13 março 2016

gil t. sousa / os pianos órfãos



um bando de pianos órfãos
atravessava a neve

e deixava um rasto de ouro
no silêncio negro da tarde

velávamos os raros fios de sol
que nos teciam a melancolia

e partíamos ricos
dando-nos ao assalto das horas

livres e amantes


gil t. sousa
água forte
poesia reunida
editora medita
2014



12 março 2016

irene lisboa / não




Sentada e brincando com a areia…

Há tanto tempo, tantos meses que não vejo areia

Deixando correr a areia das mãos distraidamente…

É a areia que me dá a imagem, a plástica expres-
são dos meus pensamentos.
Enchem-me a cova da mão, aquecem-na e logo
começam correndo, perdendo-se…
vem gente, passantes, vagos interessados  e incre-
pam-me:
Que fizeste dos teus pensamentos?
Não os vêem, grãos de areia disseminados.

Mas este pó sem consistência, imponderável, dos
pensamentos, por força se há-de fixar e brilhar?
Não.
O pó, a poeira no ar se respira, o próprio bafo
as espalha.



irene lisboa
um dia e outro dia…
outono havias de vir
obras de irene lisboa
volume I poesia I
editorial presença
1991



11 março 2016

carlos de oliveira / posto de gasolina



Poiso a mão vagarosa no capô dos carros como se afagasse a crina dum cavalo. Vêm mortos de sede. Julgo que se perderam no deserto e o seu destino é apenas terem pressa. Neste emprego, ouço o ruído da engrenagem, o suave movimento do mundo a acelerar-se pouco a pouco. Quem sou eu, no entanto, que balança tenho para pesar sem erro a minha vida e os sonhos de quem passa?



carlos de oliveira
sião
organização e notas de
al berto, paulo da costa domingos e rui baião
lisboa
1987



10 março 2016

sophia de mello breyner andresen / se todo o ser ao vento abandonamos



Se todo o ser ao vento abandonamos
E sem medo nem dó nos destruímos,
Se morremos em tudo o que sentimos
E podemos cantar, é porque estamos
Nus, em sangue, embalando a própria dor
Em frente às madrugadas do amor.
Quando a manhã brilhar refloriremos
E a alma beberá esse esplendor
Prometido nas formas que perdemos.



sophia de mello breyner andresen
sião
organização de al berto, paulo da costa domingos
e rui baião
frenesi
1987




09 março 2016

tomaz kim / deve e haver



Que rosto procuramos no papel pautado
       Enquanto o aparo range na tarde sem-fim
E as moscas zumbem e a modorra cai,

Que corpo procuramos no escuro da noite
Envolvendo o silêncio do quarto alugado
E na repulsa de um leito solitário,

Que voz procuramos ouvir dia após noite
Nas ruas e casas e becos e praças e jardins
Não sabemos
Senão depois de os termos ignorado.


tomaz kim
cadernos de poesia
1952



08 março 2016

paul éluard / juventude gera juventude



Fui tal qual uma criança
E tal qual um homem
Conjuguei com paixão
O verbo ser e a minha juventude
Com vontade de ser homem

Queremo-nos mal quando se é jovem
Um homenzinho
Teria querido fazer de mim uma criança grande
Mais forte e mais justa do que um homem
E mais lúcida do que uma simples criança

Juventude força fraterna
O sangue repete a primavera
A aurora é de todas as idades
Numa qualquer delas se abre a porta
Resplandecente da coragem

Como um diálogo de amantes apaixonados
O coração só tem uma boca para falar.


paul éluard
últimos poemas de amor
corpo memorável 1948
trad. maria gabriela llansol
relógio d´água
2002



07 março 2016

pier paolo pasolini / as cinzas de gramsci


II

Entre os dois mundos, a trégua em que não existimos.
Escolhas, dedicações… já outro som não têm
senão o som deste jardim descolorido

e nobre, onde teimoso o embuste
que mitigava a vida se mantém na morte.
Nos medalhões dos sarcófagos, as leigas

inscrições nas pedras cinzentas, curtas e
imponentes, mostram apenas o que resta
dos destinos de gente profana.

