matava com uma lança os leões treme hoje com a picada duma mosca.» Isto quer dizer alguma coisa de angustiante, e nós sabemos que a angústia nos mantém em cativeiro. O modo de vida urbano propagou-se à província, o homem levou as suas doenças até ao sertão mais impenetrável, e uma série de maldições pesa sobre a nossa saúde tornada delicada. O sabor do vinho tornou-se venenoso, o sol já não tem o mesmo efeito abrasador e doce na nossa pele; pomos o pé com precaução no solo, desinfectamo-nos antes de dormir e ao acordar.






agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008





01 setembro 2009

josé gomes ferreira / a uma nuvem e a todas as nuvens (1939)






(Li este poema ao Manuel Mendes que
mo pediu para publicar na «Seara Nova».)









O sol abriu em asas
um charco de água podre
e uma nuvem surgiu
no silêncio da tarde.

Mas quem se atreve a ver no céu
um pântano a voar?
Quem procura no coração dos anjos
o sangue do lodo?
Quem tem a coragem de gritar aos deuses:
«Vi-os subir dia terra!»?

Ninguém, ninguém...

Todos te contemplam
como se caísses doutro céu mais longe
para chover nas bocas sequiosas
a esperança do pântano esquecido.
E bradar nos vales das montanhas
a cólera do pântano revoltado.
E molhar até aos ossos
a febre dos mendigos
que desprezam os charcos
mas imploram de joelhos,
num latim de lágrimas,
a tua água atravessada de céu.

Ó homens que chorais
perdidos nos desertos
a abrir sulcos de cobra e vento nas areias
com lágrimas de sede.

Prendei, prendei nos astros
os gritos dos relâmpagos
que não cabem nas bocas
dos homens de joelhos.

Olhai, olhai nas nuvens
as águias orgulhosas
a agonizar silêncio
em olhos de humildade.

Tremei, tremei de medo,
a rezar de mãos-postas
às vossas próprias lágrimas de angústia
com asas de tempestade.

Tapai, cegai o sol
Com mãos de névoa e súplica
para que o mistério do sonho
seja maior do que o homem.

E nas noites misteriosas
com esqueletos de frio
enforcados no luar,
lançai às estrelas
as almas transidas
para aquecê-las
em nuvens de cinzas...
… de rojo no chão sem reparar
que, na terra onde caís
a magoar os joelhos numa prece,
crepita uma chama
funda e sombria...
A sarça ardente das coisas vis
que tudo cria…
A pobre fogueira a arder na lama
que nos aquece...
Enquanto de joelhos,
com os olhos a voarem do corpo,
todos procuram no fumo
a explicação do fogo.

Todos, menos eu!

Eu que nas tardes viris do mundo
só olho para o céu
quando o azul é mais profundo
sem ilusões de nuvens.

E se tenho sede
debruço-me no lodo
para beber com orgulho
a água imunda dos lameiros
que andou pelas estrelas
mas voltou à terra
com o sabor a sangue
de todos os astros.








josé gomes ferreira
poeta militante 1º vol.
moraes editores
1977







28 agosto 2009

william carlos williams / a chaminé amarela








Há um penacho
de fumo cor
de carne pálida no azul

do céu. Círculos
de prata
enlaçam espaçadamente

a estrutura amarela de
tijolos e refulgem
nesta luz

ambarina - não
do sol não do
pálido sol mas

do seu irmão
legítimo
o outono







william carlos williams
antologia breve
tradução josé agostinho baptista
assírio & alvim
1993







21 agosto 2009

carlos de oliveira / tempo variável







dança



I

Dançam na praia;
na orla onde se vai acumulando
uma primeira espuma;
de que surge a segunda;
que segrega, por sua vez,
o antídoto do mar;
usado sobre os rostos,
contra a acidez do sal, do lodo;
e esse trabalho atrasa mais
o movimento já difícil
de quem dança
desde o crepúsculo; talvez
possam chegar à madrugada;
mas não podem
refugiar-se noutra noite,
ao fim do túnel diurno:


