12 dezembro 2023

manuel antónio pina / tudo o que te disser

 
 
São feitas de palavras as palavras
e da melancolia da
ausência da prosa e da ausência da poesia.
 
É o que falta que fala
do lugar do exílio
do sentido e da falta de sentido.
 
Tudo o que te disser
tudo o que escrever
sou eu a perder-te,
 
cada palavra entre
o que em mim é corpo
e é nela sopro.
 
 
 
manuel antónio pina
em prosa provavelmente
todas as palavras, poesia reunida
assírio & alvim
2012
 



11 dezembro 2023

rui knopfli / fim de tarde no café

 




 
Na tarde cor de azebre
falávamos de coisas amargas.
Ali, na mesa triste do café
com moscas adejando
sobre restos de açúcar
e um copo de água
morna de esquecida,
falávamos da amargura das coisas,
entre rostos graníticos e enxovalhados,
entre estranhos e estranhos
de estranhos e os que,
nada tendo de estranhos,
cuidam de cuidar
o que se passa entre estranhos.
Na tarde comprida e silenciosa
tecíamos gestos inúteis
e palavras entre dentes,
mergulhados na paisagem geométrica
do café. Do café tão cheio de gente
e fumo e moscas e caras tristes
e afinal tão profundamente,
tão desesperadamente vazio.
 
 
 
rui knopfli
motivações
memória consentida
20 anos de poesia 1959/1979
imprensa nacional -casa da moeda
1982
 



10 dezembro 2023

alberto de lacerda / bach

 



 
No claro silêncio desnudo,
      a Geometria dança livremente.
 
Eu sinto, eu creio, eu canto, e a luz é tanta
que a sala se esboroa por completo
e o céu cobre, em palácio, o mundo inteiro.
 
Sou a recta sublime que se cumpre
desde o centro da terra ao infinito.
 
 
 
alberto de lacerda
cadernos de poesia
II série, fascículo 8
Lisboa 1951
campo das letras
2004
 




09 dezembro 2023

rolf dieter brinkmann / poema

 
 
Paisagem destruída, com
latas de conserva, as entradas das casas
vazias, o que há lá dentro? Aqui cheguei
 
à tarde, de comboio,
duas panelas atadas
ao saco de viagem. Agora deixei
 
para trás os sonhos que sopram
numa encruzilhada. E pó,
pavana fragmentada, néon
 
morto, jornais e carris,
este dia, que me resta agora,
um dia mias velho, mais afundado e morto?
 
Quem é que disse que a isto
se chama vida? Eu retiro-me
para outros tons de azul
 
 
 
rolf dieter brinkmann
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
tradução de joão barrento
assírio & alvim
2001
 
 

08 dezembro 2023

samuel beckett / sobressaltos


 
(…)
 
Tinha havido um tempo em que às vezes ele levantava a cabeça o suficiente para ver as mãos. O que havia delas para ver. Uma deitada sobre a mesa e a outra por cima dela. em repouso depois de tudo o que tinham feito. Levantava a antiga cabeça por um momento para ver as antigas mãos. Depois deitava-a outra vez sobre elas para que também ela repousasse. Depois de tudo o que tinha feito.
 
(...)
 
 
 
samuel beckett
sobressaltos
trad. miguel esteves cardoso 
o independente
05-01-1990




07 dezembro 2023

billy collins / aranha irlandesa

 
 
Valeu bem a pena viajar até aqui
apenas para me sentar numa caixa de luz do sol
junto a uma janela de uma casa de campo
 
com uma chávena de chá a fumegar
e observar uma aranha irlandesa à espera
no centro da sua teia orvalhada
 
fingindo ser uma aranha qualquer –
uma aranha sem país –
mas nem por um minuto me enganando.
 
 
 
billy collins
a aranha irlandesa & outros poemas,
trad. francisco José craveiro de carvalho
do lado esquerdo
2023




06 dezembro 2023

julio cortázar / manual de instruções

 
 
Ter de ganhar o dia-a-dia todos os dias, esbracejar num mundo pegajoso, ter de acordar todas as manhãs num repugnante cubículo, e satisfeito que nem um cão por tudo estar nos seus lugares: a mesmíssima mulher, os sapatos de sempre, o eterno sabor da eterna pasta dentífrica, a mesma tristeza das casas fronteiras, a suja tabuleta com o letreiro HOTEL DE BELGiQUE.
 