Ardem ainda de insaciáveis paixões,
sem qualquer escândalo, os ossos
dos milionários de nações

mais poderosas; rondam ainda os restos
das ironias dos príncipes, dos pederastas,
cujos corpos estão nas urnas espalhadas,

reduzidos a cinzas e não ainda castos.
Aqui o silêncio da morte prova
o silêncio civil de homens que continuam

a ser homens, de um tédio que no tédio
do Parque, discretamente, muda: e a cidade
que, indiferente, o relega para o meio

de tugúrios e igrejas, ímpia na sua piedade,
despe-se nele de todo o seu esplendor. A terra
semeada de urtigas e outras ervas dá

estes magros ciprestes, esta morrinha negra
que salpica os muros em redor
de pálidos rabiscos de buxo, que o crepúsculo

adoça e depois apaga em acres
cheiros de alga… essa erva rara
e inodora, onde roxo mergulha

o ar, com um arrepio de menta,
ou de feno podre, e calma aí começa,
na melancolia do dia, a abafada

trepidação da noite. Rude
é o clima, dulcíssima é a história
deste chão, entre estes muros, onde ressuma

outro chão; desta morrinha que
lembra outra morrinha; e ouvem-se soar
 – familiares em latitudes e

Horizontes onde as florestas inglesas coroam
Lagos perdidos no céu, por entre prados
Verdes como bilhares fosforescentes ou

Esmeraldas: «And O ye Fountains…» – piedosas
invocações




pier paolo pasolini
le ceneri di gramsci
poemas
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005



06 março 2016

fernando lemos / cepti-cidade


           Ao Augusto Figueiredo


Em 1953
     atravessar a avenida só
para do outro lado
ficar a falar de Deus como se o conhecêssemos…
Ouvir cantar pneus
e continuar a supor que são sempre para os outros
todos os Pschitt! ignorantes
Fumar um cigarro entre duas dificuldades
como se fossem dedos
Ir a Paris dizer:  – Que bem!...
e voltar por entre tambores cardíacos

para uma cave de cobras e lagartos

a verificar que surge sempre

um iô-iô antes de uma guerra…

  

fernando lemos
teclado universal
cadernos de poesia
campo das letras
2004



05 março 2016

josé de almada negreiros / momento de poesia



Se escrevo ou leio ou desenho ou pinto
logo me sinto tão atrasado
no que devo à eternidade,
que começo a empurrar p’ra diante o tempo
e empurro-o, empurro-o à bruta
como empurra um atrasado
até que cansado me julgo satisfeito.
(Tão gémeos são
a fadiga  e a satisfação!)
Em troca, se vou por aí
sou tão inteligente a ver tudo o que não é comigo,
compreendo tão bem o que não me diz respeito,
sinto-me tão chefe do que está fora de mim,
dou conselhos tão bíblicos aos aflitos de uma aflição
                                                               que não a minha,
que, sinceramente, não sei qual é melhor:
se estar sozinho em casa a dar à manivela da vida,
se ir por ai e ser Rei de tudo o que não é meu.

lisboa, novembro de 1939


almada negreiros
cadernos de poesia 5
lisboa
1942



04 março 2016

david mourão-ferreira / presídio



Nem todo o corpo é carne … Não, nem todo,
Que dizer do pescoço, às vezes mármore,
às vezes linho, lago, tronco de árvore,
nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco …?

E o ventre, inconsistente como o lodo? …
E o morno gradeamento dos teus braços?
Não, meu amor … Nem todo o corpo é carne:
é também água, terra, vento, fogo …

É sobretudo sombra à despedida;
onda de pedra em cada reencontro;
no parque da memória o fugidio

vulto da Primavera em pleno Outono …
Nem só de carne é feito este presídio,
pois no teu corpo existe o mundo todo!



david mourão-ferreira
obra poética
editorial presença
1996



03 março 2016

per aage brandt / se mudares a entoação duma frase



*
se mudares a entoação duma frase,
por pouco que seja, então é outro que
falará na frase, e se mudares a sua velocidade,
então é outro que falará, e se pegares
na frase com uma pinça como a um in-
secto ou a um preparado, ou se nela, nela repetires
qualquer coisa, então estarás a falar com ironia
e, assim, não poderás estar a falar a sério,
porque o que disseres ou é falso ou tão verdadeiro, que
nem sequer será possível prenunciá-lo

*

  
per aage brandt
livro da noite
trad. maria joão reynaud
poetas em mateus
quetzal
2004



02 março 2016

antónio quadros ferro / ou a empatia



Há-de haver um fundo inesperado no extremo oposto onde
morrem os sonhos, sob os pés onde procuramos a própria
sombra, fundida talvez à luz que um dia ameaçou o regresso
das dores passadas, logo a seguir à infância, muito antes da
poesia.


antónio quadros ferro
ou a empatia
artes e letras atelier
2015






01 março 2016

nicanor parra / paisagem




Vedes essa perna humana dependurada da lua
Como uma árvore crescendo para baixo
Essa perna temível que flutua no vazio
Iluminada apenas pelos raios
Da lua e o ar do esquecimento?