II

as máscaras de espuma, fende-as a luz; e restitui
os rostos sem defesa
à erosão do mar;
alguns estudos sobre o vento
dizem que não regressará
tão cedo a esta praia;
incapaz de transpor a exalação
de fossas e algas; a muralha
que se prolonga, opaca,
às últimas camadas
onde é possível respirar;
e assim, faltando o vento, essência da leveza, cessa
a progressão aérea
que a dança subentende:


III

sente-se a lentidão, o peso,
minarem cada gesto; e antes
do gesto, a ideia de o fazer;
dançam agora dois a dois,
reconstituem a unidade
cindida ainda há pouco; os pares
mortais; a vocação
de transformar o tempo em rostos;
somam-se duas mortes,
e obtém-se uma criança; ela, sim;
resistirá, crescendo,
ao desgaste do dia,
procurará na outra noite
o corpo que define o seu;
protege-a a espuma, a máscara,
até de madrugada; e então,


IV

das duas uma: reproduz-se
também; ou extingue em si
o fluxo da dança;
não é a conjunção dos astros
que comanda tudo;
mas a cor do céu; indecifrável;
e outros, um halo de metal,
quase cinzento, em que repousam;
ou donde se desprendem;
certas cores intermédias;
de qualquer modo, a noite
dificulta os tons, subverte-os
sem se dar por isso;


V

e o silêncio; a máquina
que mói uma energia turva,
a clarifica pouco a pouco
destilando o dia;
tritura nestas engrenagens
simples hipóteses de som;
até a memória recolher
o círculo do sol; no último
momento; quando se dissolvem,
quase simultaneamente,
dança e memória: sob a curva
acesa do regresso ao ponto
onde começa o seu desenho;
chama-se tempo a muita coisa;
mas a duração da praia
é a mais incompreensível.










carlos de oliveira
entre duas memórias
cadernos de poesia
publicações dom quixote
1971











19 agosto 2009

cesare pavese / desenraizados







Chega de mar. Já vimos mar que chegue.
Ao entardecer, quando deslavada a água se estende
e esfuma no nada, o meu amigo olha-a fixamente
e eu fixo o meu amigo e nenhum de nós fala.
Chegada a noite, acabamos por nos fechar nos fundos duma taberna,
perdidos no meio do fumo, e bebemos. O meu amigo tem sonhos
(o bramir do mar torna os sonhos um tanto monótonos)
em que a água é apenas o espelho, entre uma ilha e outra,
que reflecte colinas salpicadas de flores selvagens e cascatas.
Quando bebe, dá-lhe para isso. De olhos postos no copo,
vê-se a erguer colinas verdejantes sobre a planura do mar.
As colinas, a mim agradam-me; e deixo-o falar do mar
porque a água é tão clara que se vêem mesmo as pedras do fundo.

Eu, o que vejo é só colinas, e enchem-me o céu e a terra
com as linhas nítidas dos seus perfis, distantes ou próximas.
Mas as minhas são agrestes, estriadas de vinhedos
que crescem penosamente num solo calcinado. O meu amigo aceita-as
e quer vesti-las de flores e frutos selvagens
para nelas descobrir, entre risos, raparigas mais nuas que os frutos.
Não é preciso: aos meus sonhos mais agrestes não falta um sorriso.
Se amanhã, cedinho, nos metermos ao caminho,
poderemos encontrar nessas colinas, no meio das vinhas,
uma rapariga de pele morena, tisnada pelo sol,
e, talvez, metendo conversa, comer-lhe algumas uvas.






