22 setembro 2025

zbigniew herbert / fragmento de um vaso grego

  

Em primeiro plano vê-se
o corpo formoso de um jovem
 
a barba recai-lhe sobre o peito
um joelho dobrado
os braços como ramos secos
 
fechou os olhos
até a Eros renuncia
 
cujos dedos mergulhados no ar
cabelos soltos
e contornos da túnica
formam três círculos de tristeza
 
ele fechou os olhos
renuncia à armadura de bronze
 
ao belo elmo
adornado com sangue e crista negra
ao escudo quebrado
à lança
 
fechou os olhos
renuncia ao mundo
 
as folhas pairam no ar silente
um ramo treme com a sombra de pássaros em debandada
e somente um grilo escondido
nos cabelos ainda vivos de Mémnon
canta com convicção
o elogio da vida
 
 
 
zbigniew herbert 
poesia quase toda
tradução de teresa fernandes swiatkiewicz
cavalo de ferro
2024
 



21 setembro 2025

joão rebocho / eu pensei



 

 
eu pensei,
no meu livre arbítrio,
trazer-te a este livro
em versos abreviados;
fazer-te o pequeno almoço
escolher música para ti
bravio, a desnivelar:
vai embora liberdade de escolha,
um revólver para eu
aceitar a tua opção
ou dar um tiro no ouvido?
 
 
 
joão rebocho
obrigado é sozinho
edições fantasma
2025
 


 

20 setembro 2025

catarina costa / viagem à tua terra

 


 

 
Procurei-te no cemitério local pelo teu nome e foto
e não te encontrei –
 
a tua ausência era sinal de que ainda estavas vivo
 
não precisei de te ver
para voltar em paz
 
acabara de visitar uma terra misteriosa
com a sua necrópole histórica
e intacta
 
 
 
catarina costa
nervo/25 setembro / dezembro 2025
colectivo de poesia
2025
 



19 setembro 2025

paul auster / meridiano

  
 
Pelo verão afora,
junto ao declive de luz erodida
das nossas mãos, escuras parteiras de dunas:
as tuas pedras
ruindo de volta à vida
à tua volta.
 
Atrás da minha translúcida pálpebra de ébano,
uma estrela prematura,
expurgada de um inferno de bolbos,
ergue-te, inocente,
rumo à manhã, e povoa a tua sombra
de nomes.
 
Rimada de noite. Funda de arado.
Próxima.
 
 
 
paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002
 



18 setembro 2025

paul bowles / ed djouf

  
Chegamos
Em nove etapas, de sete dias cada uma.
Amamo-nos a pontapés.
Morremos de insolação.
Pó de ouro, melodia de cinzas
Confiai-me um dia de silêncio.
Vendi-lhe escorpiões ao longo de trinta e oito milhas.
No desenho animado do horizonte
Irrompem novamente as loucas cristas.
Aqui sente-se a gasolina, o progresso, a agonia.
Em nove etapas, de oito dias cada uma
Chegamos ao silêncio.
 
                                                    1934
 
 
paul bowles
poemas
trad. josé agostinho baptista
assírio & alvim
2008





 

17 setembro 2025

john updike / televisão

  
 
Ligo-a como se fosse uma torneira,
nem frio nem quente, só tépido infotenimento,
e dela jorram as provas cintilantes
de conflitos, misérias, concupiscência,
desatrelados pouco a pouco, em remissões
de publicidade ansiosa que antecipa
para nosso bem a melhor vida dependente
de uma compra, de alguma aquisição indispensável.
 
Um carro lustroso dá curvas na chuva murmurante,
uma praia de alvura óssea acolhe peles bronzeadas,
um toalhete acalma as rugas de uma bela enrugada,
um unguento consola a dor sedentária,
dentes falsos resplandecem, a cerveja provoca alegria,
e cabelos pintados arremessam a cor pelo ecrã:
erupções de luz bebidas pelo meu cérebro,
que depressa se cansa, até ficar sequioso outra vez.
 
 
 
john updike
ponto último e outros poemas
trad. ana luísa amaral
civilização editora
2009




16 setembro 2025

paul celan / na selva do sangue

  
 
NA SELVA DO SANGUE, aí
está a despedida, de dedos
finos, em
cada ponta, em forma de
coração, uma
lente, aí
os tigres caçam
o dia.
 
 
 
paul celan
a morte é uma flor
trad. de joão barrento
relógio d´água
2022





15 setembro 2025

cesare pavese / as gerações não envelhecem

  
 
19 de Abril 1940
 
As gerações não envelhecem. Todos os jovens, de qualquer época e civilização, têm as mesmas possibilidades de sempre.
O Império Romano não caiu por causa da decadência da raça (tanto assim é que as gerações contemporâneas, que se sucederam às que tinham visto cair o edifício político, construíram um outro, espiritual – a Igreja Católica), mas pela mudança de condições económicas e sociais, que deslocaram as forças (anquilose económica, descentralização provincial, invasões bárbaras, etc.).
 
