10 janeiro 2024

josé mário silva / a minha janela, aos 19 anos

 
 
 
Eu espreitava o limoeiro, a sua copa
larga ocupando o quintal que a minha
avó fechava à chave quando saía (por
causa das galinhas). Para trás do muro,
só havia telhados de zinco, portões com
ferrugem, traseiras de prédios com roupa
estendida, armazéns, carros ao abandono
e gritos no crepúsculo, das mães aflitas
chamando os filhos para jantar. Eu via
tudo aquilo, sentado à mesa com uma
folha de papel em branco, esperando
o que chega quando não se espera.
Às vezes apareciam versos sem norte,
palavras vagabundas, para murcharem
logo ali – ecos de ecos. E eu olhava o
céu, as nuvens perfeitas, o vento em
turbilhão através do quintal, aquele
limoeiro com melros nos ramos e
frutos acesos na tarde como sóis.
 
É tão difícil de esquecer, a melancolia.
 
 
 
josé mário silva
apeadeiro
revista de atitudes literárias
nr. 1 primavera 2001
quasi
2001




09 janeiro 2024

mário cesariny / estação

 




 

 
Esperar ou vir esperar querer ou vir querer-te
vou perdendo a noção desta subtileza.
Aqui chegado até eu venho ver se me apareço
e o fato com que virei preocupa-me, pois chove miudinho
 
Muita vez vim esperar-te e não houve chegada
De outras, esperei-me eu e não apareci
embora bem procurado entre os mais que passavam.
Se algum de nós vier hoje é já bastante
como comboio e como subtileza
Que dê o nome e espere. Talvez apareça
 
 
 
mário cesariny
pena capital
assírio & alvim
1999




08 janeiro 2024

r. lino / mapas

 
 
1.
 
Esta terra.
Mostrar tempos que o tempo tem.
Que silêncio rasgou
quem não calou o que disse?
A espécie ao sabor dos climas,
e dos valores. Milhares de anos
recobriram as grandes forças
e, depois, os homens,
e as mulheres, e as crianças,
os seus animais de luta e os de guarida,
o nome dos seus deuses
o rasto das suas mortes
o sopro das suas crenças.
Festas, medos, raptos,
raivas, guerras, cânticos inteiros.
Um crescimento… É o que dizemos,
– nos fios da memória
As feridas abrem os destinos que criamos –
 
 
 
r. lino
mapas
políptico
companhia das ilhas
2016
 



07 janeiro 2024

pier paolo pasolini / o pranto da escavadora

 



 

II
 
Pobre como um gato do Coliseu
vivia num bairro feito de cal
e poeira, longe da cidade
 
e do campo, diariamente sufocado
num autocarro desconjuntado:
e cada ida, cada regresso
 
era um calvário de suor e ansiedade.
Longos passeios numa névoa quente,
longos crepúsculos diante dos papéis
 
empilhados sobre a mesa, entre ruas de lama,
muros baixos, tugúrios caiados
sem caixilhos nas janelas e cortinas a servir de portas…
 
Passava o vendedor de azeitonas, o trapeiro,
vindos de qualquer outro bairro,
com a empoeirada mercadoria que parecia
 
fruto de furto, e rostos cruéis
de jovens envelhecidos no meio dos vícios
de quem tem mãe dura e esfomeada.
 
Renovado pelo mundo novo,
livre, um ardor, um hálito
que não sei descrever dava à realidade
 
humilde e suja, confusa e imensa,
que fervilhava nessa periferia do sul,
um sentimento de serena piedade.
 
Uma alma, em mim, não apenas minha,
uma alma pequena naquele imenso mundo,
crescia, revigorada pela alegria
 
de quem amava, não sendo embora amado.
E a esse amor talvez ainda de rapaz,
tudo se iluminava, heroicamente,
 
mas amadurecido já pela experiência
que nascia aos pés da história.
Estava no centro do mundo, naquele mundo
 
de bairros tristes, beduínos,
de planícies amarelas polidas
por um vento que nunca se cansava,
 
vindo do mar quente de Fiumicino,
ou do campo, onde a cidade se perdia
no meio dos tugúrios; naquele mundo
 
sobre o qual só podia reinar,
espectro quadrado e amarelento
na amarelenta bruma,
 
trespassado por mil fiadas iguais
de janelas com grades, a Penitenciária,
entre campos antigos e adormecidos lugarejos.
 
