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Hoje, 17 de Julho, está um tempo esplêndido. Sentado no banco, pisco os olhos, por brincadeira, como fazem as crianças, e vejo uma margarida do jardim, com todas as proporções alteradas, estender-se sobre a planície em frente, do outro lado da rua.
A rua corre como uma ribeira tranquila; atravessada de quando em quando por uma motocicleta ou um tractor (são estes, hoje em dia, os verdadeiros sons do campo, não menos poéticos, afinal, que o cantar dos pássaros: sendo raros, fazem sobressair o silêncio da natureza e imprimem-lhe a marca discreta de uma actividade humana), a rua lá vai irrigar uma zona mais afastada da aldeia. Já que esta aldeia, apesar de modesta, tem as suas zonas periféricas. Não será sempre a aldeia, em França, um espaço contraditório? Restrita, centrada, ela não deixa de se prolongar até bastante longe; a minha, muito clássica, tem apenas um largo, uma igreja, uma padaria, uma farmácia e duas mercearias (hoje em dia, devia dizer dois self-services); mas tem também, por uma espécie de capricho que perturba as leis aparentes da geografia humana, dois cabeleireiros e dois médicos. França, país de medida? Digamos antes — e isto a todos os níveis da vida nacional: país das proporções complexas.
Do mesmo modo, o meu Sudoeste é extensível, como aquelas imagens que mudam de sentido consoante o nível da percepção em que decido captá-las. Conheço assim, subjectivamente, três Sudoestes.
O primeiro, muito vasto (uma quarta parte da França), é-me designado instintivamente por um sentimento tenaz de solidariedade (pois estou longe de o ter visitado na sua totalidade): qualquer notícia que me chegue desse espaço toca-me de uma forma pessoal. Ao pensar nisto, parece-me que a unidade desse grande Sudoeste é para mim a língua: não o dialecto (pois não conheço nenhuma langue d’oc); mas o sotaque, porque não há dúvida que o sotaque do Sudoeste formou os modelos de entoação que marcaram a minha primeira infância. Este sotaque gascão distingue-se para mim do outro sotaque meridional, o do Sul mediterrânico; este tem, na França de hoje, algo de triunfante: sustentado por todo um folclore cinematográfico (Raimu, Fernandel), publicitário (azeites, limões) e turístico; o sotaque do Sudoeste (talvez mais pesado, menos cantante) não tem esses títulos de modernidade; para se ilustrar tem apenas as entrevistas dos jogadores de rugby. Eu próprio não tenho sotaque; no entanto, ficou-me da infância um «meridionalismo»: digo «socializmo» e não «socialismo» (quem sabe se assim não serão dois socialismos?).
O meu segundo Sudoeste não é uma região; é apenas uma linha, um trajecto vivido. Quando, vindo de Paris de automóvel (uma viagem que fiz mil vezes), passo Angoulême, um sinal avisa-me que passei o limiar da casa e que entro no país da minha infância; um pequeno bosque de pinheiros de um dos lados, uma palmeira no pátio de uma casa, uma determinada altura das nuvens que dá ao terreno a mobilidade de um rosto. Então começa a grande luz do Sudoeste, nobre e subtil ao mesmo tempo; nunca é cinzenta, nunca é baixa (mesmo quando o sol não brilha), é uma luz-espaço, definida menos pelas cores com as quais afecta as coisas (como no outro Sul) do que pela qualidade eminentemente habitável que dá à terra. Não encontro outra forma de o dizer; é uma luz luminosa. É preciso vê-la, a essa luz (eu diria quase ouvi-la, de tal modo é musical), no Outono, que é a estação soberana deste país; líquida, brilhante, dilacerante porque é a última luz bela do ano, iluminando cada coisa na sua diferença (o Sudoeste é um país de micro-climas), preserva este país de toda a vulgaridade, de toda a gregaridade, torna-o impróprio para turismo fácil e revela a sua aristocracia (não é uma questão de classe, mas de carácter). Dizendo isto de uma maneira tão elogiosa, sinto um certo escrúpulo: não haverá nunca momentos ingratos, neste clima do Sudoeste? Há certamente, mas, para mim, não são os momentos de chuva ou de tempestade (frequentes, no entanto); não são apenas os momentos em que o céu está cinzento; os acidentes da luz, aqui, parece-me, não provocam qualquer «spleen»; não afectam a alma, mas apenas o corpo, por vezes viscoso de humidade, embriagado de clorofila, ou fatigado, extenuado pelo vento de Espanha que torna os Pirinéus muito próximos de um tom violeta: sentimento ambíguo, em que o cansaço acaba por ter algo de delicioso, como acontece sempre que é o meu corpo (e não o meu olhar) a perturbar-se.
