16 fevereiro 2007

no mesmo espaço




Ambiente da casa, dos cafés, do bairro
que vejo e percorro: ano após ano.

Criei-te de alegrias e tristezas:
de tantas circunstâncias, tantas coisas.

E já não és senão como te sinto.

(1929)







constantino cavafy
90 e mais poemas
trad Jorge de Sena
edições asa
2003



15 fevereiro 2007

sentires



saltei os dias, enquanto minha mãe embalava a máquina do tempo, tentando esquecer os gritos ruidosos. sentia o vai e vem acelerado da vida vazia, que guardava na memória das redes de secretos desejos. carregava nos ombros cactos. picavam-me a pele queimada pelo salitre. não havia dor, o sangue escorria como áscuas. a paixão perseguia um rasto agudo. fulgurava a pressão aterradora do sibilar da cobra pérfida, que atravessava o silêncio, da minha memória. saboreava no outro lado do dia, pitangas que colhia no quintal sem paredes. um rasto de esperma precário, fazia-me recordar erros em salas de tortura. senti-me um lugar. os sonhos transmitiam nevoeiros de palavras embaciadas mas hábeis. desnudava muda o ardor das manhãs. no espelho da casa onde vivia, as sombras tomavam formas de corpos rasgados de mim, enlaçados na sofreguidão do ciúme.



os pássaros com mangonha, debicavam a goiaba pútrida. estendi os dedos e toquei nas aves. sobre a mesa da sala, outras mãos, unidas nas sombras, filhas de estrelas escondidas e sem rostos. mãos que acariciavam o saber místico dos sentires. os dedos dançavam no brilho dos meus olhos, senti-os gélidos, extensos. olhei-os fixamente e saltavam miraculosas cores luminosas. feriu-me o gelo intenso da luz.



por fim, adormeci no sumo do fruto proibido.

entrei no engano das imagens...





l.maltez

14 fevereiro 2007

não pares de me chamar




não pares de me chamar
faz de mim o sul dos teus rios

põe-me céus de vertigem nos dias
ou mares
põe-me mares nos instantes
e acende-me nos olhos
um bonito grito
como se eu fosse a madrugada
ou aquela hora
em que numa pedra branca
me desenhas o mundo
e eu me arrependo
de enlouquecer

leva-me
leva-me pelos telhados mais altos
e ensina-me os horizontes sem fim
as árvores antigas
onde as cores das estações se escondem
onde começam os caminhos
onde acabam as fugas
onde terminam as procuras

e dá-me as cidades
as mais longínquas
as que crescem das casas que sonhaste
e põe-me a teu lado

debruça-me nessas janelas
para nenhuma solidão







gil t. sousa
poemas
2001






13 fevereiro 2007

livro da noite




*

há coisas que não faço voluntariamente:
sonho o que sonho,
sinto o que posso sentir,
e querer é coisa que não quero de modo
nenhum, todas estas coisas aconte-
cem, como se fossem sexo,
e eu o seu corpo, quando as faço.


*





per aage brandt
livro da noite
trad. maria joão reynaud
poetas em mateus
quetzal
2004






11 fevereiro 2007

alejandra pizarnik / caminhos do espelho



I
E sobretudo olhar com inocência. Como se nada se passasse, o que é certo.

II
Mas a ti quero olhar-te até estares longe do meu medo, como um pássaro
no limite afiado da noite.

III
Como uma menina de giz cor-de-rosa num muro muito velho
subitamente esbatida pela chuva.

IV
Como quando se abre uma flor e revela o coração que não tem.

V
Todos os gestos do meu corpo e voz para fazer de mim a oferenda,
o ramo que o vento abandona no umbral.

VI
Cobre a memória da tua cara com a máscara daquela que serás
e afugenta a menina que foste.

VII
A nossa noite dispersou-se com a neblina. É a estação dos alimentos frios.

VIII
E a sede, a minha memória é da sede, eu em baixo, no fundo,
no poço, bebia, recordo.

IX
Cair como um animal ferido no lugar de hipotéticas revelações.

X
Como quem não quer a coisa. Nenhuma coisa. Boca cosida.
Pálpebras cosidas. Esqueci-me. Dentro o vento.
Tudo fechado e o vento dentro.

XI
Sob o negro sol do silêncio douravam-se as palavras.

XII
Mas o silêncio é certo. Por isso escrevo. Estou só e escrevo.
Não, não estou só. Há alguém aqui que treme.

XIII
Ainda que diga sol e lua e estrelas refiro-me a coisas que me acontecem.
E o que desejava eu?
Desejava um silêncio perfeito.
Por isso falo.

XIV
A noite parece um grito de lobo.

XV
Delícia de perder-se na imagem pressentida. Levantei-me do meu cadáver,
fui à procura de quem sou. Peregrina, avancei em direcção àquela
que dorme num país ao vento.