cesare pavese
trabalhar cansa
trad.carlos leite
cotovia
1997







10 agosto 2009

gil t. sousa / o soar da última neve






7/


o soar
da última neve
aos pés
da rainha negra

retratos
são pedaços de abismo
ou restos
de chão firme

já não há mais nada
nem nos livros
nem nas horas
nem nas vozes

está tudo a arder
como se mais nenhuma paisagem
coubesse
na varanda dos meus olhos





gil t. sousa
falso lugar
2004





05 agosto 2009

herberto helder / e eu que sou louco…







e eu que sou louco, um pouco, não ao ponto de ser belo ou maravilhoso
ou assintáctico ou mágico, mas:
um pouco louco,
porque faço com mãos estilísticas um invento fora e dentro dos estados
naturais:e a faúlha e o ar à volta dela, jóia, digo, quero-a de repente,
e as matérias maduras e dramáticas: ouro, petróleo:
e com que potência madibular me debruço sobre o prato,
e ávido e inculto,
com mão aprendiz côlho o áspero alimento do mundo,
e rosto, membros, torso, radiações dos dedod,
trabalho no meu nome,
obra pequena de hemoglobina, enxôfre, células, osso, lume,
para estar mais perto de quem acaso me chame ou toque
---- eu,
sem beleza nem maravilha,
só dor,
desamor ou descuidada memória ----
mas mr conheça por isso que não é bem música,
talvez sim um som
dificílimo, sêco, acerbo, rouco, côncavo, precaríssimo
de apenas consoantes,
pregos








herberto helder
a faca não corta o fogo
ofício cantante
poesia completa
assírio & alvim
2009







