08 agosto 2024

ilka brunhilde laurito / lamentação de natércia

 
 
II
 
Corpo meu, tão gentil, tão malferido,
partido e repartido nos transvios,
que repouso terás no chão da vida
se Amor te mata assim dia-após-dia?
 
Ainda se a morte fora só alegria
do reencontro dos amantes idos,
eu ia rindo empós esta agonia
a reviver os rostos hoje findos.
 
Mas obscuro é o claro fim, e eu fico
a carrear-te, corpo sempre aflito
entre a fome diária e a infinita.
 
Corpo meu, alma minha, quem diria
o que é a carne e o que seria o espírito
quando o Amor, gentil, une o indiviso?
 
 
 
ilka brunhilde laurito
colóquio letras nr. 90
março 1986
fundação calouste gulbenkian
1986
 



07 agosto 2024

maria gabriela llansol / onde vais, drama-poesia?

 



 
XV
 
num desses momentos,
a objecto de beleza
sob o aspecto de uma abertura larga,
terá medo que o amor a desfeie e lhe roube o brilho que a en-
volve.
 
     Nesse momento, serei naturalmente implacável,
por ora, a única abertura visível é a porta da minha casa, la-
deada por duas lanternas.
     Dentro, e ao lado das nossas casas, estão várias casas,
 
abrigo que nos permitimos atingir quando sentimos fadiga.
Fadiga muito doce por não se querer sentir a fadiga cruel que
todo o vento brando, àquela hora, espalha pela clareira,
 
 
todos somos, de facto, incompletos a certas horas do dia, e
mostrei-lhe a Casa.
 
 
maria gabriela llansol
onde vais drama-poesia?
relógio d´água
2000
 




06 agosto 2024

sophia de mello breyner andresen / mãos

 
 
 
Côncavas de ter
Longas de desejo
Frescas de abandono
Consumidas de espanto
Inquietas de tocar e não prender
 
 
sophia de mello breyner andresen
coral 1950
obra poética I
caminho
1999
 



05 agosto 2024

fiama hasse pais brandão / do universo

 
 
 
Não o silêncio rodeia as palavras
nem as coisas. Vejamos a palavra ar
na esquadria da janela
atravessada pelos pardais,
sustida pelos telhados,
escavada mesmo pelas telhas e cornijas.
 
Não o espaço rodeia as coisas
mas outras coisas. A mesa
rodeada por iguarias,
o mel e a água tendo em volta
a fonte, esta abraçada pela Terra.
 
 
 
fiama hasse pais brandão
as fábulas
quasi
2002




04 agosto 2024

bernardo soares / e os diálogos nos jardins fantásticos que contornam...

 
 
E os diálogos nos jardins fantásticos que contornam nada definidamente certas chávenas? Que palavras sublimes não devem estar trocando as duas figuras que se assentam no lado de lá daquele bule? E eu sem ouvidos apropriados para as ouvir, morto na polícroma humanidade!
 
Deliciosa psicologia das coisas deveras estáticas! A eternidade tece-a e o gesto que uma figura pintada tem desdenha, do alto da sua eternidade visível, a nossa transitória febre, que nunca se fixa numa atitude nem se demora nos portões de um esgar.
 
Não amamos, senão que fingimos amar. O verdadeiro amor, o imortal e inútil pertence àquelas figuras em que a mudança não entra, por sua natureza de estáticas. Desde que eu o conheço o japonês que se senta na curva do seu bule não mudou ainda... Não apertou nunca as mãos da mulher que está a um distar errado dele. Um colorido extinto como de um sol desaparecido irrealiza eternamente as encostas desse monte. E tudo aquilo obedece a um instante de pena.
 
Que curioso deve ser o folclore do colorido povo dos painéis. Uns amores de figuras bordadas — amores de duas dimensões, duma castidade geométrica deverá ser.
 
s.d.
 
 
fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
ática
1982



03 agosto 2024

al berto / doze moradas de silêncio

 
 
4
 
erva espezinhada poeira de sal nas unhas
dedos cansados de escutar o envelhecido latejar das pedras
olhar vago rasando o mar… azulino pássaro
no vagar do vento vem abrigar-se no meu peito
 
e o sol queima por dentro a boca e os cabelos
escolho um nome… ofereço-to
enquanto esboço percursos na ilusão de te reencontrar
mas deparo com estas dunas tristes… aridez contínua
ao longe
figueiras bravas debruçam-se para os corpos
protegendo-os do calor… onde terminará a visão?
 
teço nos lábios a líquida alegria dum fabuloso peixe
ouço o marulhar das estrelas… lembras-te?
ao anoitecer
 
     (resumo do dia:
                    chuviscos
                    breves dálias colhidas nos valados
                    passos hesitantes pelas águas
                    lenta fuga dos corpos
                    sombras ternas na folhagem das figueiras)
 
estendidos na erva para
 
 
 
al berto
doze moradas de silêncio 1978/1979
o medo
assírio & alvim
1997
 



02 agosto 2024

artur do cruzeiro seixas / esta pedra é uma casa

 



 

Esta pedra é uma casa
tão cega
como aquele céu lá no mais alto
que afinal precisa o mar
para se saber azul.
 
Sobre a mesa estrelas e uvas sempre renovadas
e a lisa parede branca        para as sombras
independentes
esquecerem a morte ali
onde sobra sombra sempre.
Onde a sombra assombra
suportando todo o peso do ar.
 
E lembro ainda o luar como uma areia muito fina
argamassa desta espessura que nos separa do poema perdido
subitamente tornado insecto
por intersecção do teu olhar.
 