 
 
cesare pavese
o ofício de viver - diário (1935-1950)
trad. alfredo amorim
relógio d´água
2004




 

14 setembro 2025

salvador dali /diário de um génio



 
12 de agosto, 1953
 
 
À noite grande largada de balões. Um deles tem a forma de um camponês catalão. Quase que se incendeia e em seguida perde-se no infinito. Quando já está do tamanho de uma pulga, alguns dizem: «Ainda o vejo!», outros: «Perdeu-se!». Alguém julga sempre que pode vê-lo ainda. Isso faz-me pensar na dialéctica de Hegel que é tristíssima porque nela tudo se perde no infinito: cada dia teremos mais necessidade do espaço finito.
 
Vemos cair do céu uma estrela verde-veronese, a maior que já vi e comparo-a a Gala que foi para mim a mais bem visível estrela cadente, a mais bem delimitada, a mais perfeita.
 
 
 
salvador dali
diário de um génio
tradução de josé luís luna
ulisseia
1965
 




 

13 setembro 2025

virgínia woolf / voltamos de roma

  
 
(1926)
Domingo, 1 de Maio
 
 
Voltámos de Roma na quinta-feira à noite; daquela outra vida privada que agora tenciono ter para sempre. Há toda uma existência em Itália: à parte desta. Não se é ninguém em Itália, não se tem um nome, nem vocação, nem passado. E, depois, não há ali apenas a beleza, mas um relacionamento diferente. No conjunto, creio que nunca desfrutei um mês tanto. Que capacidade de desfrutar eu tenho! Gostei de tudo. Quem me dera não ser tão ignorante do italiano, da arte, da literatura, etc. Mas não me posso alargar agora sobre isto, ou penetrar na grande massa de sentimentos que se formou em mim. Quando regressámos, às 11 e meia, encontrámos a Nelly na cama, com uma misteriosa enfermidade dos rins. Isto foi um choque, o café foi um choque, tudo foi um choque. E depois lembrei-me de que o meu livro está prestes a sair. As pessoas dirão que sou irreverente – as pessoas dirão mil coisas. Mas creio, honestamente, que me importo muito pouco desta vez – mesmo em ralação à opinião dos meus amigos. Não tenho a certeza se é bom. Fiquei desiludida quando o li todo a primeira vez. Mais tarde, gostei. De qualquer modo, é o melhor que sei fazer. Mas será bom ler as minhas coisas quando estão impressas, criticamente? É encorajador que, apesar da obscuridade, afectação, etc., as minhas vendas cresçam constantemente. Já vendemos 1220 exemplares antes da publicação, e creio que atingirá os 1500, o que, para uma escritora como eu, não é mau. Mas, para mostrar que sou genuína, dou por mim a pensar noutras cisas, absorvida e esquecendo que sairá na quinta-feira. O Leonard nunca pensa no seu livro. a Vita volta na sexta-feira. Está agradável, frio, limpo, jantamos fora, fuma-se um charuto.
 
 
 
virgínia woolf
diários
trad. jorge vaz de carvalho
relógio d´água
2018





 

12 setembro 2025

joão miguel aragão / planos para a noite

  
 
Compor, decompor madrigais
em madrugadas a ferro e fogo.
Demorar o olhar no ser amado,
armado de amor até aos dentes.
 
 
 
joão miguel aragão
pacto
poética edições
2025



11 setembro 2025

miguel oliva teles / por todo o lado

  
 
os frutos
descem da árvore
as raízes abrem
e o amor
entorna
 
por todo
o lado.
 
 
 
miguel oliva teles
errando
editora urutau
2021




10 setembro 2025

pedro de queirós tavares / fulminantes (em vilar do paraíso)

  
 
Na minha rua brincávamos à roleta-russa
com pistolas de fulminantes
Não era carnaval nem dia das bruxas
em Vilar do Paraíso tímpanos para quê
 
 
pedro de queirós tavares
se tens fósforos
fresca / poetria
2023





09 setembro 2025

miguel bonneville / livro do daniel

  
 
LIV.
 
poder dizer:
aquilo que me dás ao amar-me
é a possibilidade de desaparecer –
 
estou a redescobrir o amor através das palavras.
 
as outras uniões
terão de vir depois.
 
 
 
miguel bonneville
livro do daniel e outros textos
editora urutau
2024




 

08 setembro 2025

izidro alves / metanoia

  
Se fosse hoje
Tinha tirado um curso superior
Talvez de latim e grego
Para falar com os deuses
E nunca nunca nunca
Esta maneira tosca de fazer versos
Este jeito de arquear as mãos
De alimentar os pombos
Nos jardins públicos
Com flores amarelas nos passeios.
 
