17 outubro 2023

miguel serras pereira / na morte das horas

 
 
Um dia ficámos sós e a teu lado
os anos vão ficando enquanto passam
 
Perdendo-se vão connosco adormecidos
nas casas sem regresso onde moramos
 
Que água lavará da tua boca
o sangue que secou de tanto vento?
 
Quebra-se a espada e vira a sua lâmina
o fulgor contra nós dos nossos olhos
 
Um mar de areia insiste nestas veias
que roubam o alto mar aos mares do sono
 
que as sementes do sangue não semeiam
senão o vento inútil que as secou
 
Árvore moribunda pântano de sede
ou animal que nasce da ferida
 
Agora voam e as asas envenenam-nas
as horas que te esperavam e morreram
 
 
 
 
miguel serras pereira
á tona do vazio & reprise
cinquenta anos de poesia de miguel serras pereira 1969-2019
todo o ano 1990
barricada de livros
2022
 



16 outubro 2023

francisco josé viegas / da dimensão das ilhas

 




 
de um lado, a visão de um farol, Oileán na Tuí,
e os declives de Daibhche escurecendo o mar.
do outro, em frente aos ilhéus desabitados,
a pequena aldeia de Bun Gabhla;
estende-se a mão sobre o mapa, fica quente
ao tocar as pequenas elevações de pedra. nelas cresce
o musgo, a melancolia, flores que resistem ao temporal,
é talvez o destino que repete a viagem
de John Dillon em direcção à América, escapando aos saxões.
assinala a sua partida uma pequena inscrição
junto às igrejas da colina, em Tempall Chiaráin.
viu ele, depois de outros, que o destino da sua pátria
teria de atravessar essas ruínas vazias.
 
 
 
francisco josé viegas
hífen 7 abr 1992
cadernos semestrais de poesia
dias inúteis
1992
 


15 outubro 2023

bernardo soares / quantas coisas que temos por certas e justas,

 
 
Quantas coisas, que temos por certas ou justas, não são mais que os vestígios dos nossos sonhos, o sonambulismo da nossa incompreensão! Sabe acaso alguém o que é certo ou justo? Quantas coisas, que temos por belas, não são mais que o uso da época, a ficção do lugar e da hora? Quantas coisas, que temos por nossas, não são mais que aquilo de que somos perfeitos espelhos, ou envólucros transparentes, alheios no sangue à raça da sua natureza!
 
Quanto mais medito na capacidade, que temos, de nos enganar mais se me esvai entre os dedos lassos a areia fina das certezas desfeitas. E todo o mundo me surge, em momentos em que a meditação se me torna um sentimento, e com isso a mente se me obnubila, como uma névoa feita de sombra, um crepúsculo dos ângulos e das arestas, uma ficção do interlúdio, uma demora da antemanhã. Tudo se me transforma em um absoluto morto de ele mesmo, numa estagnação de pormenores. E os mesmos sentidos, com que transfiro a meditação para esquecê-la, são uma espécie de sono, qualquer coisa de remoto e de sequaz, interstício, diferença, acaso das sombras e da confusão.
 
Nesses momentos, em que compreenderia os ascetas e os retirados, se houvesse em mim poder de compreender os que se empenham em qualquer esforço com fins absolutos, ou em qualquer crença capaz de produzir um esforço, eu criaria, se pudesse, toda uma estética da desconsolação, uma rítmica íntima de balada de berço, coada pelas ternuras da noite em grandes afastamentos de outros lares.
 
Encontrei hoje em ruas, separadamente, dois amigos meus que se haviam zangado um com o outro. Cada um me contou a narrativa de porque se haviam zangado. Cada um me disse a verdade. Cada um me contou as suas razões. Ambos tinham razão. Ambos tinham toda a razão. Não era que um via uma coisa e o outro outra, ou que um via um lado das coisas e outro um lado diferente. Não: cada um via as coisas exactamente como se haviam passado, cada um as via com um critério idêntico ao do outro, mas cada um via uma coisa diferente, e cada um, portanto, tinha razão.
 
Fiquei confuso desta dupla existência da verdade.
 
s.d.
 
 
 
fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol. II
europa-américa
1986
 



14 outubro 2023

maria victoria atencia / a visita

 



 

 

    Em noites que eram suas à casa regressava
pela vaga memória de um antigo desejo
e às escuras deixava no chão do corredor
uma pegada de cinza acre e o sussurro
de uma voz que me ia dando alento o dia inteiro.
 
