30 abril 2019

alexandre o'neill / amigos pensados: gente de pau e manta



Nunca jantam, quando jantam,
onde almoçam, quando almoçam.

Condenados, pois claro, à revelia,
o que deixam é um nome nos arquivos
e continuam maus, sornas e vivos.

O aguardente aquece-lhes a casa,
o tabaco fuma-lhes a prosa.

Quando dormem,
nem a formiga os acorda.

Aceitam trabalho aqui,
Mas sobretudo acolá.

É gente de pau e manta,
ó minha linda,
gente que pra ti não há.


alexandre o´neill
feira cabisbaixa 1965
poesias completas
assírio & alvim
2000






29 abril 2019

carlos de oliveira / papel




                Pego na folha de papel, onde o bolor do poema se infiltrou, levanto-a contra a luz, distingo a marca de água (uma ténue figura emblemática) e deixo-a cair. Quase sem peso, embate na parede, hesita, paira como as folhas das árvores no outono (o mesmo voo morto, vegetal) e poisa sobre a mesa para ser o vagaroso estrume doutro poema.



carlos de oliveira
a leve têmpera do vento
antologia poética
quasi
2001













28 abril 2019

natália correia / o livro dos amantes




III
Príncipe secreto da aventura
em meus olhos um dia começada e finita.
Onda de amargura numa água tranquila.
Flor insegura enlaçada no vento que a suporta.
Pássaro esquivo em meus ombros de aragem
reacendendo em cadência e em passagem
a lua que trazia e se apagou.



natália correia
poemas
antologia poética
dom quixote
2018







27 abril 2019

josé de almada negreiros / a invenção do dia claro



[…]

Imaginava eu que havia tratados da vida das pessoas, como há tratados da vida das plantas, com tudo tão bem explicado, assim parecidos com o tratamento que há para os animais domésticos, não é? Como os cavalos tão bem feitos que há!

Imaginava eu que havia um livro para as pessoas, como há hóstias para cuidar da febre. Um livro com tanta certeza como uma hóstia. Um livro pequenino, com duas páginas, como uma hóstia. Um livro que dissesse tudo, claro e depressa, como um cartaz, com a morada e o dia.

[…]


josé de almada negreiros
poesia
estampa
1971







26 abril 2019

sophia de mello breyner andresen / quadrado



Deixai-me com a sombra
Pensada na parede
Deixai-me com a luz
Medida no meu ombro
Em frente do quadrado
Nocturno da janela



sophia de mello breyner andresen
a noite e a casa
obra poética
assírio & alvim
2015








25 abril 2019

josé gomes ferreira / só hoje


XXXI

Só hoje
sinto esta verdade
em carne e sangue
de sol comum.

Liberdade
– muro transparente de cada um.



josé gomes ferreira
poesia V
grito plural 1958
portugália
1973






24 abril 2019

gil t. sousa / desertos


2-

da luz
nem sempre quis a
a verdade

tenho agora
vícios de deserto
e o coração

pede-me sombras curtas
não confio no vento,
esse pássaro louco

que despreza a cor
do alecrim
e da tâmara madura

estou cansado
e assisto de longe
à traição da primeira hora

já só escrevo na areia quente
o frio que não
posso guardar

mas danço
como o orvalho
de flor em flor

e agora
qualquer madrugada me serve
para despertar



gil t. sousa
desertos







23 abril 2019

eduardo pitta / detenho-me a roer



Detenho-me a roer
os dias que ainda faltam
e conto a mim mesmo
com desencanto
histórias velhas como o tempo
histórias que sirvam de ponte
entre o passado e o futuro.

E tão pouco tempo para as contar.


eduardo pitta
um cão de angústia progride
desobediência
poemas escolhidos
dom quixote
2011







22 abril 2019

rui knopfli / baldio



O menino que eu fui debruça-se furtivo
de meus olhos sobre o recanto da paisagem.
Entre a dureza austera dos prédios
e o largo sorriso colorido das vidraças
aquele recanto que sobrou da paisagem
pertence intacto ao menino que eu fui outrora
e o menino que eu fui outrora desce
alvoraçado de meus olhos, desliza
entre o capim, atira pedras ao gala-galas
e salta sobre velhas folhas de zinco
apodrecido, num cenário querido de girassóis
antigos. Então parto dali
e o menino que fui regressa extenuado
e adormece na sombra dos meus olhos.


rui knopfli
mangas verdes com sal (1969)
memória consentida
20 anos de poesia 1959/1979
imprensa nacional -casa da moeda
1982






21 abril 2019

álvaro de campos / reticências



Arrumar a vida, pôr prateleiras na vontade e na acção.
Quero fazer isto agora, como sempre quis, com o mesmo resultado;
Mas que bom ter o propósito claro, firme só na clareza, de fazer qualquer coisa!