04 agosto 2009

andre breton e paul éluard / tentativa de simulação da demência precoce







A mulher que aqui está um braço sobre a sua cabeça pedregosa de amêndoas cobertas que saem daqui sem que se veja claro pois é pouco mais de meio-dia aqui ao sair do riso nos dentes que recuam através do palácio das Danaides que acaricio com a minha língua sem pensar que o dia de Deus chegou música na cabeça de rapariguinhas que choram trigo e se olham sem as verem chorar pela mão das graças na janela do quarto andar com reseda do gato que a folhagem ataca de flanco e de dia de festa. Ao fazer-me pão com o general das Termópilas lançado num triciclo e vermelho de ver. A selha é fecundada no céu pela Virgem imóvel na sua pipa. Deus faz-me línguas com o pão. Pesco montanhas. No pensamento do meu pensamento a grande casa com casas operárias na casa de pele humana com varanda de focas. O vulgar é supremo, embora haja tortura no leite de ovação e de evocação. Ele está ali com os seus olhos em teta, passo-o para os alvos de tiros. Disse três palavras a mais, tanto pior retiro-as, acrescento-as. Várias vezes mereci a morte, especialmente na Grécia por ter serrado a palmatória de um velho que perseguia os meus companheiros mesmo no meu leito de campanha. Desmascarei o maior criminoso da Caldeia. Para isso não tive de me servir da minha filha nativa das regiões baixas da visão de seu pai, todas as planícies a perder de vista que consomem canastras de madrepérola. Platina tu não te manténs de pé desde que o clarim da ausência sacudiu a tua eternidade. Pálido astro, pequena choupana no macaco de madeira que sufoco, tu cais das nuvens, tu retiras-te diante das quarenta maneiras de se servir da minha crueldade.
Quando era jovem, escondi Hércules na beira do meu fato de marinheiro, quando era velho restitui-lhe a liberdade ao fixar o seu resgate à minha pedra tumular em ricochetes. Ele ria por baixo da minha mordaça, um riso de hera. Mais tarde, como levasse avanço fiz germinar miríades de ovos de sapos provenientes de cruzamentos de caminhos com encruzilhadas de estrelas de cangurus no chapéu com gavetas de Napoleão da minha cómoda com pés de trevos sem folhas. Tenho como bisneta Cleo de Mérode, minha bisavó que viaja no dorso de lobo juntamente com Carlos, o Temerário. Ganhei um bilião de vezes a taluda à roleta jogando os nove meses do ano. Expulsaram-me em triunfo de todas as salas de esgrima porque queria apanhar o mel. Foi nesse dia que compreendi os sete mistérios da criação. Cleo de Mérode passava o seu tempo a querer calçar o pé da mesa com o mais claro dos meus rendimentos. Pus Cleo de Mérode na chancela do meu anel. Ela está tranquila, e desperta os mortos. Esterilizo todos os dados. O embrião mantém a sua aparência de chave inglesa, o ímpio já não se faz fanfarrão. Regulamentei a prisão por dívidas. É preciso mostrar carta branca para entrar e não subestimar os guardas. O tecto da prisão suporta as armaduras republicanas para os dias de gala. O reino dos inúteis terminou. Quiseram pôr-me uma barba falsa e fazer desempenhar o papel sepulcral de camareiro. Ameaçaram-me de me intrigarem com o rei de Agosto, mas eu rangi e disse-lhes quarenta e oito se não me largam a mão já não entrarei na caixa de moer para lhes fazer fogo.
Escrevi bem em bastardo na minha mala e fiz-mo registar pondo a cabeça de fora. Meteram-me no furgão dos leões, mas desde que me reconheceram já não tinham senão uma juba de margarida. Fiz puncionar mil leões durante o caminho no branco de muito que ficara livre. A seguir saltei do comboio que a si mesmo se atou. Tinha chegado.
Tirei o escalpe ao público. Pus a minha verdasca em todas as chaminés na noite de Natal.
Fui investido na confiança das pessoas ciumentas que me consultam para crimes passionais. Há razão para calafetar os sinos com as tranças das Francesas que não desbotam que já não têm senão o seu armário de espelho nas costas. Olho-me ali, ali me embalo e que se levanta? uma suspeita de piruetas desajeitadas nos joelhos de um velho senhor que satisfaz. Carreiras de lobas e cinzentos de chumbo, vi tudo. É preciso rir com os lobos.
Acredito na filatelia. Tenho as armas de Poitiers tatuadas no lado esquerdo do meu braço coberto por um xairel e as palavras pode-se prolongam artificialmente cada urna das pestanas da minha pálpebra superior enquanto que em cada uma das minhas faces se arredonda em rosa macabro a primeira letra de oui. A filatelia começou antes do homem, pelo início da época terciária. Os pterodáctilos saltam neste momento de uma margem para a outra do meu tinteiro. As imagens da boda não são obscenas: o padre devia trazer na sua casula um girino. As gomas enfoladas das serrilhas dos selos de correio cercam sempre com balões a nossa boa cidade. São precisos legumes frescos para os missionários, pois a antropofagia é contagiosa e dela só são suspeitos os selvagens. Um parricida em África arrancou um olho em forma de concha. As peças de jogo da carnificina são dez mil dedos ágeis.
Tenho um jazz no polegar alternando com um músico chinês que faz de unha. Estou enforcado num brinco de cerejas. Lancei todas as modas dos velhos tempos: a saia de esporas a arrasta-nascente, o globo com cruz na mão das crianças que chucham no polegar. Saboreei todas as iguanas que não se atreveram ainda a servir. Os dorminhocos não têm o mesmo cheiro das pessoas acordadas: se os despertam em sobressalto o cíclame espalha-se pelo quarto.
Tenho a mão de fathma nos Gémeos e um pé niquelado na Balança. A imensidade da minha natureza está compreendida entre duas picadas de vespas atreladas ao mesmo compasso que pede o biscato. Se é no lábio, existe beijo; se é nas nádegas, há Tibete.