Enfiar a cabeça como um touro vencido pela multidão transparente em cujo centro tomamos o café com leite e folheamos o jornal para saber o que aconteceu num ponto qualquer do globo. Não consentir que o acto delicado de girar o trinco da porta, acto que tudo poderia modificar, se cumpra com a fria eficácia de um reflexo quotidiano. Até logo, querida. Passa bem.
 
Apertar uma colher na mão e sentir o seu gemido de metal, sua advertência suspeita. Dói negar uma colher, negar uma porta, negar tudo o que o hábito seduz com suavidade satisfatória. É tão mais simples aceitar a solicitude fácil da colher, usá-la para mexer o café.
 
E não há nada de mal em que as coisas nos vejam mudar.
 
Que ao nosso lado esteja sempre a mesma mulher, o mesmo relógio e que o livro aberto sobre a mesa de cabeceira recomece a andar na bicicleta dos nossos óculos, porque haveria isso de ser mau? Mas há que baixar a cabeça como um touro triste e empurrar para longe o centro do globo de cristal, até outro tão perto de nós, inacessível como o picador tão perto do touro. Forçar os olhos para o que no céu aceita teimosamente o nome de nuvem, sua réplica catalogada na memória. Não pense que o telefone te irá dará o número que procuras. Por que razão to daria? Somente o que já tens preparado e pronto, o triste reflexo da tua esperança, esse macaco que se coça à mesa e treme de frio, chegará aos teus ouvidos. Escavaca a cabeça a esse macaco, vai contra as paredes, rebenta-as. Alguém que canta no andar de cima! Nesta casa há um andar de cima, com outras pessoas! Um andar de cima onde vivem pessoas que nem imaginam o andar de baixo, e cá estamos todos na bola de cristal. E se de repente uma traça aparece na ponta de um lápis e palpita como um fogo cinzento, olha-a, eu olho-a, sinto esse coração pequeníssimo, oiço-a, a essa traça que vive na bola de cristal frio, nada está perdido. Ao abrira porta, ao chegar à escada, saberei que a rua está já ali em baixo; não o molde imposto, não as casas conhecidas, não o hotel em frente: a rua, floresta viva onde cada instante pode invadir-me como uma magnólia, onde as caras começam quando as olho, quando avanço, quando com os cotovelos, pestanas e unhas me atiro minuciosamente contra a massa da bola de cristal, e arrisco a vida enquanto avanço passo a passo para ir comprar o jornal à esquina.
 
 
 
júlio cortázar
histórias de cronópios e de famas
manual de instruções
tradução de alfacinha da silva
editorial estampa
1973




 

05 dezembro 2023

roland barthes / incidentes

 




 

 
 
 
Na praça do pequeno Socco, de camisa azul ao vento, figura de Desordem, um rapaz encolerizado (o que significa, neste caso, com todos os traços da loucura) gesticula e invectiva um Europeu (Go home!). Desaparece. Segundos mais tarde, um canto anuncia que se aproxima um enterro; o cortejo aparece. Entre os carregadores (que se revezam) do caixão, o mesmo rapaz, provisoriamente sereno.
 
 
 
roland barthes
incidentes
trad. tereza coelho e alexandre melo
quetzal
1987
 




04 dezembro 2023

vergílio ferreira / a morte dos amigos

 
 
284 – A morte dos amigos e conhecidos traz uma pergunta enigmática que nos desconstrói a imortalidade. Escrevo-a na lousa escolar em letras tortas de hesitação – para quê? Apago as letras com a esponja, fica o escuro da pedra. Para quê? É a pergunta da infância e da velhice. Apago a pergunta na memória e fica a lisura de simplesmente existir. E a imortalidade volta como a ternura triste de um cão.
 
 
vergílio ferreira
escrever
edição de helder godinho
bertrand editora
2001





03 dezembro 2023

bernardo soares / reconheço hoje que falhei,

 
 
L. do D.
 
Reconheço hoje que falhei, só pasmo, às vezes, de não ter previsto que falharia. Que havia em mim que prognosticasse um triunfo? Eu não tinha a força cega dos vencedores ou a visão certa [?] dos loucos...
 
Era lúcido e triste como um dia frio.
 
