30 novembro 2024

sebastião alba / ninguém meu amor

 
 
 
Ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Podem utilizá-lo nos espelhos
apagar com ele
os barcos de papel dos nossos lagos
podem obriga-lo a parar
à entrada das casas mais baixas
podem ainda fazer
com que a noite gravite
hoje do mesmo lado
Mas ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Até que o sol degole
o horizonte em que um a um
nos deitam
vendando-nos os olhos
 
 
 
sebastião alba
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001
 



29 novembro 2024

jean genet / o condenado à morte




 

                                                          a Maurice Pilorge, assassino de vinte anos
 
 
O vento que rola um coração no pátio dos recreios, um anjo que soluça preso numa árvore, o pilar de céu que o mármore retorce, abrem portas de emergência à minha noite.
 
Um pobre pássaro que agoniza e o travo da cinza, a memória de um olho adormecido na parede e este doloroso punho que ameaça o firmamento, descem-me o teu rosto à palma da mão.
 
Mais duro e leve que uma máscara, o teu rosto tem na minha mão mais peso do que a jóia em dedos de um receptador quando a mete ao bolso; está afogado em pranto. É sombrio e feroz, coberto por um elmo de folhagem verde.
 
Tens o rosto severo: és um pastor grego. Sempre a fremir dentro das mãos que fechei. Com uma boca de morta onde os olhos são rosas e no nariz há o bico, talvez, de um arcanjo.
 
O gelo cintilante de um pudor maldoso que polvilhava o teu cabelo com um aço de astros claros, e te coroava a testa de espinheiros do canavial, que mal sagrado sabe desfazê-lo se o teu rosto canta?
 
Diz-me que desgosto doido te faz explodir nos olhos esse desespero tão forte que uma dor bravia e desvairada aparece, apesar do gelo que choras, a enfeitar-te a boca redonda com um sorriso de luto?
 
Esta noite não cantes aos “Latagões da Lua”. Mais vale, ó garoto de ouro, seres princesa pensativa de uma torre, a sonhar com o nosso pobre amor; ou aquele grumete loiro que vigia no cesto da gávea,
 
Que à noite, entre marinheiros em cabelo caídos de joelhos, desce para cantar na ponte a “Ave Maris Stella”; todos a agarrar no membro que salta, já, em mãos de larápio.
 
 (...)
 
 
 
jean genet
o condenado à morte
genet, seguido de o condenado à morte
de jean genet
yukio mishima
trad. de aníbal fernandes
hiena editora
1986





 

28 novembro 2024

joaquim manuel magalhães / paremos nas aparências

 
 
Paremos nas aparências,
pareces dizer com os teus olhos
eivados de noite, sedentários.
Falta a este amor que força
Do amor? E o falcão
voa muito baixo, sob muros.
 
Estar sozinho é o preço
duma vida? Um horizonte
de mágoa nas estrelas.
O silêncio cruza tão distante
entre o teu desterro e a minha
exclusão. As ruas nocturnas
serão nossas alguma vez?
 
É a morte que nos faz viver?
 
 
 
joaquim manuel magalhães
de súbito
uma luz com um toldo vermelho
editorial presença
1990
 



27 novembro 2024

henrique risques pereira / há sempre um comboio que parte

 
 
 
Há sempre um comboio que parte
de algures em qualquer parte do mundo
 
Há sempre um cais com gente
ansiosa da viagem para parte incerta
 
Há sempre um futuro com destino
que a gente do cais não conhece
 
Dentro deste comboio louco
vou eu em viagem dentro de mim
 
No cais alguém fica à espera
de um comboio que já partiu
 
 
 
henrique risques pereira
transparência do tempo
(poesia)
edição de perfecto e. cuadrado
quasi
2003




26 novembro 2024

antónio osório / não é a tristeza um dom


 

Não é a tristeza um dom,
e eu não a tinha.
 
Meus pais deram-me aquilo
que podiam, alma
da sua diversa.
 
Sou eu, neste almofariz,
que esmago sementes minhas
e procuro velhos remédios.
 