Eu sou o avô, o pai, o sogro, o irmão, o cunhado, o tio, o genro, a nora, o primo, o padrinho e o cura do actual papa que não é mais do que um espião disfarçado, um amigo traidor ao serviço dos arquiduques de Tule. Não se poderá desmascará-lo senão mostrando à multidão a flecha do Parto cravada no seu ombro. Assim se unem os canalhas, os frutos adulterinos da criadagem e do colchão. Não temo senão ao ouvido a relojoaria dos Grandes Armazéns que construí amontoando 33000 raios de confeitaria sobre os tratados de paz. Um outro par de mangas sobre um outro par de ter razão sem estar lá, um outro par de mangas de outros braços sobre um outro par de mangas. Vai ter-se realmente em vista a manga do túnel sob a Mancha se os pinguins e os manetas são capazes de reconhecer o meu cérebro pelo grande Banhista do Bolo-Rei. É preciso servir-se do elevador para ir dos pés à cabeça pela imaginação mas, quando vejo as Repúblicas apresentarem-se à visita todas as semanas, lacro preciosamente o meu sangue depois de o ter posto em garrafas. O rapaz já não é tão sabedor acerca da sua sorte com as cadeiras nas quais se limita a sentar-se quilometricamente em relação a si mesmo sem marcar passo. Estou às cavalitas nos ombros de três raparigas que se dirigiam para ver melhor ao último andar da torre na qual me degolam enquanto desço o Niágara corno flutuador, em bola, em cana, em bola de som dos condenados que as jovens preferem e que libertam as jovens das armadilhas dos seus seios.
Nada darei às feras, matá-las-ei a golpes de adaga. Sou habitado de baixo para cima por urna matilha, o veado desce, põe-me no seu dorso de poltrona. O que vai escalar? O Sena desenrola-se, tenho a bobina, fio-a em fio de água por toda a parte. Tenho 21 000 vulcões em erupção. Faço fogo por todos os lados. Contudo desconfio dos 500 biliões de chamas que domo como cães. Estou em liberdade, o que me surpreende por parte da trovoada e da medicina dos simples. Escrevo aos notários a minha livre vontade em minha alma e consciência que jura perante o tribunal dizer toda a verdade ao insistir sobre as circunstâncias atenuantes e juro-o. Mas juro mandar o júri para os trabalhos forçados por me condenar a ser livre, laico e obrigatório. Não no mês de Julho mas no final e com carência em todos os duelos à lima e ao esquadro pelos meus superiores hierárquicos que se agarram as costelas em cada uma das minhas costelas. Nada fiz de mais que o mais e de menos que o mais e dei a liberdade a Deus que trazia urna gotilha de ouro que me entregou por estar livre e me conduzir pela mão nas pradarias com o botão de ouro.
Sob a palmatória dos corregedores que resmungam de viges os sumares de irdiana eu passo a tarde nos frascos sob o argério dos pimões. Salta por gluto. Constatei que o falecimento deseja trair numa gargalhada e submeter aos vivos a noite, esta seda rosa e branca do regresso da retardação das rasuras de ruptura. Riason ne hast gler. Comi à mesa de Fausto em crespins de machado e intimavam-se os convidados a passarem os olhos para azul para que o diabazulasse este passageiro azul que presidia com uma mão na minha mão, a outra nas suas rendas. E manchava-se até à medula. As brocas se rascacam umbeliferrantes com as ferraduras na manjedoura molhada e os fracosos engrenam os cadetesruivos. Eu quanto a mim eu abaixo-assinado eu me consequenco. Sentimentos com velas habituam-me ao apartamento para alugar com abrigo para o meu povo e o entendimento com cogumelos criqueta-me a erva preparando-se para a necessidade de arrancar a cabeça. E subir a um oleoto para tagarelar que ao Reno a Pátria reconhecida, ao Reno remorsos modernos e dos nossos Lorelei às apalpadelas ao baixar-se. Quando me ponho de capa dos pés a cabeça para ser a faia, o ante-nome, o contra-nome, o entre-nome e o Pártenon roga-me e eu digo não e canhão e disparo e o obus ricila e vai perder-se em mim e em mim e repercute em mim. Docemente a mirabonda e as fendas da galinha obstruem-se com darinça e arbila de Brioude no cotovelo o gafanhoto do cotovelo come o Inverno dos Heindes e dos Niobays de Soude. O frifro absorve-se pelo obo de eracmo. Bailarica-se nas pinças enquanto Aladino quiquiqui. Pedro é silogono em cachimbo de mucedro em ouro e em portanto, minhamuito e minhadernais. O andar de baixo é ocupado por Paris. O x exaspaltera o fogo de Seltz. Bataver e rolser em divisa de rabo de rato condecoram superviga o Onifonargelinglesa. Eu como para comoer de como é teu. Mas sim é da minha linhagem. Equivoqe jouh dir de ener o sistelo, as rubricas do teu saber se frisasasariam sem tardar. A açafanálise reduz as frubas de drona e posta doze quatro vezes oito. Maneira de aumentar o cieiro ceifar seis fica débito de exergo. Pego em onze e corto-os em onze fica onze que liassiprono de sam. Danret! Fina e funda que se climatoriza sem saber. Em beelza biribiada de léxicos negros que rondoce antes Que a Fronguarnição não Se adjective como Umdois que se adpalavra na língua e não na provisa, eu vos moeudo para mim que Marguesclin quem Dortapostrofa. E Quem heliotemposa os mercados das taças. Começamos por cada um nofoforo/lofoforo = Filho de Judas rondeva, que A Lineu pastor hipomito U vraili ouabi bencirog platol fernaca gla... lanço. U qualon purlo ouam gacirog olaiarna oual, u feaiva zuaïlo, gaci zulo Gaci zulo plef. U feaiva oradarfonsedarça nic olp figilê. U elaïaipí mouco drer hôdarca hualica-siptur. Oradar-gaçirog vraïlirn... u feaiva drer kurmaça ribag nic javli.