Tenho elementos espirituais de boémio, desses que deixam a vida ir como uma coisa que se escapa das mãos e a tal hora em que o gesto de a obter dorme na mera ideia de fazê-lo. Mas não tive a compensação exterior do espírito boémio — o descuidado fácil das emoções imediatas e abandonadas. Nunca fui mais que um boémio isolado, o que é um absurdo; ou um boémio místico, o que é uma coisa impossível.
 
Certas horas-intervalos que tenho vivido, horas perante a natureza, esculpidas na ternura do isolamento, ficar-me-ão para sempre como medalhas. Nesses momentos esqueci todos os meus propósitos de vida, todas as minhas direcções desejadas. Gozei não ser nada com uma plenitude de bonança espiritual, caindo no regaço azul das minhas aspirações. Não gozei nunca, talvez, uma hora indelével, isenta de um fundo espiritual de falência e de desânimo. Em todas as minhas horas libertas uma dor dormia, floria vagamente, por detrás dos muros da minha consciência, em outros quintais, mas o aroma e a própria cor dessas flores tristes atravessavam intuitivamente os muros, e o lado de lá deles, onde floriam as rosas, nunca deixaram de ser, no mistério confuso do meu ser, um lado de cá — esbatido na minha sonolência de viver.
 
Foi num mar interior que o rio da minha vida findou. À roda do meu solar sonhado todas as árvores estavam no outono. Esta paisagem circular é a coroa-de-espinhos da minha alma. Os momentos mais felizes da minha vida foram sonhos, e sonhos de tristeza, e eu via-me nos lagos deles como um Narciso cego que gozou a frescura próximo da água, sentindo-se debruçado nela, por uma visão anterior e nocturna, segredada às emoções abstractas, vivida nos recantos da imaginação com um cuidado materno em preferir-se.
 
Sei que falhei. Gozo a volúpia indeterminada da falência como quem dá um apreço exausto a uma febre que o enclausura.
 
s.d.
 
 
 
fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
ática
1982




02 dezembro 2023

ievgueni ievtuchenko / monólogo duma actriz

 




 
Diz a actriz: Parece que a velha Tróia foi destruída!
Já não há papéis,
não há papéis daqueles que viravam a minha alma
                               do avesso,
que me esgotavam de vez as lágrimas.
Estou farta desta vida, vou fugir para o campo.
 
Não há papéis que prestem.
Afogamo-nos no sempapelismo.
Maldita seja a união dos escritores,
                                         não os Escritores.
Os clássicos estão encharcados como um piquete
                                               de bombeiros.
Pois não sabiam eles de Hiroxima,
da guerra de Espanha, do ano de 1937
na Rússia, de todas as nossas dores?
Não me digam que isto era impossível de contar…
 
Já não há papéis que prestem.
E sem bons papéis ficamos sem bússola:
tu sabes como o Universo é pavoroso.
Quando qualquer coisa desliza pelo céu
não haverá saída para essa coisa?
 
Faz favor, dá-me um bilhete para a estreia.
Faz favor, dá-me o meu bem-estar.
E papéis para a esquerda,
papéis para a direita…
Eu bebo,
bebo sem vontade, é certo,
mas que querem que faça
quando não há gente, não há papéis que prestem?
 
Bebe onde estiveres, trabalhador,
e com que copo – não sei.
Não há papéis que prestem.
 
Chora, harmónio, em qualquer margem
                                                         do grande Volga.
Não há papéis que prestem.
E em Fátima camponeses beijam Nossa Senhora,
                                                Madona de pedra e dor.
Não há papéis que prestem.
 
Era um moço de dezasseis anos
e bateram nele como se fosse um bombo.
Não há papéis que prestem.
 
Ninguém fala das mortes atrozes,
                                       mas alguém grita para o juiz.
                                       Onde? No futebol!
 
Não há papéis que prestem.
E sem bons papéis a vida é podridão, mais nada.
 
Todos nós somos génios no ventre materno,
mas muitos génios possíveis morreram
à falta de bons papéis.
Eu não exijo o sangue de ninguém –
exijo um papel que preste!
 
 
 
ievgueni ievtuchenko
ievtuchenko em lisboa (1967)
dom quixote
1968



01 dezembro 2023

joão miguel fernandes jorge / primeiro de dezembro

 




 
O Primeiro de Dezembro é um café pobre. O dono
se reconhece a sua casa neste verso
não vai gostar. Que posso fazer? Recordo a sala ampla;
deu lugar a várias divisões – salas de restaurante e
café – o espaço de soalho carcomido; estremecia ao
passo dos clientes. Cheiro a café de saco bem quente
servido em copo. E o vinho que bebiam ao balcão, Gaeiras
de reduzida colheita de lavrador, quando a luz incidia,
brilhava como telha vermelha magoada de luar.
 
