15 julho 2024

miguel serras pereira / de alguns rostos perdidos

 
 
 
De alguns rostos perdidos do rosto fica ou solta-se
anónimo esse brilho ao acaso deixado
esparso entre os lugares por onde um dia passaram
tão súbito de novo que assim talvez devêssemos
morrer como quem nele enfim de si se fosse
 
e deixasse ir-se a vida esquecida no seu rasto
 
 
 
miguel serras pereira
á tona do vazio & reprise
cinquenta anos de poesia de miguel serras pereira 1969-2019
véspera
barricada de livros
2022




 

14 julho 2024

pedro homem de mello / sopro

 
 
 
Passas como passa
O riso do vento
Mas na tua graça
Não há pensamento.
 
Porém, sem teu riso,
Que seria a graça
Do meu pensamento?
 
 
 
pedro homem de mello
jardins suspensos (1937)
poesias escolhidas
imprensa nacional-casa da moeda
1983





13 julho 2024

nuno guimarães / seguro então a vida em pleno

 
 
Seguro então a vida em pleno
solo. Aí me deito
com os sinais perpétuos: árvores,
bosque, sombra, a permanência
de objectos olhados ou suspensos.
Agora, a outra lei – extractos
De sol sobre a retina – cede. Ao fácil
 
vento, à comoção do ar
pensado, onde se vive. Deste lugar os
elementos se afastam. Estão mortos,
inactivos no foco. Ou pela sombra
gravados, suspensos de algum livro.
Criaram-se da luz! São objectos
perecíveis: na imprecisão
da imagem, no seu repouso
exterior – entre a ciência e a vista.
 
 
 
nuno guimarães
extractos
entre sílabas e lavas
poesia completa
assírio & alvim
2024
 



12 julho 2024

luís quintais / derrota

 
 
És o derrotado.
Por uma impressão, um domínio
de imagens onde os grandes trevos
desenham as suas sombras,
 
por um meio-dia sem esperança
ou virtude, uma floresta
de bichos atónitos no fulgor
desbrido de uma clareira.
 
Os nomes tinham coisas no início.
Depois perderam-se os nomes
na sua relação (sanguínea, densa)
com as coisas. As peças de que se compunha
a natureza deslocaram-se para parte incerta.
 
Escreves atestando a derrota.
 
 
 
luís quintais
nocturama
assírio & alvim
2024




11 julho 2024

josé miguel silva / o atalante – jean vigo (1934)



 

 
No dia em que fomos ver O Atalante
eu levava, por coincidência, um cubo de gelo
no bolso do casaco. Lembro-me de tremer
um pouco. Até aí, tudo bem. Pior,
foi quando te ouvi pronunciar, distintamente:
quem procura o seu amor debaixo de água,
acaba constipado.
Na altura, ri-me: pensei que galavas do filme.
Sou tão estúpido.
 
 
 
josé miguel silva
movimentos no escuro
relógio d’água
2005




 

10 julho 2024

fernando assis pacheco / o pensionista de caxias



 

 
Já o fotografaram em pijama agora de gilet claro e é o mesmo homem
fala baixo aos jornalistas com repetidas desculpas
por não saber responder a tal assunto (preso há três anos)
enquanto da Pide tem uma imprecisa e vaga como explicar lembrança
 
mas instado a dizer se aceitaria ainda uma vez ser o chefe
de uma qualquer polícia dessas que afinal «iguais em todo o lado»
encolhe os ombros. Por «honestidade» sim senhor repórter aceitaria
 
 
 
fernando assis pacheco
a profissão dominante (1982)
a musa irregular
tinta-da-china
2019
 



 

09 julho 2024

eugéne guillevic / carnac (fragmentos)

 
 
 
7
 
OUVE bem o que faz
A pólvora explodindo.
 
Ouve bem o que faz
O frágil violino.
 
 
 
guillevic
poesias de guillevic
tradução de david mourão-ferreira
editora ulisseia
1965
 




08 julho 2024

arsenii tarkovskii / pela noite

 
 
 
Pela noite concedias-me o favor,
Abriam-se as portas do altar
E a nossa nudez iluminava o escuro
À medida que genuflectia. E ao acordar
Eu diria «Abençoada sejas!»
Sabendo como pretenciosa era a bênção:  
Dormias, os lilases tombavam da mesa
Para tocar-te as pálpebras num universo de azul,
E tu recebias esse sinal sobra as pálpebras
Imóveis, e imóvel estava a tua mão quente.
 
 
arsenii tarkovskii
8 ícones
versão de paulo da costa domingos
assírio & alvim
1987




07 julho 2024

antónio gedeão / amador sem coisa amada

 




 
Resolvi andar na rua
com os olhos postos no chão.
Quem me quiser que me chame
ou que me toque com a mão.
 
