Arrumar a vida, pôr prateleiras na vontade e na
acção.
Quero fazer isto agora, como sempre quis, com o
mesmo resultado;
Mas que bom ter o propósito claro, firme só na
clareza, de fazer qualquer coisa!
Vou fazer as malas para o Definitivo,
Organizar Álvaro de Campos,
E amanhã ficar na mesma coisa que antes de ontem —
um antes de ontem que é sempre...
Sorrio do conhecimento antecipado da coisa-nenhuma
que serei.
Sorrio ao menos; sempre é alguma coisa o sorrir...
Produtos românticos, nós todos...
E se não fôssemos produtos românticos, se calhar
não seríamos nada.
Assim se faz a literatura...
Santos Deuses, assim até se faz a vida!
Os outros também são românticos,
Os outros também não realizam nada, e são ricos e
pobres,
Os outros também levam a vida a olhar para as malas
a arrumar,
Os outros também dormem ao lado dos papéis meio
compostos,
Os outros também são eu.
Vendedeira da rua cantando o teu pregão como um
hino inconsciente, Rodinha dentada na
relojoaria da economia política,
Mãe, presente ou futura, de mortos no descascar dos
Impérios,
A tua voz chega-me como uma chamada a parte
nenhuma, como o silêncio da vida...
Olho dos papéis que estou pensando em arrumar para
a janela por onde não vi a vendedeira
que ouvi por ela,
E o meu sorriso, que ainda não acabara, inclui uma
crítica metafísica.
Descri de todos os deuses diante de uma secretária
por arrumar,
Fitei de frente todos os destinos pela distracção de
ouvir apregoando,
E o meu cansaço é um barco velho que apodrece na
praia deserta,
E com esta imagem de qualquer outro poeta fecho a
secretária e o poema...
Como um deus, não arrumei nem uma coisa nem
outra...
15-5-1929
fernando pessoa
poesias de álvaro de campos
edições ática
1944
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