15 dezembro 2019

isabel meyreles / o retrato do marinheiro



                        I

Os olhos são cinzentos,
palhetados de negro,
o ciúme os pinta
de um verde azul boreal
o nariz é curto
as maçãs eslavas
os lábios cheios.
Nos dias em que mais seduz
ri muito e forma
três rugas no canto da boca.



isabel meyreles
poesia
o rosto deserto 1966
tradução de natália correia
quasi
2004





14 dezembro 2019

valter hugo mãe / a terra pesa os mortos avalia-os



6
atiro a cabeça ao
chão como flecha entre o
arco dos braços.
quisera tragar o mundo, passar
pela boca a rotação da terra, como
uma mãe que nascesse todos
os dias


valter hugo mãe
estou escondido na cor amarga do fim da tarde
campo das letras
2000





13 dezembro 2019

charles bukowski / o milagre



Trabalhar com uma forma de arte
não significa
mandriar como uma ténia
de barriga cheia,
nem justifica grandeza
ou ganância, nem seriedade
a toda a hora, creio antes
que é um apelo aos melhores homens
nos seus melhores momentos,
e quando eles morrem
e outra coisa não morre,
assistimos ao milagre da imortalidade:
homens que chegaram como homens
partiram como deuses –
deuses que sabemos que aqui estiveram,
deuses que agora nos permitem continuar
quando tudo o mais nos diz para parar.



charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018





12 dezembro 2019

marianne moore / o retiro do mágico




de mediana altura
(que eu vi)
fosco mas lá dentro luz
tal pedra da lua
enquanto fulgia um halo
de frecha de um estore
e um brilho azul do lampião
junto à porta de entrada.
Não dava razão de queixa,
nada mais para obter,
consumadamente chão.


Um maciço de árvores negras por trás
quase tocando as caleiras
com a nitidez de Magritte,
era sobretudo discreto.




marianne moore
o pangolim e outros poemas
trad. margarida vale de gato
relógio d´água
2018





11 dezembro 2019

roberto juarroz / às vezes parece




Às vezes parece
que estamos no centro da festa.
No entanto
no centro da festa não há ninguém.
No centro da festa está o vazio.


Mas no centro do vazio há outra festa.



roberto juarroz
trad. arnaldo saraiva
hífen 7 abril
cadernos semestrais de poesia
dias inúteis
1992






10 dezembro 2019

joão almeida / só



Encontrei Georges, meio profeta
Meio cavalo, estendido no chão

Olhos inofensivos de longa vigília
Cheirava a mofo e a rim

Levantou a cabeça para me ver mijar

Lembrava-lhe a infância
As histórias do pai
Mulheres que mijavam de pé
Em aldeias extintas

Mais droga, porno e poesia
Fomos conversando.


joão almeida
canto skin
língua morta
2019





09 dezembro 2019

joão do nascimento / são poucas as coisas que são-tudo




são poucas as coisas que são-tudo. uma cadeira em equilíbrio é-definitivamente-tudo. a rua onde mora. o lembrar. as-telhas de ver porque apenas reflexo, e o silêncio da cor, que não-mais do que uma ausência muito constante de livros-à conversa com os pássaros. quando a conversa dos pássaros é tudo é-mais do que tudo. e o mar é-sempre
          porque saber mentir é semelhante a escrever nas costas-dos postais. é semelhante a demorar muito nos sítios-de passagem. é semelhante a acreditar nas árvores. no tempo de que são feitas as árvores. é quase igual a acreditar. e depois. e depois, são poucas as coisas que são-tudo. como: uma cadeira em equilíbrio é-definitivamente-tudo. e se alguma semelhança existe entre a gaveta e as coisas que guarda. a semelhança é possivelmente mais, e o mar é-sempre

15/03/01



joão do nascimento
apeadeiro
revista de atitudes literárias
n.º 2 primavera de 2002
quasi
2002





08 dezembro 2019

bernardo soares / a literatura, que é a arte casada com o pensamento,



A literatura, que é a arte casada com o pensamento, e a realização sem a mácula da realidade, parece-me ser o fim para que deveria tender todo o esforço humano, se fosse verdadeiramente humano, e não uma superfluidade do animal. Creio que dizer uma coisa é conservar-lhe a virtude e tirar-lhe o terror. Os campos são mais verdes no dizer-se do que no seu verdor. As flores, se forem descritas com frases que as definam no ar da imaginação, terão cores de uma permanência que a vida celular não permite.

Mover-se é viver, dizer-se é sobreviver. Não há nada de real na vida que o não seja porque se descreveu bem. Os críticos da casa pequena soem apontar que tal poema, longamente ritmado, não quer, afinal, dizer senão que o dia está bom. Mas dizer que o dia está bom é difícil, e o dia bom, ele mesmo, passa. Temos pois que conservar o dia bom em uma memória florida e prolixa, e assim constelar de novas flores ou de novos astros os campos ou os céus da exterioridade vazia e passageira.