Os papéis e o pó que a brisa
como cega arrastava aqui e ali,
as pobres vozes sem eco
 
de mulheres humildes vindas dos montes
Sabinos, do Adriático, e ali
acampadas, com catervas
 
de filhos enfezados e duros,
gritando, de camisetas esfarrapadas,
calções desbotados e queimados,
 
os sóis africanos, as chuvas violentas
que transformavam as ruas em torrentes
de lama, os autocarros nos finais de linha
 
enterrados no seu canto
entre um último rasto de erva branca
e alguma lixeira ácida e ardente…
 
era o entro do mundo, e o meu amor
por tudo isso estava
no centro da história: e nessa
 
maturidade que nascia
e era portanto ainda amor, tudo estava
prestes a tornar-se claro – tudo era
 
claro! Aquele bairro nu ao vento
já não era romano, nem meridional,
nem operário, era a vida
 
na sua luz mais actual:
vida, e luz da vida, cheia
do caos não ainda proletário,
 
como pretende o obsceno jornal
da célula, o último
panfleto que se agita: osso
 
da existência quotidiana,
pura, por estar demasiado
próxima, absoluta, por ser
 
por demais miseramente humana.
 
 
 
pier paolo pasolini
poemas
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005




06 janeiro 2024

cesare pavese / revelação

 
 
 
O homem só volta a ver o rapaz do magro
coração, absorto a espreitar a mulher que se ria.
O rapaz erguia o olhar para aqueles olhos,
onde os rápidos olhares estremeciam nus
e estranhos. O rapaz recolhia um segredo
naqueles olhos, um segredo como o regaço escondido.
 
O homem só estreita no coração a recordação.
Os olhos desconhecidos queimavam como queima a carne,
vivos de húmida vida. A doçura do regaço
palpitante de cálida ansiedade transparecia
naqueles olhos. Brotava angustiado o segredo
como sangue. Tornavam tremendas as coisas
na luz tranquila das árvores e do céu.
 
O rapaz chorava na noite submissa
ralas lágrimas mudas, como se já fosse homem.
O homem só reencontra sob o céu distante
Aquele olhar recatado que a mulher depõe
no rapaz. E volta a ver aqueles olhos e aquele rosto
recomporem-se submissos ao sorriso habitual.
 
 
 
cesare pavese
depois
trabalhar cansa
trad.carlos leite
cotovia
1997
 


05 janeiro 2024

maria gabriela llansol / I. curso de silêncio

 




 

 
a partir do momento em que tudo ao meu alcance se imobiliza, sinto a copa da árvore verdejante, à entrada de um ramo; vindo de um ponto movimentado da vila próxima,
um trilhador dos mundos senta-se na soleira de um barraco de cristal. Está centrado sobre um objecto que deixou ______ o estudo do texto em que escrevo e que lhe conferiu (necessitaria ele?)                 o estatuto de nómada. Sem situação social no conhecimento. As folhas adoram vagamundos. A vagueação. E as daquele plátano, e árvores limítrofes, não são excepção à regra. assim, ele, partido em fragmentos, move-se, flutuando, por impulso do ar. É um homem quotidiano, sem nenhum sinal de ilustração nas mãos e/ou no roso. Os olhos percutentes encontram os meus. Quem diria que são olhos dormentes? O silêncio. O silêncio.
 
Quando o azul desce, e se transforma no negro chumbado da noite, acende-se sobre ele uma densidade que o protege, e lhe permite continuar a vadiar. Convido-o para o meu quarto,
que se desfaz na espuma do texto.
 
 
 
maria gabriela llansol
amigo e amiga
curso de silênco de 2004
assírio & alvim
2006
 




04 janeiro 2024

leonard cohen / metade do mundo perfeito

 



 

Ela vinha ter comigo todas as noites
E eu cozinhava, servia-lhe chá
Devia ter então mais de trinta anos
Ganhara dinheiro, vivera com homens
 
Deitávamo-nos para dar e receber
Debaixo do mosquiteiro branco
E como não começámos a contar
Vivemos mil anos num só
 
As velas ardiam
A lua descia
A colina polida
A cidade leitosa
Transparente, ligeira, luminosa
Revelando-nos a nós os dois
Nesse plano fundamental
Em que o amor não tem vontade, controlo,
Limites
E se encontra metade do mundo perfeito
 
 
 
leonard cohen
a chama
alerta azul
tradução de inês dias
relógio d´agua
2019




03 janeiro 2024

luís miguel nava / a roupa

 
 
Entre o meu corpo e a roupa que o reveste há uma distância enorme. Dir-se-ia que a roupa está nas insondáveis profundezas dum abismo em torno de cuja protecção os meus órgãos se expusessem aos caprichos do céu. Bloqueiam-me as vértebras palavras de cujo sentido o próprio sol precisa para brilhar. Sai-me do corpo o tempo num só vómito, o que torna transparente todos os meus órgãos. A roupa é uma incógnita, esmagada assim entre a esperança e as torrentes.
 