  
nicanor parra
trad. albano martins
relâmpago, revista de poesia nº 17
outubro 2005



29 fevereiro 2016

christoph wilhelm aigner / dois pontos



O vento corre de pés frios
e atira chuva fina como lâminas
corta e fere-nos o rosto
Somos dois pontos num campo
que aparentemente cegos e sem fundamento
se movem um em direcção ao outro


christoph wilhelm aigner
a negação do relógio de pêndulo
stuttgart, DVA, 1996
trad. maria teresa dias furtado
relâmpago, revista de poesia nº 17
outubro 2005


28 fevereiro 2016

reinaldo ferreira / bispo de pádua


              (fragmento)

Ora o céu não é um pálio
Para a passagem de quem
Vai para o trono da morte
Desde as entranhas da mãe,
Nem o mundo coroação,
Nem as vidas que pisamos
Poeira erguida, ao de leve,
Pelo manto que envergamos,
Nem Deus o erro prudente,
Degrau de altura do trono,
Osso de esp’rança atirado
À boca dos cães sem dono.
Nós somos mais, porque vamos
Lutando contra o capricho
Que fez de nós uma estrela
Num firmamento de lixo.


reinaldo ferreira
sião
organização de al berto, paulo da costa domingos
e rui baião
frenesi
1987



27 fevereiro 2016

álvaro lapa / o deserto



O deserto sem nexo, inesperado, tal como surge metaforicamente sentido no imponderável percurso de além-tréguas. Sobrecadência de algum meio-dia já percorrido, já esgotado (em corridas, em percursos múltiplos), e aí se anuncia um excedente percurso a acometer e nesse percurso se revela o deserto. É a experiência pura da terra abrasada, desassombrada, enigmática de neutra. Estranha ao caminhante. Envolve a luz, a distância e a mortalidade consumada do caminhante. A finitude, e os vários amarelos dessas horas solares. Meio-dia, ou mais uma, duas, até sete meias-horas após o meio-dia: as horas magnas da imolação desértica. Em qualquer estrada anexa a um lugar povoado, ao sul. Espírito dos lugares circunvalantes, nas 7 meias-horas do meio-dia, ao sul. Experiência que pode ser instantânea, intervalar. Basta que surja sobre, a mais que, a cadência adquirida de uma manhã esgotada. É nesse além-tréguas, nessa sobre intimidade que o deserto consiste. Ir de rastos, a-té-ao-fim-do-es-pa-ço.


álvaro lapa
sião
organização de al berto, paulo da costa domingos
e rui baião
frenesi
1987



26 fevereiro 2016

cesare pavese / paternidade



Homem só, diante do mar inútil,
À espera da noite, à espera da manhã.
As crianças vêm brincar, mas este homem
Não vê brincar nenhuma junto de si.
Grandes nuvens erguem um palácio sobre as águas
Que todos os dias desaba e ressurge, e põe cor
Nos rostos das crianças. Sempre haverá o mar.

A manhã fere. Sobre esta húmida praia
O sol rasteja, agarrado às redes e às pedras.
Ao sol nublado, o homem caminha junto
Ao mar. não olha as lentas espumas
Que sem descanso tentam escorrer na areia.
A esta hora as crianças dormem ainda
Na tepidez da cama. A esta hora, mulheres
Dormem nas suas camas. Estariam a fazer amor
Se não estivessem sós. O homem despe-se lentamente
E nu como as mulheres longínquas entra no mar.

Depois, à noite, quando o mar se encobre, ouve-se
O grande vazio debaixo das estrelas. As crianças
Nas casas tingidas de vermelho caem de sono,
Por vezes em lágrimas. O homem, cansado de esperar,
Ergue os olhos para as estrelas, que não ouvem nada.
A esta hora, há mulheres a despir crianças
E a adormecê-las. Também as há na cama,
Abraçadas a um homem. Pela janela escura
Entra um sopro rouco, e ninguém o escuta
A não ser o homem que conhece todo o desprezo do mar.


cesare pavese
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de ernesto sampaio
assírio & alvim
2001




25 fevereiro 2016

gonçalo m. tavares / o número 76



Uma vaca, com o número 76 na orelha, está morta, o corpo caído sobre a neve. O excessivo frio súbito matou vários animais – dezenas, centenas, milhares de animais. Mas nenhum animal era igual àquela vaca com o número 76 desenhado numa placa amarela agarrada à orelha. Esse número, sabe-se lá porquê, assusta.