XVI
A minha queda sem fim na minha queda sem fim
onde ninguém me esperava pois ao descobrir quem me esperava
outra não vi senão a mim mesma.

XVII
Algo caía no silêncio. A minha última palavra foi eu
embora me referisse à aurora luminosa.

XVIII
Flores amarelas constelam um círculo de terra azul.
A água treme cheia de vento.

XIX
Deslumbramento do dia, pássaros amarelos na manhã.
Uma mão desata as trevas, arrasta a cabeleira da afogada
que não cessa de passar pelo espelho.
Voltar à memória do corpo, hei-de regressar aos meus ossos de luto,
hei-de compreender o que a minha voz diz.







Alejandra Pizarnik
Extracção da Pedra da Loucura
(1968), tradução de Luciana Leiderfarb
Construções Portuárias #1,
Maio de 2002



10 fevereiro 2007

pictures at an exibition: klavdij sluban






Klavdij Sluban
Turkey

[Around the Black Sea - Winter Journeys (1997-2001)]
2000



Klavdij Sluban
Poland
[Other Shores - The Baltic Sea (2001-2005)]
2004




Klavdij Sluban
Transiberian
[East to East (2004-....)]
2005



Klavdij Sluban
Transiberian
[East to East (2004-....)]
2004




klavdij sluban








06 fevereiro 2007

nos dias nevoentos fecho as janelas


(…)

Nos dias nevoentos fecho as janelas,
acendo a luz forte
e deito-me no tapete.

Leio ou penso.
Ou então fumo,
enquanto as camadas de silêncio se sobrepõem,
e as mais pesadas descem
e as mais leves se tornam pesadas,
até ser impossível destruir o silêncio.

É fascinante,
debaixo de uma luz que brilha tanto.

Lá fora, a terra
- a terra das criaturas que se aproximam uma das outras,
se tocam e falam.

O silêncio é sólido,
iluminado por cima,
aquecido pelos lados.

Durante seis meses fumo e leio,
estendido no tapete.

Depois chega o verão,
e subo à montanha,
e vou para o mar.

Rebento de sol e água,
do odor a terra quente
e agulhas de pinheiro.

Estou tremendamente forte.

(…)





apresentação do rosto
herberto helder
editora ulisseia
1968


04 fevereiro 2007

book zapping #008 inferno



V

SYLVA SYLVARUM




Atingido meio caminho na minha vida, sento-me a descansar e a reflectir. Alcancei tudo o que audaciosamente desejei e sonhei. Carregado de vergonha e honra, alegrias e sofrimento, pergunto: E depois?
Tudo se vai repetindo numa desesperante monotonia, tudo é idêntico. Disseram os Antigos que o Universo já não possui segredos, encontrámos a palavra de todos os enigmas, resolvemos todos os problemas. Com um espectroscópio vimos que o Sol tem falta de oxigénio, não impedindo que arda tão bem como o antimónio no cloro ou o cobre no enxofre.
Desenhámos os canais de Marte que tão desagradavelmente recordam os desenhos de Widmannestetten nos meteoritos e, no entanto, só há bem pouco tempo sabemos ao certo como é o aspecto interior de África e nada conhecemos de Bornéu ou dos oceanos polares.
Uma geração que devia ter tido a coragem de suprimir Deus, demolir o Estado, a Igreja, a sociedade e os costumes, ainda se vergou à ciência em que devia reinar a liberdade mas cuja palavra de ordem foi acreditar na autoridade ou morrer! Ainda não foi erigida qualquer coluna da Bastilha no local de uma antiga Sorbonne. A cruz ainda domina o Panteão e a cúpula o Instituto.
Não há nada a fazer neste mundo. Sinto-me inútil e resolvido a desaparecer.
Já a lâmpada de espírito-de-vinho está acesa debaixo da retorta, já amarelo como ouro está o ferrocianeto de potássio que cheira como o cardo-leiteiro quando quente, destilado do sangue e do ferro, prestes a receber o ácido sulfúrico que oferece a morte quando concentrado e cria a vida por fermentação quando diluído. Desta vez será concentrado para provocar a morte. - Que diferença, afinal? E que soberba contradição!
O cianogénio, o gerador de azul nascido do sal amarelo, começa a desenvolver-se na mais inocente de todas as combinações que o carvão puro faz com o indiferente azoto, uma terrível aliança que não tem igual e forçou a ciência a confessar ignorância perante a natureza deste milagre.
Os vapores saem do recipiente e atingem-me a garganta como a difteria ou os venenos de cadáver não oxigenados. Os músculos do braço começam a paralisar-se e sinto dores agudas na espinal-medula.
Interrompo a operação quando o cheiro a amêndoas amargas se liberta. Sem saber porquê, parece-me que vejo uma amendoeira em flor numa álea de jardim e oiço uma voz de mulher velha que diz ó criança, não acredites nisso!
Não voltei a acreditar, portanto, que o segredo do Universo esteja desvendado e saí, umas vezes só, outras acompanhado, para reflectir na grande desordem onde acabei por descobrir urna coerência infinita.
Este é o livro da grande desordem e coerência infinita.
Eis o meu Universo, como o criei e a mim se revelou:
Se quiseres seguir-me, peregrino, transeunte, começarás a respirar mais livremente. Porque no meu Universo reina a desordem e na desordem é que existe a liberdade.