O meu terceiro Sudoeste é ainda mais reduzido: é a cidade onde passei a minha infância, e depois as minhas férias de adolescente (Bayonne), é a aldeia onde volto todos os anos, é o trajecto que liga uma à outra e que eu percorri tantas vezes, para ir à cidade comprar charutos ou artigos de papelaria, ou à estação buscar um amigo. Posso escolher entre várias estradas; uma, mais longa, passa pelo interior das terras, atravessa uma paisagem em que se misturam o Béarn e o país Basco; outra, uma deliciosa estrada de campo, segue o cume das encostas que dominam o Adour; do outro lado do rio, vejo uma fileira contínua de árvores, escuras por estarem longe: são os pinheiros das Landes; uma terceira estrada, muito recente (data deste ano), corre ao longo do Adour, na sua margem esquerda: não tem qualquer interesse, a não ser o da rapidez do trajecto e, por vezes, de fugida, o rio, muito largo, muito suave, ponteado pelas pequenas velas brancas de um clube náutico. Mas a estrada que eu prefiro e que de vez em quando escolho seguir por prazer, é a que acompanha a margem direita do Adour; antigamente, servia para rebocar barcos, e vêem-se algumas quintas e casas bonitas. Certamente gosto dela por ter, pela sua natureza, essa dosagem de nobreza e familiaridade que é própria do Sudoeste; poder-se-ia dizer que, ao contrário da sua rival da outra margem, é ainda uma verdadeira estrada, não uma via funcional de comunicação, mas como uma experiência complexa, onde têm simultaneamente lugar um espectáculo contínuo (o Adour é um belo rio desconhecido) e a memória de uma prática ancestral, a de andar, a penetração lenta e como que ritmada da paisagem, que imediatamente adquire outras proporções; retoma-se neste ponto o que ficou dito no princípio, e que é no fundo o poder que tem este país de frustrar a imobilidade e a rigidez dos postais; não vale a pena fotografar; para avaliar, para amar, é preciso vir e ficar, de modo a poder percorrer todas as variações dos lugares, das estações, dos climas, das luzes.
Dir-me-ão: limita-se a falar do tempo, de impressões vagamente estéticas, em todo o caso puramente subjectivas. Mas os homens, as relações, as indústrias, os comércios, os problemas? Mesmo como simples residente, não se apercebe de nada disso? — Entro nestas regiões da realidade à minha maneira, quer dizer, com o meu corpo; e o meu corpo é a minha infância, exactamente como a fez a história. Essa história proporcionou-me uma juventude provincial, meridional, burguesa. Para mim, estas três componentes são indistintas; a burguesia é para mim a província, e a província é Bayonne; o campo (da minha infância), é sempre o interior de Bayonne, rede de excursões, de visitas e de histórias. Por isso, na idade em que a memória se forma, das «grandes realidades» só aproveitei a sensação que me provocavam: alpercheiros, cansaços, sons de vozes, passeios, luzes, tudo aquilo que, do real, é de certo modo irresponsável e não tem mais nenhum sentido a não ser o de mais tarde formar a recordação do tempo perdido (completamente diferente foi a minha infância parisiense: cheia de dificuldades materiais teve, se assim se pode dizer, a abstracção severa da pobreza, e não tenho quaisquer «impressões» do Paris dessa época). Se falo deste Sudoeste exactamente como a sua recordação é refractada em mim, é por acreditar na fórmula de Joubert: «Não devemos exprimir-nos como sentimos, mas como recordamos».
Estas insignificâncias são, portanto, como as portas de entrada dessa vasta região de que se ocupam o saber sociológico e a análise política. Nada, por exemplo, tem mais importância nas minhas recordações do que os cheiros desse bairro antigo, entre Nive e Adour, a que se chama o Petit-Bayonne: todos os objectos do pequeno comércio ali se misturam, compondo uma fragância inimitável; a corda das sandálias (aqui, não se diz «alpergatas»), trabalhada por velhos Bascos, o chocolate, o azeite espanhol, o ar confinado das lojas obscuras e das ruas estreitas, o papel envelhecido dos livros da biblioteca municipal, tudo isso funcionava como a fórmula química de um comércio desaparecido (ainda que este bairro conserve um pouco desse encanto antigo), ou, mais exactamente, funciona hoje como a fórmula dessa desaparição. Através do cheiro, é a própria mudança de um tipo de consumo que eu apreendo: as sandálias (de sola tristemente forrada a borracha) já não são artesanais, o chocolate e o azeite compram-se fora da cidade, num supermercado. Acabaram os cheiros, como se, paradoxalmente, os progressos da poluição urbana expulsassem os perfumes domésticos, como se a «pureza» fosse uma forma pérfida da poluição.
Outra introdução: conheci, na minha infância, muitas famílias da burguesia de Bayonne (Bayonne, nessa época, tinha algo de balzaquiano); conheci os seus hábitos, os seus ritos, as suas conversas, o seu modo de vida. Essa burguesia liberal era cheia de preconceitos, e não de capital; havia uma espécie de distorção entre a ideologia dessa classe (francamente reaccionária) e o seu estatuto económico (por vezes trágico). Esta distorção, nunca a reteve a análise sociológica ou política, que funciona como um passador largo e deixa fugir as «subtilezas» da dialéctica social. Ora essas subtilezas — ou esses paradoxos da História — mesmo não sabendo formulá-los, sentia-os: já «lia» o Sudoeste, percorria o texto que vai da luz de uma paisagem, do peso de um dia enlanguescido sob o vento de Espanha, a todo o tipo de discurso, social e provincial. Porque «ler» um país é antes de mais nada descobri-lo através do corpo e da memória, segundo a memória do corpo. Penso que é a esse vestíbulo do saber e da análise que está destinado o escritor: mais consciente dos próprios interstícios da competência. É por isso que a infância é a via real para através dela conhecermos um país da melhor maneira. No fundo, só há País se for o da infância.
1977, L’Humanité
trad. tereza coelho e alexandre melo
quetzal
1987
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