A vila – se alguma coisa de qualidade em
Portugal deixasse um dia de ser pobre – tem hoje arre-
medos de casinha de chocolate.
Fico-me pela esplanada no desvão do largo irregular e
perfeito. Em frente, o portal da ermida de São Martinho;
dois túmulos prendem-se à estreita frontaria. À direita, a
parede lateral da igreja de São Pedro; ao lado esquerdo,
armas plenas do reino, coroadas, dão corpo ao edifício da
câmara. Buganvílias crescem na diferença do vermelho e do roxo.
 
Cimeira à ermida, uma velha casa aluga quartos. Um dia
hei-de fazer de turista e alugar a divisão fronteira à mesa
em que, por hábito, me sento. Não é golpe narcisista
para ver o lugar da minha ausência. Vou querer abrir e
fechar a empenada janela de guilhotina e voltar a abri-la
para assim permanecer toda a noite.
Hei-de sentar-me na cama, despir-me com o vagar dos gestos
de quem nunca teve um ombro onde pousar a cabeça; de
súbito, quando já for madrugada, hei-de ouvir
 
vozes alegres, risos, chamamentos, respostas
joviais, hei-de chegar à janela, hei-de ver
os mortos de Óbidos
abandonados nas posições mais cruéis.
Feira de cadáveres e de porção de ossos; e uma festa ao mesmo
                                                                                 tempo
com um tilintar de campainhas a carruagem de não sei que
capitão de praça vai passar pelo meio dos despojos
levada por um cavalo branco. E na boleia, os gémeos
que conheci na casa logo abaixo da Misericórdia. O mais bonito
segurava as rédeas e o chicote. O que não era tão bonito –
  leitura difícil, rosto e corpo genuinamente iguais – tocava
                                                                  o serpentão.
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
invisíveis correntes
relógio d´água
2004



30 novembro 2023

joaquim manuel magalhães / columbário

  
 
Cada ano que passa traz-me lenha.
São já muitos quando a camioneta chega
com as três ou quatro toneladas de mistura.
Assim chama às várias espécies derribadas
que chegam para cada Inverno que lhe pago.
Agora já digo ao Sr. Antunes: mais um ano.
E ele ignora-me. Que se gasta a lenha
mas é um conforto. Que é um pecado lamentar.
Com o seu santo na medalha pendurado
nem lhe digo que também por cada ano,
mais que a lenha, ardemos e ardemos.
 
Jardins abertos. Em várias ruas
ao longo do anoitecer
distinguia-se quem lançava rápidos sinais
e para um outro lado nos dispunha.
Ainda nem eram precisos bares.
Um autocarro, o metro, qualquer mesa
de um café
ensinava-nos o caminho de elevadores,
as janelas de onde se via,
depois,
a cidade adormecida.
 
Um holofote amarelo contra o quarto que me alberga,
toda a noite uma sobreluz de hotel que demolia
as tentativas de sono detrás do tempo sem blackout.
Só na segunda noite me lembrei de pendurar
edredões das sanefas e o escuro me recuperou.
Ouvia no rádio postos que não sei que transmitiam,
de vez em quando devia cair no torpor dos barbitúricos
que nenhum efeito tinham já. O ar
abafado e seco pelas tubagens que não desligavam,
as pernas entumesciam com as alergias cutâneas
debaixo de tecidos talhados com acrílicos.
 
Atira os troncos cortados contra a parede
da arrecadação, os pequenos toros caem
com um baque, tropeçam uns nos outros,
julgamos que repousam.
Mas depois vamos buscá-los para a segunda morte,
além da árvore donde os abateram
e nunca mais um pássaro lhes cantará.
Também vai às outras árvores que me serra,
algumas quase rente ao chão. Fazem
sombra de mais, começam a ficar
secas e com musgo. Parece que tudo
fica límpido quando tombam e as leva
para um sumidouro que não sei.
 