 
 
antónio osório
a ignorância da morte
editorial presença
1982
 



 

25 novembro 2024

elio pecora / a lua surgiu, redonda

 
 
 
A Lua surgiu, redonda, e distraiu-nos
(na janela sobre a magnólia),
estava quase a dizer: “Não és tu o amor.
Eu só quero agarrar-te, ter-te
por uma eternidade que não meço”.
Correram os dias, a Lua surgiu de novo
(no vento leve, sobre a magnólia)
e disseste-me: “Parto amanhã.”,
com a voz de quem não quer ferir,
enquanto afunda no ventre uma faca.
 
 
elio pecora
poemas escolhidos
recinto de amor (1992)
tradução de simoneta neto
quasi
2008
 



24 novembro 2024

joan margarit / idade vermelha

 
 
 
Tanto tempo para aprender que chegas tarde
ao grande amor. Que nunca terás vivido
uma idade de ouro. As rosas de Ronsard
nunca serão perfume nos teus olhos,
e o Outono não desfolhará
tantas pétalas nos braços de ninguém.
cobriste com o esquecimento todos os espelhos
como faziam nas casas dos defuntos.
Não regressam as mulheres com as quais,
por um instante efémero de ternura,
trocavas anos de solidão.
Porque a vida no Outono é ardente,
nas horas de angústia não poderás
amar nem a mulher que já perdeste.
 
 
 
joan margarit
misteriosamente feliz
trad. miguel filipe mochila
flâneur / língua morta
2020



23 novembro 2024

juan luis panero / e de súbito anoitece

 
  
                                            Ed é súbito sera.
 
                                      Salvatore Quasimodo
 
 
 
Viver é ver morrer, envelhecer é isso,
enjoativo, tenaz, cheiro da morte,
enquanto repetes, inutilmente, umas palavras,
cascas secas, vidro partido.
Ver morrer aos outros, àqueles,
poucos, a quem verdadeiramente amaste,
desmoronados, desfeitos, como o fim deste cigarro,
rostos e gestos, imagens queimadas, enrugado papel.
E ver-te morrer a ti também,
remexendo frias cinzas, apagados perfis,
disformes sonhos, turva memória.
Viver é ver morrer e é frágil a matéria
e tudo se sabia e não havia engano,
mas carne e sangue, misterioso fluir,
querem preservar, afirmar o impossível.
Copo vazio, trémulo pulso, cinzeiro sujo,
na luz nublada do entardecer.
Viver é ver morrer, nada se aprende,
tudo é um desapiedado sentimento,
anos, palavras, peles, despedaçada ternura,
calor gelado da morte.
Viver é ver morrer, nada nos protege,
nada teve o seu ontem, nada o seu amanhã,
e de súbito anoitece.
 
 
 
juan luis panero
poemas
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2003
 



22 novembro 2024

emanuel jorge botelho / duas regras para cada véspera




 

 
rasgar cada dia com um lenho de espelho
se possível, afiar cada hora numa pedra de linho.
 
guardar o tempo dentro da alma.
se possível, não morrer.
 
 
 
emanuel jorge botelho
sombras e outros disfarces
averno
2022
 



 

21 novembro 2024

antónio franco alexandre / corto viaggio sentimentale, capriccio italiano

 
 
 
5
 
segredava-te, do tempo o vão aspecto;
existias de noite como a letra
de todo o movimento, e das estrelas
o céu pintado ao fundo;
e distraído, às vezes, confessava
amar a tua pele como quem
quer dizer-te: não morras nunca mais.
 
 
 
antónio franco alexandre
quatro caprichos
assírio & alvim
1999
 




20 novembro 2024

pedro tamen / poema para todos os dias

 




 

 
I dia
 
 
                                        Un trozo azul tiene mayor
                                        Intensidad que todo el cielo.
 
                                        Alfonso Cortés

 
 
 
Fresco era o dia, plantado na chuva,
jovens os relógios tocando Mozart...
Os carros corriam, os passos passavam
e os velhos sentados dormiam no tempo
regressos perdidos de todas as sombras.
Pássaro poisado na alma da tarde,
era todo o sol natural inverno...
O mar estava perto nos olhos da gente,
um barco chegava em cada minuto
e o segredo bailava nas mãos da criança.
 