  
gonçalo m. tavares
short movies
caminho
2011



24 fevereiro 2016

luís filipe castro mendes / casas na noite



A luz que vem do passado não bate de frente nas casas,
porque ninguém olha de frente para o que passou ou morreu
e demasiadas coisas fomos deixando assim, mal arrumadas por casas velhas,
até nos darmos conta que desse modo aceleramos o nosso próprio fim
 – mas isso é indiferente aos astros e à luz, a sombra vai caindo e a noite
marcha sobre os nossos passos com a leveza de uma criança.
A vida também não nos olha de frente: fita-nos assim de soslaio
E nós, subreptícios no semblante, fazemo-nos desentendidos.
A poesia é mais uma forma de desconversar, aqui, agora,
ou até nos gritos de quem apenas implora “olhem para mim”,
quando irremediavelmente ficou escuro
e a luz não chega para todos e a noite que nos espera
será para sempre de lua nova.


luís filipe castro mendes
relâmpago
revista de poesia
nr. 36/37 abril/outubro
2015



23 fevereiro 2016

antonin artaud / a rua



A rua sexual anima-se
ao longo das caras mal-avindas,
os cafés pipilando de crimes
desenraízam as avenidas.

As mãos de sexo queimam os bolsos
e os ventres fervem por baixo;
 entrechocam-se os pensamentos,
e as cabeças menos que os buracos.


antonin artaud
doze nós numa corda
poemas mudados para português
por herberto helder
assírio & Alvim
1997



22 fevereiro 2016

luís quintais / quarto de hotel



A cada um a sua Balbec.
Aqui regressas. Aqui escutas
o  búzio da morte.

Entre ti e a gaze do sono
um perigo embala-te:
incerta falésia onde te precipitarás.



luís quintais
angst
falésia
livros cotovia
2002



21 fevereiro 2016

thom gunn / fragmento nocturno



O nevoeiro desce lentamente a colina
E conforme subo mais se adensa:
Fecha-se à minha volta, apodera-se de mim
Como lençóis caídos sobre o chão.

Aqui ficam as últimas e ascendentes ruas,
Galerias, que correm pelas veias do tempo,
Quase familiares, onde rastejo em direcção ao sono
Como nevoeiro e pelo nevoeiro como sono.



thom gunn
a destruição do nada e outros poemas
trad. maria de lurdes guimarães
relógio d´água
1993



20 fevereiro 2016

vicente aleixandre / tens nome



Teu nome,
pois tens nome. A minha vida inteira foi isso:
um nome. Porque o sei não existo.
Um nome respirado não é um beijo.
Um nome perseguido sobre uns lábios
não é o mundo, mas o seu sonho às cegas.
Assim sob a terra, respirei a terra.
Sobre o teu corpo respirei a luz.
Dentro de ti nasci: morri por isso.


vicente aleixandre
antologia de vicente aleixandre
poemas de la consumación
tradução de josé bento
editorial inova
1977



19 fevereiro 2016

fernando pinto do amaral / antevisão


Talvez a alma seja apenas
uma imperfeita câmara escura
onde o que vemos serão cenas
de uma vida futura

e no contorno das imagens
que pouco a pouco se revela
descortinamos personagens
dessa vida mais bela.

Fotografias no avesso
da consciência fugidia
hão-de exigir-nos o seu preço
para a melancolia,

mas é tão bom ficar a vê-las
dentro de nós, num céu fictício
onde cintilam as estrelas
desse puro artifício

iluminando a nossa treva
com a estranha luz de um sobressalto
e é talvez isso que nos leva
a um lugar mais alto.


fernando pinto do amaral
poesia do mundo/3
afrontamento
2001



18 fevereiro 2016

maruyama kaoru / a dor da separação



Pousada numa âncora, uma gaivota pia.
De súbito, sem uma palavra, a âncora desliza.
Surpreendida, a gaivota levanta voo.
Em breve, a âncora empalidece na água, afundando-se.
E o que a gaivota sente torna-se um grito bravio, triste,
Perdido no vento.



maruyama kaoru
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de josé Alberto oliveira
assírio & alvim
2001



17 fevereiro 2016

henri michaux / levai-me



Levai-me numa caravela,
Numa antiga e amena caravela,
Na proa, ou se quiserem, na espuma,
E abandonai-me, lá longe, longe.

Na união a um outro tempo.
No veludo ilusório da neve.
No bafo de alguns cães à volta.
Na extenuada turba das folhas mortas.

Levai-me sem me quebrar, nos beijos,
Nos peitos que se solevam e respiram,
Nos tapetes das palmas das mãos, no sorriso,
Nos renques das articulações e dos ossos longos.

Levai-me, ou antes: ocultai-me, ocultai-me.


henri michaux
doze nós numa corda
poemas mudados para português
por herberto helder
assírio & Alvim
1997