Vou fazer as malas para o Definitivo,
Organizar Álvaro de Campos,
E amanhã ficar na mesma coisa que antes de ontem — um antes de ontem que é sempre...
Sorrio do conhecimento antecipado da coisa-nenhuma que serei.
Sorrio ao menos; sempre é alguma coisa o sorrir...
Produtos românticos, nós todos...
E se não fôssemos produtos românticos, se calhar não seríamos nada.
Assim se faz a literatura...
Santos Deuses, assim até se faz a vida!

Os outros também são românticos,
Os outros também não realizam nada, e são ricos e pobres,
Os outros também levam a vida a olhar para as malas a arrumar,
Os outros também dormem ao lado dos papéis meio compostos,
Os outros também são eu.
Vendedeira da rua cantando o teu pregão como um hino inconsciente, Rodinha dentada na
relojoaria da economia política,
Mãe, presente ou futura, de mortos no descascar dos Impérios,
A tua voz chega-me como uma chamada a parte nenhuma, como o silêncio da vida...
Olho dos papéis que estou pensando em arrumar para a janela por onde não vi a vendedeira
que ouvi por ela,
E o meu sorriso, que ainda não acabara, inclui uma crítica metafísica.
Descri de todos os deuses diante de uma secretária por arrumar,
Fitei de frente todos os destinos pela distracção de ouvir apregoando,
E o meu cansaço é um barco velho que apodrece na praia deserta,
E com esta imagem de qualquer outro poeta fecho a secretária e o poema...
Como um deus, não arrumei nem uma coisa nem outra...

15-5-1929


fernando pessoa
poesias de álvaro de campos
edições ática
1944






20 abril 2019

ezra pound / numa estação de metro



A visão destas faces dentre a turba;
Pétalas num ramo húmido, escuro.



ezra pound
antologia poética
personae
tradução m. faustino
editora ulisseia
1960





19 abril 2019

abd al-karim al-tabbal / canção de um março triste



cuidado! meus queridos forasteiros
em vossa própria casa, e na pátria,
entre as gentes e na rua,
com o escreverdes com a vossa pena nas folhas brancas
já que as palavras detestam o vazio
e com o lerdes nos livros à beira do desespero,
porque o sangue dos rostos se transformam em água,
e com usardes albornozes cor de neve
já que vos aprisionam.
ou turbantes de açucena
porque vos enlouquecem.

cuidado! meus queridos forasteiros
com o branco, porque o branco
é uma boa mortalha,
ornamento dos cavaleiros nas batalhas das romarias,
e armadilha da tinta
sobre as casas e a pátria.




abd al-karim al-tabbal
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
trad. adalberto alves
assírio & alvim
2001








18 abril 2019

jorge luís borges / a uma moeda




Fria e tempestuosa a noite em que zarpei de Montevideu.
Ao dobrar o Cerro,
atirei do mais alto convés
uma moeda que brilhou e se afogou nas águas barrentas,
uma coisa de luz arrebatada pelo vento e pela treva.
Tive a sensação de ter cometido um acto irrevogável,
de acrescentar à história do planeta
duas séries incessantes, paralelas, talvez infinitas:
o meu destino, feito de soçobro, de amor e de vãs vicissitudes
e o daquele disco de metal
que as águas dariam ao suave abismo
ou aos remotos mares que ainda trituram
despojos dos saxões e dos viquingues.
A cada instante do meu sonho ou da minha vigília
corresponde outro da cega moeda.
Por vezes senti remorsos
e outras inveja
de ti, que estás, como nós, no tempo e no seu labirinto
e que não sabes isso.



jorge luís borges
obras completas 1952-1972 vol. II
o outro, o mesmo (1964)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998





17 abril 2019

cesare pavese / civilização antiga




É verdade que, ao olhá-lo, o dia não treme. E as casas
estão firmes, plantadas nas calçadas. O martelo
daquele homem sentado repica numa pedra
enterrada na terra mole. O rapaz que fugiu
de manhã ignora que aquele homem está a trabalhar
e pára a olhar para ele. Na rua não se trabalha.

O homem está sentado à sombra que cai do alto
duma casa, mais fresca que a sombra duma nuvem,
e não devolve o olhar, pica a pedra, alheado.
O repicar da pedra chega longe
no empedrado que o sol sombreia. Não há
rapazes nas ruas. Ele é o único
e repara que os outros são homens ou mulheres
que não vêem o que ele vê e passam rápidos.

Mas este homem está a trabalhar. O rapaz olha para ele,
hesitando à ideia de que um homem trabalhe
na rua, sentado como se fosse um pedinte.
E também os outros que passam, parecem absortos
em qualquer coisa que têm de concluir e ninguém olha
para trás ou em frente, a todo o comprimento da rua.
Se a rua é de todos, há que a gozar
e não fazer outra coisa, olhar à volta,
à sombra ou ao sol, apanhar a fresca.