Tudo é o que somos, e tudo será, para os que nos seguirem na diversidade do tempo, conforme nós intensamente o houvermos imaginado, isto é, o houvermos, com a imaginação metida no corpo, verdadeiramente sido. Não creio que a história seja mais, em seu grande panorama desbotado, que um decurso de interpretações, um consenso confuso de testemunhos distraídos. O romancista é todos nós, e narramos quando vemos, porque ver é complexo como tudo.

Tenho neste momento tantos pensamentos fundamentais, tantas coisas verdadeiramente metafísicas que dizer, que me canso de repente, e decido não escrever mais, não pensar mais, mas deixar que a febre de dizer me dê sono, e eu faça festas com os olhos fechados, como a um gato, a tudo quanto poderia ter dito.

s.d.





fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982







07 dezembro 2019

cesare pavese / oficio de viver



3 de Fevereiro de 1941

Que existe afinal, na minha ideia fixa de que tudo consiste no secreto e amoroso «em si», que cada criatura oferece a quem a sabe penetrar? Nada, porque esta amorosa comunhão nunca a pude realizar.

No fundo, o segredo da vida é fazer como se tivéssemos o que mais dolorosamente nos falta. O preceito cristão está aqui inteiro. Convencermo-nos de que tudo foi criado para o bem, que a fraternidade humana existe – e se não é verdade, que importa? O conforto desta visão consiste em acreditar-se nela, não no facto de que seja real. Porque se acredito, se tu, se ele, se eles acreditam, tornar-se-á verdadeira.





cesare pavese
o ofício de viver - diário (1935-1950)
trad. alfredo amorim
relógio d´água
2004





06 dezembro 2019

franz kafka / diários



1911, 12 de Janeiro

Não escrevi muito sobre mim nestes dias, em parte por preguiça (durmo tão profundamente durante o dia, tenho mais peso enquanto durmo), em parte também por medo de trair o conhecimento que tenho de mim. Este medo justifica-se, porque uma pessoa só devia fixar na escrita a sua autopercepção quando o puder fazer com a maior integridade, com todas as consequências secundárias e também com toda a verdade. Porque se isto não acontecer – e eu de qualquer maneira não sou capaz de o fazer – o que está escrito irá, de acordo com a sua própria finalidade e com o poder superior do que fi fixado, tomar o lugar daquilo que se sentia apenas vagamente, de tal modo que o sentimento verdadeiro desaparecerá enquanto o não valor do que foi anotado será reconhecido tarde de mais.




franz kafka
diários (1910-1923)
trad. maria adélia silva melo
difel
1986






05 dezembro 2019

arthur rimbaud / digo que é preciso ser-se vidente



carta para Paul Demeny, Charleville, 15 de Maio de 1871
(excerto)


[…]

          Digo que é preciso ser-se vidente, tornar-se vidente.
          O poeta torna-se vidente através de um longo, imenso e ponderado desregramento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; ele procura-se a si mesmo, ele esgota em si todos os venenos para ficar apenas com as quintessências. Inefável tortura para a qual ele precisa de toda a fé, de toda a força sobre-humana, através da qual ele se torna entre todos o grande demente, o grande criminoso, o grande maldito – e o Sábio supremo! – Porque ele alcançou o desconhecido! Porque ele cultivou a sua alma, já de si rica, mais do que ninguém! Ele alcança o desconhecido, e quando, aterrorizado, acabar por perder a inteligência das suas visões, ele tê-las-á visto! Que ele rebente no seu salto pelas coisas inauditas e infindáveis: outros horríveis trabalhadores virão; e começarão pelos horizontes nos quais o outro vergou!

[…]


jean-arthur rimbaud
cartas e documentos
obra completa
trad. miguel serras pereira e joão moita
relógio d´água
2018






04 dezembro 2019

marcel proust / um homem que dorme…




Um homem que dorme tem em círculo à sua volta o fio das horas, a ordem dos anos e dos mundos. Consulta-os instintivamente ao acordar e neles lê num segundo o ponto da terra que ocupa, o tempo que decorreu até ao seu despertar; mas as respectivas linhas podem misturar-se, quebrar-se. Basta que, já de manhã, depois de uma insónia qualquer, o sono o invada enquanto lê, numa posição muito diferente daquela em que habitualmente dorme, basta que tenha o braço levantado para deter e fazer recuar o sol, e ao primeiro minuto depois de acordar já não saberá que horas são, julgará que mal acaba de se deitar.



marcel proust
em busca do tempo perdido
volume I do lado de swann
trad. pedro tamen
relógio d´água
2003






03 dezembro 2019

albert camus / também é importante o tema da comédia



Maio de 1935

Também é importante o tema da comédia. O que nos protege das maiores dores, é o sentimento de estarmos abandonados e sós, mas não tão sós no entanto para que os «outros» não nos «considerem» no meio da nossa dor. É nesse sentido que os nossos minutos de felicidade são por vezes aqueles em que o sentimento de abandono nos sufoca e nos arrasta para uma tristeza sem fim. É neste sentido também que muitas vezes a felicidade não é mais que o sentimento compadecido da nossa infelicidade.

Admirável para os pobres – Deus colocou a complacência ao lado do desespero como o remédio ao lado da enfermidade.



albert camus
primeiros cadernos
trad. não disponível
livros do brasil
1973