08 junho 2024

jorge de sena / sete sonetos da visão perpétua

 
 
1
 
Anos sem fim, à luz do mar aceso,
te vi nudez quase total, tão grácil
figura juvenil, ambígua e fácil,
e ao longe às vezes totalmente nua
 
em só relance de malícia crua.
Tudo isso me atraía e me afastava,
embora a vista, retornando escrava,
a teus lugares me tivesse preso.
 
E quase sempre então tua figura,
sentada estátua, ou falsa sesta impura,
lá era, ao sol, o tempo congelado.
 
Hoje, subitamente, tu não viste
ninguém senão o meu olhar quebrado,
e com lenta inocência te despiste.
 
Mas quantas rugas no sorriso ansiado!
 
 
 
jorge de sena
peregrinato ad loca infecta (1969)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972




07 junho 2024

fernando pinto do amaral / nenhuma sombra ilude o que o olhar

 
 
1.
 
Nenhuma sombra ilude o que o olhar
protege quando arrasta
o céu por uma noite. Condenado
às primeiras imagens, não sei
dissolver-te nas águas de outubro, deixar
que o vento me responda. Qualquer coisa
tão perto e tão longe da morte.
 
 
fernando pinto do amaral
a luz da noite
poesia reunida 1990-2000
dom quixote
2000





06 junho 2024

joão miguel fernandes jorge / veio carregado de desassossego

 
 
 
Veio carregado de desassossego e
de claros instintos.
 
A eternidade corre a seu favor.
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
à beira do mar de junho
relógio d´água
2019





05 junho 2024

luís miguel nava / em sintra

 
 
 
As águas maravilham-se entre os lábios
e a fala, rápidos
em Sintra espelhos surgem como pássaros,
a luz de que se erguem acontece às águas,
à flor da fala
divide os lábios e a ternura. Da linguagem
rebentam folhas duma cor incómoda, as de que
maravilhado de água surges entre
livros, algum crime, um
menino a dissolver-se ou dele os lábios e ergues
equívoca a luz depois. Rápidos
espelhos então cercam-te explodindo os pássaros.
 
 
luís miguel nava
onde à nudez
poesia completa (1979-1994)
publicações dom quixote
2002
 



04 junho 2024

joaquim manuel magalhães / e chamo à juventude a melancolia

 
 
 
E chamo à juventude a melancolia,
a beira-rio, o barco de muitos mastros
que ninguém navega, a deriva
na prisão dos olhares. Uma vez,
saí da cidade para a aldeia costeira.
Cantavam. Perguntou
o que era o jantar, apanhou canas,
com um golpe de rins soltou um ramo
da macieira. Aluz recebe a luz
do seu corpo deitado. O clarão do mar
move-se na sua voz,
a distância, seu.
 
 
 
joaquim manuel magalhães
os poços
uma luz com um toldo vermelho
editorial presença
1990





 

03 junho 2024

eduardo pitta / houve ali um rosto



 

 
                                          A minha mãe
 
 
Houve ali um rosto
muito belo, mal disfarçado
na teia geométrica
de uma finíssima máscara.
 
Sulcos de um antigo
ardor.
Tranquilo e arbitrário
desapego.
 
A luz baixou tanto.
Aquele rosto é
um mapa: um mapa
crivado de cidades saqueadas.
 
 
 
eduardo pitta
olhos calcinados
desobediência
poemas escolhidos
dom quixote
2011
 




 

02 junho 2024

cristovam pavia / sina

 
 
 
Eu vivo tudo por dentro.
Os meus enredos fabrico
(Quase sempre dolorosos!)
E não os conto a ninguém!
– O meu poço é o meu pico,
Que me pica e contém…
 
 
…………………………………………
 
 
Sem poço não ando bem!
 
 
 
cristovam pavia
poesia
dom quixote
2010




 

01 junho 2024

edmundo de bettencourt / amor

 
 
Amas de mais, não possuis
o amor que a todos vem.
Quem ama tudo não pode
ser amado por alguém.
 
Amor de tudo! – ninguém,
mas coração mais fecundo
que, por beijar doutro modo,
só tarde vive no mundo!
 
De longe o sol nos aquece,
de longe nos abre focos.
– Ó cinco chagas de Cristo,
no espelho de misantropos!
 
Só chega ao Sol quem tem asas
para um voo longo e leve
– quem antes que a luz o cegue
chega lá desfeito em brasas!
 
 
 
edmundo bettencourt
o momento e a legenda (1917-1930)
poemas de edmundo de bettencourt
assírio & alvim
1999
 




31 maio 2024

eduarda chiote / equívocos

 



 
Repetimo-nos.
E à força demolidora do quotidiano
vamos entregando a subtileza
da pele e o apagar dos astros: a servidão – esse
congénito equívoco.
 
E o gelado assombro das presenças
que nos colocam na fronte o tríplice sinal de
lucidez.
 
E nenhuma idade
a tal horror é poupada. Porque, e para além
do pó e o apodrecer das cinzas,
nem mesmo, acredita, a brutal invenção
do espírito.
 
 
 
eduarda chiote
a celebração do pó
asa
2001



30 maio 2024

sandra costa / manual da vida breve

 
 
8.
 
Desconheço o que vai para além
do cheiro das flores, o que vai para além
do sol abrindo as manhãs entre nuvens,
o que vai para além dos musgos crescendo
em telhados abandonados, o que vaia para
além das sombras que se encontram
 
 
 
sandra costa
manual da vida breve
poesia reunida 2003-2021
officium lectionis edições
2021





 

29 maio 2024

nuno guimarães / palavras que rebentam

 



 
Palavras que rebentam. Aflorando
a pedra, a solidão, deslizam, vagas,
gramaticais, roendo inconformadas
as arestas, o atrito, puras. Quando
 
nos líquidos, no éter, na distância,
diluem-se e morrem acabadas.
Não nos corpos, nas rugas, nas arcadas:
combatem, rumorosas, cal e cântico.
 
É difícil atarem corpo e vida
aos que vivem e morrem subjacentes
subjazendo, talhados para mina.
 
Mas despertadas, bem ou mal medidas,
rebentam em ogiva, funcionais
chamas supostamente adormecidas.
 
 
 
nuno guimarães
as palavras
entre sílabas e lavas
poesia completa
assírio & alvim
2024
 
 
 

 


28 maio 2024

luís quintais / com o tempo




 
Compassos bem medidos desfazem-se.
Partículas radioactivas decaem.
 
Alguns medem forças
que se aniquilam reciprocamente.
 
Quando o frio os invade,
aquecem-se com gestos abrasivos.
 
As mãos fecham-se
sobre frondes e iluminações.
 
Aos que cultivaram desertos,
só lhes restaram desertos.
 
 
 
luís quintais
nocturama
assírio & alvim
2024



 

27 maio 2024

eugénio lisboa / inventário de perdas



 

 
Vai-se, com o tempo, perdendo tudo.
Perdi já tantos dos que tanto amava,
perdi sítios, perdi sóis, sobretudo,
perdi poderes, ilusões, e brava
 
força que punha, no lutar, fervor!
Perdi livros e haveres e tudo
o que à vida dá tanto sabor!
Meu canto triste foi ficando mudo,
 
ao ver, por todo o lado o atropelo,
o assalto ao poder da liberdade,
o pôr, na destruição, tanto zelo!
 
Por todo o lado, alastra a iniquidade
e a vida cada vez mais fenece,
neste pobre mundo que anoitece.
 
19.03.2022
 
 
 
eugénio lisboa
poemas em tempo de guerra suja
guerra & paz
2022