As ruas escancaram-se como uma porta,
mas ninguém mete por elas. Aquele homem sentado
nem sequer se apercebe, como se fosse um pedinte,
das pessoas que de manhã vão e vêm.



cesare pavese
cidade no campo
trabalhar cansa
trad.carlos leite
cotovia
1997







16 abril 2019

till lindemann / medo




O girassol tem sede
morre de pé à janela
chora as lágrimas que restam,
amarelas na sala
e que triste é ver isto

Visto-me, cheio de medo

Velho, seco e por todos esquecido,
vai acontecer-me o mesmo
depressa se esvai todo o esplendor
e tão belo que ele ontem era



till lindemann
nas noites tranquilas
trad. pedro garcia rosado
alma mater
2018






15 abril 2019

pat boran / quando estiveres a mudar de casa



Quando estiveres a mudar de casa
leva tempo a escrever a direcção no caderno de endereços
porque os fantasmas cujos nomes lá estão
procuram constantemente novas casas,
como estudantes do primeiro ano em cabines telefónicas
                                                                               [embaciadas.

Quando chegares com os livros
e a frigideira já esses fantasmas se terão
sentado nessa poltrona, terão descoberto
rangidos muito demorados do soalho,
estarão acampados na orla idílica dessa cama virgem.



pat boran
o sussurro da corda
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018






14 abril 2019

david mourão-ferreira / casas caiadas



Por entre casas caiadas
de luar e de silêncio,
paira no meio da estrada
a poeira de outros tempos...

Por entre casas caiadas,
mas com desgraça por dentro
(ó varandas enfeitadas
com trepadeiras de vento!),

algumas desmanteladas,
de apodrecidas empenas
(todavia nos telhados
antenas e cataventos...),

por entre casas caiadas,
por entre casas (Silêncio,
que ronda o medo na estrada
em automóveis cinzentos!)

há jorros de luz salgada,
há torrentes de veneno...

E dentro daquelas casas
quando foi que nós morremos?

  

david mourão-ferreira
lira de bolso
publicações dom quixote
1971






13 abril 2019

roberto juarroz / as coisas imitam-nos




As coisas imitam-nos.
Um papel arrastado pelo vento
reproduz os tropeços do homem.
Os ruídos aprendem a falar como nós.
A roupa adquire a nossa forma.

As coisas imitam-nos.
Mas no final
nós imitaremos as coisas.



roberto juarroz
a árvore derrubada pelos frutos
trad. rui caeiro, duarte pereira e diogo vaz pinto
língua morta
2018






12 abril 2019

egito gonçalves / notícia para colar na parede




Por aqui andamos a morder as palavras
dia a dia no tédio dos cafés
por aqui andaremos até quando
a fabricar tempestades particulares
a escrever poemas com as unhas à mostra
e uma faca de gelo nas espáduas
por aqui continuamos ácidos cortantes
a rugir quotidianamente até ao limite da respiração
enquanto os corações se vão enchendo de areia
lentamente
lentamente


egito gonçalves
o amor desagua em delta
editorial inova
1971






11 abril 2019

al berto / salsugem



8
contaram-me que eram pesadas embarcações
tinham singrado tormentosos mares contornado arquipélagos
atravessado invernos e trópicos que não vêm ainda nos mapas
e chegavam agora ao sonho
carregados de madeiras preciosas pimenta peles almíscar
canela pérolas animais empalhados
frutos cujos nomes são difíceis de dizer
e largam prolongados sabores na polpa dos dedos

vinham as tripulações exaustas
pelos rigorosos ventos e agitadas águas longe de casa
onde o lume permanece aceso de refeição para refeição
alumiando a noite e o coração das mulheres insones
ciciando nomes de portos ladainhas para consolar a dor
cuidam dos filhos e das frieiras com as bondosas mãos
sujas de azeite… bordam intermináveis cantilenas
vergadas para as toalhas manchadas de vinho e gordura barata

quando recebiam recado dalgum naufrágio
o tempo punha-se a passar sobre elas
o luto fazia-as suspirar no vapor dos tachos de comida
o sal desbotava-lhes a cor ainda jovem do olhar
engelhava-lhes bocas e seios… punham-se a cismar
depois de terem arrumado na gaveta os retratos dos homens
lembravam-se pouco
iam em bandos até ao porto
sentavam-se encolhidas dentro dos rudes xailes
dormitavam à espera que acostassem mais navios
para o descarrego de panos finos jade tabaco marfim cereais
e o amor incerto dalgum homem acabado de chegar
da parte ainda obscura do mundo



al berto
salsugem
o medo
assírio & alvim
1997