Nesse tempo o receio era tão pouco.
Bastava estar atento ao mover dos olhos,
à qualidade do sorriso, e todos éramos
a grata euforia da entrega,
a ejaculação que parecia nunca mais findar.
Sempre outro corpo mais
connosco seguiria. Jardins abertos.
Chuveiros com o mais forte abraço,
um odor diferente em cada alegria.
Talvez nos julgassem clandestinos
mas não findavam
as viagens súbitas para um novo leito.
 
A noite despeja-me na noite, semi acordado,
semi adormecido, num entre estado sem nome,
como devem estar
os cães encostados aos sem abrigo nos recantos
com os faróis contínuos do trânsito nocturno.
Levanto-me no rumor de todos os ares condicionados
atirados do hotel para o seu saguão, e lembro
a moto-serra do Sr. Antunes a desbravar o jardim fechado,
a deitar por terra o vento que batia nos ramos,
ficava tudo coalhado de um serrim pacífico
e os arbustos atrofiados pela capa sombria
logo se sentiam reerguer, alargar,
ao contrário desta noite que pesa cada vez mais.
Horas abauladas, procuro fugir-lhes no terror
das imagens nocturnas que numa outra luz
podem subir ao cérebro para despedaçá-lo.
 
Mais tarde haverá novos rebentos, demoram algum tempo,
vou-os arrancando a um por um
nos sítios onde não quero que mais nada cresça.
Outros sobem de novo cada vez mais alto, marcam
com os seus dias os meus dias
num sem retorno que também sou eu.
 
Depois nem já clandestinos.
A música dos novos bares
atenuava um pouco
a pretérita euforia das ruas.
Pareciam barcas donde se ouvia
clamores,
a corrente fulgurava entre a sombra
de cada corpo
e da margem acenavam-nos
com caminhos felizes
que podiam ser logo abandonados.
Ninguém já perseguia?
Um clarão fulminante
cruzava o céu de cada peito.
 
O terreiro agora ficou sem os ramos
piores, os de folhagem que enlameia a relva,
partiu a camioneta tão enchida
desses sítios que já tiveram ninhos
que só com muitas aselhas nos cordames
se consegue rebaixar, pequenos braços
vigorosos, resistem, não querem
enterrar-se uns pelos outros, procuram
permanecer, divago eu, como nós
ao deus inútil tanta vez pedimos.
Mas depois da nuvem de gasóleo da partida
logo me recolho e penso que na felicidade
é que julgamos inútil o que nos ajuda.
 
Mesmo assim os sonhos do passado morto
(morto, alguma vez morre tudo aquilo?)
um por um vêm e calcam com a sua verdade inteira,
persistem nos pequenos rolos de cérebro derramado,
seguem a sua astuta reconstituição, da infância
para cima, de mais tarde para baixo,
até conspurcarem todo o terreno parado do presente,
sem ameaça, só com a certeza do que não volta atrás,
do que ficou definitivamente assim.
A lenha precisa ainda de secar, repetia o Sr. Antunes,
durante um ano, são árvores de seiva matreira, todas
feitas para a falsidade, abrem um oco dentro da copa,
só na extremidade fazem bolas de verdura opaca,
fingem ser paisagem, amarelecem verdes ainda,
morrem sem dor, com uma longuíssima resignação,
tão longa que parece apenas um esquecimento.
 
Jardins abertos. Ninguém
os atravessa agora. Bares para o aturdimento
de músicas. Tudo passou a história.
Hoje há o cuidado. E se o amor
ultrapassa o prazer, restam
os testes e as suas repetições.
Só quis lembrar esta barra de fogo
apagada.
A vã duração do tempo.
 
Escrevo estes versos de memórias
alheado já.
Cada palavra mistura-se com todas.
Mas lembra-te que pensei sempre,
leitor, jardim aberto,
de algum modo em ti.
Deixa estar por uns segundos contigo
estas histórias. Dá-lhes
algum cuidado. Havia o Sr. Antunes. Pode ser
que voltes um dia a ter um tempo
para de novo te sentares com elas.
Dei-lhes o meu pensamento ameaçado
por um holofote tenaz.
Se encontrares nisso algo que te sirva
recorda-o no teu espírito
mesmo que nada se possa repetir.
 
Eu digo para mim que é esta
a utilidade da poesia,
a lembrança.
E que podes ainda, se parecem vãos
todos os meus efeitos,
largá-la de ti e haver proveito
em não seguires comigo todos os caminhos
onde ressoam passos do meu precipício.
 
 
 
joaquim manuel magalhães
alta noite em alta fraga
relógio d´água
2001