andre breton e paul éluard
as possessões
a imaculada concepção

tradução franco de sousa
estúdios cor
1972




27 julho 2009

fiama hasse pais brandão / estradas







1

Esta é a estrada
que me atravessa o tórax
com os seus marcos leves.
Vagarosa vida em terraplanagem,
vivo medo. Tem o cascalho,
o pó, o macadame negro
que nos esmaece. Vai cortar-nos
o som com que gritámos.
Abater a colina clara,
que percorríamos, amantes solitários.
Vai esquecer-se dos passos
de parentes e pássaros.
É a estrada que esventra.
Estivemos no começo
e no fim do seu tempo.







fiama hasse pais brandão
cenas vivas
relógio d'água
2000




21 julho 2009

jean-arthur rimbaud / depois do dilúvio








Mal se aquietou a ideia de Dilúvio,

Uma lebre parou entre os sanfenos e
nas ondulantes campânulas e fez a sua
prece ao arco-íris através da teia da
aranha.

Oh! as pedras preciosas que se escon-
diam — as flores que já olhavam.

Na grande rua suja reapareceram as
tendas, e as barcas foram atiradas ao mar,
que era em degraus, e em cima, como
nas gravuras.

Correu o sangue, nas terras de Barba-
-Azul. Nos matadouros, nos circos, onde
o selo de Deus enlividecia as janelas.
O sangue e o leite correram.

Os castores construíram. Os mazagrãs
fumegaram nos estaminés.

Na grande casa vidrada ainda rumo-
rejante as crianças de luto olharam as
maravilhosas imagens.

Uma porta bateu — e no centro do
povoado o menino girou os braços arre-
batando os cata-ventos e os galos de todos
os campanários, sob o cintilante agua-
ceiro.

A Senhora *** instituiu um piano nos
Alpes. A missa e as primeiras comunhões
foram confiadas aos cem mil altares
da catedral.

As caravanas partiram. E o Esplêndido
Hotel foi construído sobre o caos de gelos
e de noite dos pólos.

Desde então, a Lua ouviu o uivo dos
chacais nos desertos de timo — e as églo-
gas sabias grunhindo ao vergel. Depois,
na mata violeta, sussurrante, Eucaris
disse-me que era primavera.

Irrompe, charco — Espuma, rola sobre
a ponte e por cima das árvores. Velos
negros e órgãos; raios e trovão — vinde
e rolai! — Águas e tristezas, crescei e
restabelecei os Dilúvios.