august strindberg
inferno
trad. aníbal fernandes
& etc
1978




02 fevereiro 2007

há um ruído



há um ruído que se silencia
no escorreito de tuas veias

é o silêncio amurado
que corre desencontrado
em direcção a rápidos

há um ruído que se silencia
forte de centelha

que envenena no teu choro
de menina
e arde como roma

ao nero olhar à pira

há um ruído que emudece
se te beijo o corpo
a alma

há um ruído que transparece
se me transcende
se te transcende

há um ruído que se silencia
só para não gritar






nuno travanca
31 julho 2006







31 janeiro 2007

LXXIX. na noite obscura





alguém roubou uma tecla ao piano, sentiu, de súbito, o seu coração dividido, uma nota que um ladrão roubara dessa carreira ________ ouviu-se um som plangente.
Se não levou toda a carteira, evaporou-se aquela parte da melodia nas mãos de alguém. E o piano perdeu o seu fragmento de potência. Não ergue mais todo o falo, foi o que sentiu o desvario da mulher _________ e desejou que a tromba do elefante se levantasse, e fosse procurar o cavalo derrubado no mar, onde vivia, à tona, um bando de noctívagos que consumiam ansiedade e pobreza. A nota estava com eles. Para que fossem destruídos pela fome ancestral/angélica que traziam no ouvido.


Uma tecla musical desaparecida corresponde a urna pessoa sem vista para quem vê. Essa moeda de olhar cego,
onde brilharia? Onde estava o cego?
À distância a que se encontra a mulher de outrora da mulher da noite obscura. Na esquina de uma rua, a vender doces de solidão.
— Quem quer doces da noite obscura? — apregoava. — Aí estava o cego, à margem das páginas que, à sua volta, se suicidavam.
Apregoava: «Doces da noite obscura. Doces de solidão».

E muitos jantavam unicamente esses doces, sem nenhum gosto, a não ser o da noite que os guiava ________ a alguns, muito poucos.





maria gabriela llansol
amigo e amiga
curso de silêncio de 2004
assírio & alvim
2006



29 janeiro 2007

harold pinter / mensagem





Jill. O Fred telefonou. Não pode esta noite.
Disse que ligava outra vez logo que desse.
Eu disse (por ti) OK, não há problema.
Disse para eu te dizer que ele estava bem,
Só a merda, disse ele, sabes, fica colada,
A merda que tens de combater.
Às vezes não é mais do que um monte de merda ambulante.

Eu própria estou bem familiarizada com o pivete,
Disse-lhe eu, e aconselhei-lhe calma.
Não deixes que esses cabrões te deitem abaixo,
Descontrai um bocado a pressão,
Vai à cidade, queima uma pessoa até à morte,
Descobre uma outra puta, dá-lhe uma martelada,
Vive a juventude até ela se acabar,
Dá um pontapé nos tomates do primeiro cego que encontrares.

Mas ele vai ligar outra vez.

Eu volto à hora do chá.

A tua mãe que te adora.





harold pinter
várias vozes
trad. vários
quasi
2006





26 janeiro 2007

jean genet



A lantejoula é uma roda minúscula de metal dourado,
com furo ao centro. Fina e leve, até na água flutua.
Por vezes, duas ou três ficam coladas aos caracóis
de um acrobata.

Esse amor - mas quase em desespero,
mas carregado de ternura - que deves mostrar
pelo teu arame, tanta força terá como o arame
que vai suportar o teu peso.
Conheço os objectos, a malignidade que têm,
a crueldade, a gratidão também.
Estava morto, o arame
- ou mudo se quiseres, ou cego -
e olha: vai viver agora, e falar.

Vais amá-lo
e de um amor quase carnal.
Antes de começares o treino todas as manhãs,
com ele tenso e a vibrar, vai dar-lhe um beijo.
Pede-lhe que aguente o teu peso
e te conceda elegância e nervosidade à perna.
No fim da sessão vai saudá-lo e agradecer-lhe.
E à noite, já enrolado na caixa, vê-lo e fazer-lhe festas.
E encosta, muito meigo, a tua face à dele.

(...)





jean genet
o funâmbulo

trad. aníbal fernandes
hiena editora
1984