Áfricas 65
 
 
 
artur do cruzeiro seixas
obra poética vol. I
quasi
2002
 




01 agosto 2024

joaquim pessoa / canção de estar tão vivo

 


 

 

Tivera eu morrido trespassado
e menos me custara do que estar
de pé. E de tão vivo, assassinado.
Que a morte é ter vontade de cantar.
 
Tivera eu partido e não voltasse
às margens quase puras do meu Tejo.
Tivesse eu uma rosa e caminhasse.
Que a morte é dar a vida por um beijo.
 
Pudera eu dizer, amor, de nós
a ternura cobrindo a nossa cama.
Gritar por ti até perder a voz.
Que a morte está mais perto de quem ama.
 
Pudera então ao menos ficar mudo
e nada mais dizer. Nada cantar.
Como se já tivera eu cantado tudo
e a morte acontecesse devagar.
 
 
 
joaquim pessoa
125 poemas
antologia poética
litexa
1982






31 julho 2024

agustina bessa-luís / agustina por agustina

 
 
 
Eu não dou sossego a quem me ouve, não deixo que parem no dia santo, porque ponho pedra firme até na água e projecto na criança de mama, e pingo de azeite na porta perra, e juízo no louco que se faz desentendido e diz: «Isto não é comigo.»
*
Não sou vaidosa. Sou contente, sou feliz e agradecida dos meus dotes de coração, dos meus talentos, da luz dos meus olhos, da saúde física, do vigor moral. Bens momentâneos – bem o sei. Valores falíveis e facilmente dispersos no tempo. mas é nesta alegria, nesta exaltação vital, que está o meu cântico à vida – humano e, contudo, esplêndido, divino e, contudo, humilde.
*
Eu não sou justa, ajuízo as coisas. Eu e a justiça somos pura coincidência; o facto de isto se repetir faz talvez o prodígio, mas não a certeza.
*
Nunca me senti cansada a descrever o humano, precisamente porque participo de tudo o que é humano. Nunca me senti marcada em misteriosa contradição com o comum dos outros, nunca experimentei o sentimento de estar à parte, de estar isolada. Eu consigo participar da despreocupação dos momentos vividos, e posso revelá-los pela palavra, sem que eles de alterem e se intensifiquem pela observação.
*
 Minha obra é portuguesa, constituída por sentimento e gente portuguesa até à medula.
*
Tudo o que eu escrevo se destina a interessar as pessoas na sua própria entidade. Daí, muitas vezes, ela ter um efeito devastador, a obra e a pessoa que a produz. Sobretudo a pessoa, devo dizer. Eu desmarco os outros da rotina, espanto a manada. Depois os efeitos são maravilhosos, combinam com a imortalidade.
*
Se eu não sou poética, apesar de dizerem que sou, cada vez com mais veemência e singular teimosia sei descobrir nas coisas comuns uma directa via que as leva ao coração, que as torna capazes de serem mais doces do que a lírica mais melodiosa.
*
Não quero como assunto nada de extravagante, mesmo com timbre de lírico. Não quero brilhar, nem convencer, coisa que os poetas querem muitas vezes. Quero ser sóbria de palavras, constante de gratidão, verídica de fidelidade para quem confia em mim.
*
Para mim é fácil ser verdadeira quanto à minha insinceridade.
 
 
 
agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008




30 julho 2024

irene lisboa / saímos os três da casa de g..

 
 
SAÍMOS os três da casa de G.. E fomos esperar um autocarro. Ele disse-me: há-de vir a nossa casa. E ela ficou calada.
Têm uma casa nova, encantadora, oiço dizer, onde recebem a nata das letras, política e artes, onde deram e darão grandes saraus, etc.. Mas porque havia eu de ir a casa deles, se até aqui nunca de mim se lembraram? Conhecemo-nos há trinta anos, perto ou certo.
E nunca me retribuíram um certo convite, feito e aceite há dezoito, em que lhes ofereci um jantar de galinha… Ou então, ele mo quis pagar ontem: ao que ela ainda se recusou.
Nesse tal dia, ou noite, tão recuados! ela, preciosa, desdenhosa, dizia com aquela graça franca de quem se sente fora do seu ambiente, desnivelada: e eu que detesto canja! tudo o que cheire a galinha…
Uma mulher encantadora, natural, amável, sociável e caprichosa: com isto se diz tudo.
 
 
irene lisboa
1949 a 1957
solidão II
portugália editora
1966





 

29 julho 2024

ana hatherly / 463 tisanas

 
 
222
 
Estamos no campo. Vamos apanhar amoras. Vamos correndo, rindo como crianças. Quando regressamos a casa temos as mãos tingidas e feridas de mugir as silvas. Preparando as amoras para a sobremesa penso: eis o caviar silvestre!
 
 
ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006
 



28 julho 2024

antónio reis / poemas quotidianos


 
41
 
Partem todos
 
o abandono os leva
um barco
o medo
 
Quando voltam
para nenhum de nós
é um segredo
 
 
antónio reis
poemas quotidianos
tinta da china
2017
 






 

27 julho 2024

eduardo pitta / foi longa e dura…

 
 
 
Foi longa e dura a batalha do silêncio
por mesas de café, improváveis becos,
pátios e terraços.
 
 
Nada mais havia para argumentar.
 
 
Decerto haveria gente capaz de supor
que seria fácil
fazer as malas aos sentimentos.
 
 
Os outros continuariam como dantes.
 
 
 
eduardo pitta
olhos calcinados
desobediência
poemas escolhidos
dom quixote
2011