Quando a angústia embaciar
de tédio os olhos vidrados,
olharei para os prédios altos,
para as telhas dos telhados.
 
Amador sem coisa amada,
aprendiz colegial.
Sou amador da existência,
não chego a profissional.
 
 
 
antónio gedeão
poemas escolhidos
edições joão sá da costa
1999




06 julho 2024

eugénio de andrade / as mãos e os frutos

 
 
 
VII. Noite Transfigurada
 
Criança adormecida, ó minha noite,
noite perfeita e embalada
folha a folha,
noite transfigurada,
ó noite mais pequena do que as fontes,
pura alucinação da madrugada
– chegaste,
nem eu sei de que horizontes.
 
Hoje vens ao meu encontro
nimbada de astros,
alta e despida
de soluços e lágrimas e gritos
– ó minha noite, namorada
de vagabundos e aflitos.
 
Chegaste, noite minha,
de pálpebras descidas;
leve no ar que respiramos,
nítida no ângulo das esquinas
– ó noite mais pequena do que a morte:
nas mãos abertas onde me fechaste
ponho os meus versos e a própria sorte.
 
 
 
eugénio de andrade
as mãos e os frutos
poesia
fundação eugénio de andrade
2000
 


05 julho 2024

antónio gancho / arco-íris

 
 
 
A luz arco-irizante dos céus
numa noite de trovoada
estabelece-se depois de dia
num mistério o arco-íris.
Tem sete cores o arco-íris
ou o arco-íris compõe-se de sete cores
vermelho, violeta, anil, roxo, lilás, castanho e amarelo.
Depois destas sete cores acabada a trovoada
a gente pode parar, tirar o chapéu, etc., etc.
Ou aussitôt que l’idée du déluge se fût rassise
un lievre s’arrêta dans les sainfoins et les clochettes mouvantes
et dit sa prière à l’arc-en ciel à travers la toile de l’araignée
E depois é assim. Oh les pierres précieuses qui se cachaient
no fim do mundo onde fica o arco-íris
les fleurs qui regardaient déjà.
No entrementes Madame établit un piano dans les Alpes.
Pois ou aussitôt que l’idée du delúge acabou
ou assim mal acabou a ideia que já não havia de haver dilúvio
é que então uma lebre parou de repente entre as papoilas no feno e entre as
papoilas ou as campainhas de feno e
disse a sua prece ao arco-íris feito e apareceu o arco-íris
ao qual então a lebre disse uma prece fez uma prece.
E chovia muito nesse dia.
 
 
 
antónio gancho
gaio do espírito (dez. 85 / Fev. 86 )
o ar da manhã
assírio & alvim
1995




04 julho 2024

gonçalo m. tavares / perceber os deuses

 
 
 
Perceber os deuses e a catástrofe; melhorar o dia, percebendo.
Aproveitar o chão para subir: nada acontece no céu até lá chegarmos.
Atar o invisível ao quotidiano com uma corda de estender a roupa:
devorar dias, oferecê-los sobre a mesa como um almoço. Fugir.
Não têm factos: s Deuses bebem apenas: fumam velhos, recém-
-nascidos: no céu os animais valem tanto como os reis.
Só o sangue importa; e o modo como se morre.
Os Deuses também morrem, mas neles, os ossos, desaparecem
de forma distinta.
Como se fôssemos água: alguém nos bebe.
 
 
 
gonçalo m. tavares
1 poesia
relógio d´água
2004
 



03 julho 2024

pat boran / desde que te foste embora…




 
os dias aprenderam uma linguagem nova,
os anoiteceres falam em línguas –
 
as vozes da chuva na janela do quarto,
do vento a sussurrar na rua varrida pela chuva,
 
os canos de casa a barulharem,
torneira atrás de torneira.
 
A perda descobre novas canções
em instrumentos antigos.
 
 
 
pat boran
o sussurro da corda
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018