 
 
izidro alves
cédula do mundo
labirinto
2025




07 setembro 2025

filipe marinheiro / porque nos prendemos a um lugar seguro?




 

 
porque nos prendemos a um lugar seguro?
se o mais importante é a calma, a pureza, a unidade e o modo
como as árvores de mar se enraízam no solo.
– luminoso solo em potência.
 
 
 
filipe marinheiro
a morte do amor
cordel d’ prata
2025
 


 

06 setembro 2025

joão rebocho / a morte

  
 
a morte
caminha ao nosso lado,
carregamo-la às costas,
a vida toda
alimentada na boca,
debruçados no poço;
a de quem nos interessa e amamos,
 
sempre a morte,
do profundo sono
ao cume do Everest,
e também pesa o
medo dela,
trinta vezes mais,
e não peses que é só tédio
repetido
 
 
 
joão rebocho
altas temperaturas
fernando dos santos
2024
 


05 setembro 2025

herberto helder / aberto por uma bala

 



 

 

Aberto por uma bala
de fora para dentro. Como um olhar de Deus,
ou da paisagem,
até à raiz do nervo de que vivo todo.
Aberto, descoberto.
Ou fechado inteiro para sempre.
E ao furo imaginário queimado
reflui o sangue do mundo.
O nó mais duro, o puro nó da carne
– o centro.
Furioso fulcro do espírito.
É aí que penso.
Por onde falo ainda tão depressa
que ressuscito, ardido.
 
 
 
herberto helder
flash
a cura di carlo vittorio cattaneo
empira
roma
1987






04 setembro 2025

cesare pavese / paisagem VIII

  
 
As recordações começam ao cair da tarde
com o hálito do vento a erguer o rosto
e a escutar a voz do rio. A água
é a mesma, na escuridão, dos anos mortos.
 
No silêncio da escuridão eleva-se um murmúrio
onde passam vozes e risos distantes;
acompanha o rumor uma cor inútil,
de sol, margens e olhos claros.
Um Verão de vozes. Cada rosto contém
como um fruto maduro um sabor passado.
 
Cada olhar que volta conserva um gosto
a erva e a coisas impregnadas de pôr-do-sol
na praia. Conserva um hálito de mar.
como um mar nocturno é esta vaga sombra
de ânsias e arrepios, que o céu roça
e que volta ao fim de cada dia. As vozes mortas
assemelham-se à rebentação daquele mar.
 
 
 
cesare pavese
trabalhar cansa
trad.carlos leite
cotovia
1997





 

03 setembro 2025

claudio rodríguez / sem epitáfio

  
Levanta voo entre os flocos cegos
de cada letra. Solta
uma inocência que então se grava
mesmo ao meio da alma. Deixa, deixa
tal mistério, e tal proximidade,
tal segredo que é já renascimento.
A vida pressente-se. Vai, vai. Foi
essa harmonia de pesar e graça,
tal a felicidade que é verdade
e agora alumia o teu ofício
com o seu silêncio fugidio, em som
sereno como de água ao meio-dia.
Levanta voo. Não entres
neste corpo total:
onde amanhece.
 
 
 
claudio rodríguez
sem epitáfio
trad.miguel filipe mochila
língua morta
2019





 

02 setembro 2025

joan margarit / chegas tarde ao teu tempo

  
Chegas tarde ao teu tempo. palavras duras
que escuto agora como uma derrota.
Mas já não sei de nenhum combate,
nem que tempo era o meu. É uma pena
não se ser ninguém, ter errado
o comboio, perdido as malas,
adormecido no banco, passar ao largo,
e achar-se agora sem roupa limpa,
cansado, num hotel reles de uma só
e má estrela, que deve ser a minha.
Prescindirei de tudo menos do poeta
que fica do desastre. Fingirei ver
que no fim de contas errei o século:
isto será Paris e eu Verlaine.
 
 
 
joan margarit
misteriosamente feliz
trad. miguel filipe mochila
flâneur / língua morta
2020




01 setembro 2025

nizzar qabbani / sobre o amor marinho

  
 
sou o teu mar, senhora minha,
e não me perguntes da viagem
nem do tempo da partida e da chegada:
só tens de
esquecer os impulsos da terra
e obedecer às leis do mar
e entrar-me como peixe enfurecido;
racha o navio em dois pedaços
e o horizonte em dois pedaços
e a minha vida em dois pedaços
 
 
 
nizzar qabbani
um árabe é um árabe é um árabe, um árabe
breve antologia de poesia árabe
versões e traduções de joana santos e andré simões
contracapa
2022