Pois, desde que eles se foram — oh as
pedras preciosas aluindo, e as flores aber-
tas! — é o tédio! e a Rainha, a Feiticeira
que acende o seu lume na frágua de barro,
nunca quererá contar-nos o que sabe e
nós ignoramos.








jean-arthur rimbaud
iluminações
uma cerveja no inferno
trad. mário cesariny
estúdios cor
1972







17 julho 2009

marcelino vespeira / hoje






O dia não foi meu
e tantos outros que o não são
erro no calendário
ou voluntária distracção

E os dias que foram meus
gestos de outros são
que se dão a quem os quer
nos dias que o não são

E da pressa de os perder
do cansaço de os contar
ganho vícios da noite
que me sabem perdurar






marcelino vespeira
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa

perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998







14 julho 2009

luiza neto jorge / difícil poema de amor







Separo-me de ti nos solstícios de verão, diante da mesa do juiz supremo dos amantes.
Para que os juízes me possam julgar, conhecerão primeiro o amor desonesto infinito
feito de marés ambulantes de espinhos nas pálpebras onde as ruas são os pontos únicos
do furor erótico e onde todos os pontos únicos do amor são ruas estreitíssimas velocíssimas
que se percorrem como um fio de prumo sem oscilação.

Ontem antes de ontem antes de amanhã antes de hoje antes deste número-tempo
deste número-espaço uma boca feita de lábios alheios beijou.

Precipício aberto: ele nada revela que tu já não saibas.

Porque este contágio de precipícios foste tu que mo comunicaste
maléfico como um pássaro sem bico.

Num silêncio breve vestiu-se a cidade.

Muito bom-dia querido moribundo. Sozinho declaraste a terceira grande paz mundial
quando abrindo os olhos me deste de comer cronometricamente às mil e tantas horas
da manhã de hoje.

Deito-me cedo contigo o meu sono é leve para a liberdade acordas-me só de pensares nela.
As casas e os bichos apoiam-se em ti. Não fujas não te mexas:
vou fixar-te para sempre nessa posição.

Que há? Abrem-se fendas no ar que respiro vejo-lhe o fundo. Tens os olhos vazados.
Qual de nós os dois "quero-Te" gritou?

Bebe-me espaçadamente encostada aos muros. Se és poeta que fazes tu?
Comes crianças jogas ases sentado és uma estátua de pé a cauda de um cometa.

Mães entretanto vão parindo. Os filhos morrerão ainda? Entregas-te a cálculos.
Amas-me demais.

Confesso: não sei se sou amada por ti.

Virás
quando houver uma fala indestrutível devolvida à
boca dos mais vivos. Então virás vivo também. Sempre esperei ver-te ressuscitado.
Desiludiste-me.

E iremos com o plural de nós nos leitos menores onde o riso, onde o leito do rio
é um filho entre os dois. Que farei de teus braços de meus cabelos benignos que faremos?

Nasci-te da minha pele com algumas fêmeas te deitei por vezes. Conheces-me.
Não me tens amor

Grave esta corda cortada agudo seixo me ataste aos olhos para me afundar.

Só por grande angústia me condenas à morte se de mim te veio a cidade
e os minúsculos objectos que já amaste ou que irás amar um dia espero.

Ah a cratera o abismo eléctrico!

Por isso o teu novo amor será comigo mais perigoso
que este imaculado com mais visco de amor cópula mortal.

Calo-me.

Reparei de repente que não estavas aqui. Pus-me a falar a falar.
Coisas de mulher desabitada. Sei que um dia desviarei sem ti os passeios rectos
esvaziarei os gordos manequins falantes. A razão é uma chapa de ferro ao rubro:
se acredito na tua morte começo o suicídio.

Enquanto penetrantemente te espero a luz coalhou. Os pássaros coalharam enquanto te espero.
O leite enquanto te espero coalhou. Haverá outro verbo?