Recordo uma paz sob as gabardinas,
recordo humidade nas rodas dos carros...
(Tão solta no ar corria a memória
que as folhas tão verdes marcavam os anos.)
A chuva nascia da terra para o ar
e ria na cara da gente perpétua
– cada riso dela era a rua inteira
e era o cão vadio cheirando esta terra
gerada no vento pelo grande gesto.
Rua colocada por amor das formigas,
pequeno brinquedo achado no bosque,
eras mão aberta para todos os sons,
para cada assobio de vapor de água,
para a bela frescura da brisa salgada.
Ligeiros, os céus brincavam escondidos
com a tarde criança presente no ar,
jogavam às pedras ao pé dos passeios
e corriam juntos fugindo ao vento...
Passavam pessoas de faces vermelhas,
de um sonho pequeno agora acordadas,
seus passos miúdos de nada sabiam
– nada estava feito e tinham dez anos.
A branca neblina sentada no sol
sorria de perto a tudo o que era
e tudo saltava na sua presença.
 
Escorregavam horas do berço dos ramos
ficando caladas, respirando fumo...
E, leves, cheirosas, perpassavam as mãos,
tão estreitas e fortes do primeiro mundo.
 
Algo se esperava, algo estava perto,
algo era preciso, faltava a resposta,
o rio que fosse a cama da chuva,
a sombra final para o sol se deitar,
a torre perfeita com todos os olhos,
a mão que apertasse as coisas dispersas...
E eis que o rio vem, a sombra e a torre,
e se estendem dedos com a tua chegada.
 
Saltaram coelhos de todas as tocas
e a fonte da serra sorriu-se no musgo.
Manaram os beijos no ar respirado
e as malas abertas mostraram o fundo.
Fugiram cavalos de pernas de espuma
levando no pêlo notícias em branco.
E o vento corria em busca da lua
e a tarde e os céus calavam os gritos…
Silêncio se fez, e a erva cresceu
mais verde e mais fresca, segura certeza.
Espreitaram os sinos, riram-se as escadas
tudo estava pronto e de novo erguido.
 
Tão bela que vinhas como que de infância,
tão pura e tão simples, tão gesto benigno,
tão nova palavra rasgada no mar...
Menina dos anos, dos anos perdidos,
sombra de outras noites, noiva de outros dias,
perfeita miragem, pele das próprias mãos,
eis que então chegavas e eis que eu te via,
e as horas sorriam, felizes, completas.
 
Teu rosto era a concha dos quatro oceanos,
teu corpo era a praia de areia molhada,
teus olhos erguiam o toldo do céu
e enchiam os mastros de verdes bandeiras.
Tu eras o vento, tu eras a força,
dançavam secretas tuas mãos de aragem...
 
Nasceste presença na tarde de bronze
e agora já nada seria indeciso.
Agora tu eras a essência dos nomes,
os galos cantavam, era bom respirar.
Os prados distantes ficavam tranquilos,
esperando os teus pés, berlindes pequenos.
A chuva e a brisa, a jovem frescura,
guardavam certeza, seguras estavam
– morena lembrança, segundo natal.
 
Nunca mais a noite mordida no escuro,
nunca mais o dia manchado de cuspo,
nunca mais o véu tapando-me tudo,
nunca mais os dedos procurando flores...
A estátua plantada na nudez do largo
devolvia a calma aos olhos fechados
e enchia de sombra as pedras queimadas.
Agora eu sabia que em cada manhã
nasceria o sol atrás dos teus ombros.
 
 
 
pedro tamen
poema para todos os dias (1956)
tábua da matérias
poesia 1956/1991
círculo de leitores
1995
 




19 novembro 2024

ruy belo / regresso

 
 
 
Não não mereço esta hora
eu que todo o dia fui habitado por tantas vozes
que exerci o comércio num mercado de palavras
Não mereço este frio este cheiro tudo isto
tão antigo como os meus olhos
talvez mesmo mais antigo que os meus olhos
 
 
ruy belo
todos os poemas I
tempo
assírio & alvim
2004




18 novembro 2024

carlos de oliveira / porta

 
 
 
A porta que se fecha
inesperadamente na distância
e assusta o romancista
que descreve o seu quarto de criança
(é difícil dizer
se os velhos arquitectos
que punham tanto amor
na construção do quarto
teriam ponderado com rigor
a escala deste som
e o espaço coagulado
ao fundo do corredor)
a porta que se fecha no passado
sobressaltando a escrita e o escritor.
 
 
 
carlos de oliveira
sobre o lado esquerdo
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1982