 
 
luís miguel nava
o céu sob as entranhas
poesia
assírio & alvim
2020
 



02 janeiro 2024

joão pedro grabato dias / a arca

 
 
CCLXXXIX
 
Não procures o encontro com a verdade
porque cercá-la é já nega-la um pouco.
A verdade é vivê-la, não pensá-la
como se te soubesses já de fora.
Se a verdade procuras como gamo
a caçar, com as armas que o costume
te deu, sabe que voltarás sem caça.
Que sabes tu dos usos da verdade?
É fêmea? É macho? Em que fojo dorme?
Onde bebe? Onde pasce? Onde procria?
 
 
joão pedro grabato dias
odes didácticas
a arca, ode didáctica na primeira pessoa, 1971
tinta da china
2021





 

01 janeiro 2024

vasco gato / janeiro




 

é esta a completude dos dias
quando se reúnem sobre a cidade
os sossegos da nossa idade já meiga.
são estas as palavras que ficam
desde o interior do nosso mais antigo nome.
 
é o inverno aberto de janeiro
com as árvores despidas e o frio azul,
é o ano que começa no tempo que é nada,
os bolsos que se enchem de mãos,
as casas que parecem mais juntas.
 
por esta altura estarão a nascer
as horas mais felizes das nossas vidas
– bebemos chá escutando o lume
e amanhã será um dia a menos,
um outro som acrescentado à voz,
um abraço fechando-se até ao amor.
 
 
 
vasco gato
um mover de mão
assírio & alvim
2000




 

31 dezembro 2023

antónio franco alexandre / corto viaggio sentimentale, capriccio italiano

 
 
39
 
outra vez volto
a olhar. O paraíso
é assim: à semelhança do inferno,
mas em tudo diferente.
Por exemplo: aqui trocamos os nomes todos,
cada dia é uma nova
constelação. Do outro lado
dos teus olhos,
quando o retrovisor espreita
por cima dos teus ombros,
fica um mundo suspenso,
o manso amor, o vento.
 
 
 
antónio franco alexandre
quatro caprichos
assírio & alvim
1999
 



30 dezembro 2023

antónio cândido franco / não me interessa nenhum dom sebastião

 
 
3
 
Não me interessa nenhum Dom Sebastião
fora de mim
como não me interessa nenhuma realeza
salvo a do coração.
 
Há mais Rei nesta minha anarquia
que em qualquer monarquia do mundo.
E há mais saudade no meu nada
que em qualquer memória do passado.
 
O sebastianismo é a descoberta no Homem
daquilo que já não é do Homem
mas da criança eterna e presente.
O sebastianismo é a consciência da criança no Homem.
 
Essa consciência é que é a forma contente de estar triste.
Essa consciência é que é a antiga tristeza lusitana
tão próxima e tão real aqui.
A saudade impossível
a saudade do presente
a saudade que já mão é saudade
mas nada e presença.
 
Se no Inverno
a saudade é a consciência da Primavera
e no Homem
ela é a consciência de ser menino
então nada há aqui de memória ou de desejo
de lembrança do antigo ou de esperança no porvir
de desespero do mesmo
ou de ânsia de qualquer outro.
 
O que há é a presença intemporal de tudo
no instante único e eterno deste presente.
 
Esta saudade é que me faz ser
mas ser nada.
 
E na escuridão e no silêncio desta casa
fria e nua
eu sou a alegria e a plenitude do canto
a graça e a consciência da luz.
 
 
 
antónio cândido franco
apeadeiro
revista de atitudes literárias
nr. 1 primavera 2001
quasi
2001




29 dezembro 2023

francisco brines / com quem farei amor?





 
 
 
                     A Juan Luis Panero
 
 
     Neste copo de genebra bebo
os cercados minutos da noite,
a aridez da música e o ácido
desejo da carne. Só existe,
onde o gelo se ausenta, cristalino
licor e medo à solidão.
Esta noite não haverá a mercenária
companhia, nem gestos de aparente
calor num escasso desejo. Longe
está hoje minha casa, a ela chegarei
na deserta luz da madrugada,
despirei meu corpo, e nas sombras
hei-de jazer com o tempo estéril.
 
 
 
francisco brines
aún no (1971)
ensaio de uma despedida
(antologia 1960-1986)
trad. josé bento
assírio & alvim
1987