Submersa, muito distante de qualquer inferno de um paraíso qualquer existo eu.
Existirão tais palavras?

É a altura de escrever sobre a espera. A espera tem unhas de fome, bico calado,
pernas para que as quer. Senta-se de frente e de lado em qualquer assento.
Desça com o sono a cabeça de animal exótico enquanto os olhos se fixam
sobre a ponta do meu pé e principiam um movimento de rotação
em volta de mim em volta de mim de ti.

Nunca te conheci - assim explico o teu desaparecimento.
Ou antes: separei-me de ti no solstício de um verão ultrapassado .
As mulheres viajavam pela cidade completamente nuas de corpo e espírito.
Os homens mordiam-se com cio. Imperturbável pertenceste-me.
Assim nos separámos.

Não calhasse morrer um de nós primeiro que o outro porque ambos ao mesmo tempo
será impossível enquanto não houver relógios que meçam este tempo
e as horas fielmente se adiantarem e atrasarem.

Alguma vez pretendi dizer-te o que quer que fosse?
Falava por paixão por tibieza por desgosto por claridade por frio por cansaço
nunca por pretender dizer o que quer que fosse.

Não me desculpo. Se já me cai o cabelo se já não sinto os ombros
é porque o amor é difícil ou a minha cabeça uma pedra escura
que carrego sobre o corpo a horas e desoras
ostentando-a como objecto público sagrado purulento.
O odor que as pedras têm quando corpos.
O apocalipse de tudo quando amamos.
O nosso sangue em pó tornado entornado.

O teu amor espreita o meu corpo de longe. De longe por gestos lhe respondo.
Tenho raízes nos vulcões ternuras íntimas medos reclusos beijos nos dentes.

A pobreza surge dentro de nós embora cautelosos deitados de manhã e de tarde
ou simplesmente de noite despertos.
Ambos meu amigo estamos sentados neste momento perfeitamente incautos já.
Contemplamos um país e sentamo-nos e vestimo-nos e comemos
e admiramos os monumentos e morremos.

Inventei a nossa morte em toda a impossível extensão das palavras.
Aterrorizei-me segundos a fio enquanto em corpo nu ouvindo-me adormecias devagar.

Com a precaução de quem tem flores fechadas no peito passeei de noite pela casa.
Um fantasma forçou uma porta atrás de mim. Gemendo como um animal estrangulado acordei-te.

Enterro o meu terror como um alfange na terra.
Porque é preciso ter medo bastante para correr bastante toda a casa
celebrar bastantes missas negras atravessar bastante todas as ruas
com demónios privados nas esquinas.

Só o amor tem uma voz e um gesto mesmo no rosto da ideia que me impus da morte.

És tu tão único como a noite é um astro.

Sobre a poeira que te cobre o peito deixo o meu cartão de visita
o meu nome profissão morada telefone.

Disse-te: Eis-me.
E decepei-te a cabeça de um só golpe.

Não queria matar-te. Choro. Eis-me! Eis-me!








luiza neto jorge
terra imóvel
portugália
1964




13 julho 2009

rui knopfli / gritarás o meu nome




Gritarás o meu nome em ruas
desertas e a tua voz será
como a do vento sobre a areia:
um som inútil de encontro ao silêncio.

Não responderei ao teu apelo,
embora ardentemente o deseje.
O lugar onde moro é um obscuro
lugar de pedra e mudez:

não há palavras que o alcancem.
gelam-lhe os gritos por fora.
Serei como as areias que escutam
o vento e apenas estremecem.

Gritarás o meu nome em ruas
desertas e a tua voz ouvirá
o próprio som sem entender,
como o vento, o beijo da areia.

Teu grito encontrará somente
a angústia do grito ampliado,
vento e areia. Gritarás o meu
nome em ruas desertas.







rui knopfli
memória consentida : 20 anos de poesia 1959-1979
imp. nac. casa da moeda
1982