 
 
maria victoria atencia
antologia poética
compás binario
tradução josé bento
assírio & alvim
2000




13 outubro 2023

ruy belo / uma forma de me despedir

 




 
Há o mar há a mulher
quer um quer o outro me chegam em acessíveis baías
abertas talvez no adro amplo das tardes dos domingos
Oiço chamar mas não de uma forma qualquer
chamar mas de uma certa maneira
talvez um apelo ou uma presença ou um sofrimento
Ora eu que no fundo
apesar das muitas palavras vindas nas muitas páginas dos dicionários
bem vistas as coisas disponho somente de duas palavras
desde a primeira manhã do mundo
para nomear só duas coisas
apenas preciso de as atribuir
Não sei se gosto mais do mar
se gosto mais da mulher
Sei que gosto do mar sei que gosto da mulher
e quando digo o mar a mulher
não digo mar ou mulher só por dizer
Ao dizer o mar a mulher
há penso eu um certo tom na minha voz sinto um certo travo na boca
que mostram que mais que palavras usadas para falar
dizer como eu digo a mulher o mar
mar mulher assim ditos
são uma maneira talvez de gostar
e a consciência de que se gosta
e um prazer em o dizer
um gosto afinal em gostar
Enfim o mar a mulher
pode num dos casos ser a/mar a mulher
mera forma talvez de uniformizar o artigo
definido do singular
Há ondas no mar
o mar rebenta em ondas espraiadas nos compridos cabelos da mulher
que ela faz ondular melhor de tarde em tarde
no mês de setembro nas marés vivas
O melhor da mulher talvez o olhar
é para mim o mar da mulher
e à mulher que um só dia encontro na vida
de passagem um simples momento num sítio qualquer
talvez a muitos quilómetros do mar
mas mulher que não mais consigo esquecer
mesmo imerso na dor ou submerso em cuidados
a essa mulher qualquer
eu chamo mulher do mar
Nos fins de setembro quando eu partir
de uma cidade seja ela qual for
quando eu pressentir que alguém morre
que alguma coisa fica para sempre nos dias
e ou nuns olhos ou numa água
num pouco de água ou em muita água
onda do mar lágrima ou brilho do olhar
eu recear seriamente vir-me a submergir
direi alto ou baixo conforme puder
com a boca toda ou já a custar-me a engolir
as palavras mar ou mulher
com certo vagar e cada vez mais devagar
mulher mar
depois quase já só a pensar
o mar a mulher
Não sei mas será
talvez mais que outra coisa qualquer
uma forma de me despedir
 
 
 
ruy belo
toda a terra
todos os poemas III
assírio & alvim
2004




12 outubro 2023

mark strand / os restos





 

 

                               Para Bill e Sandy Bailey
 
 
 
 
Esvazio-me dos nomes dos outros. Esvazio os meus bolsos.
Esvazio os meus sapatos e largo-os à beira do caminho.
À noite faço retroceder os relógios;
Abro o álbum de família e vejo como era em rapaz.
 
O que gano com isto? As horas fizeram o seu trabalho.
Digo o meu próprio nome. Digo: adeus.
As palavras seguem-se umas às outras seguindo vento.
Amo a minha mulher mas mando-a embora.
 
Os meus pais deslocam-se dos seus tronos
para dentro dos quartos leitosos das nuvens. Como posso cantar?
O tempo diz-me o que sou. Mudo e sou o mesmo.
Esvazio-me da minha vida e a minha vida é o que me resta.
 
 
 
mark strand
o universo está pintado à mão
uma antologia fanática
luís filipe parrado
língua morta
2020
 





 

11 outubro 2023

billy collins / o papel da poesia

 



 
Acordei cedo numa terça-feira,
fiz uma cafeteira de café para mim,
fui de carro até à aldeia,
parando no correio,
a seguir no banco, onde descontei um pequeno cheque
de uma revista, e quando voltei para casa
li o jornal um bocado,
começando pela secção de ciência,
bebi outro café e comi uma tigela de cereais.
 
Daí a pouco era hora de almoço.
Não tinha fome nenhuma
mas parei por um momento
a olhar pela grande janela da cozinha
e foi então que percebi
que o papel da poesia é recordar-me
que há muito mais na vida
do que aquilo que faço habitualmente
quando não estou a ler ou a escrever poesia.
 
 
 
billy collins
a aranha irlandesa & outros poemas,
trad. francisco josé craveiro de carvalho
do lado esquerdo
2023




10 outubro 2023

juan manuel bonet / não tenhas medo

 
 
 
Pelo corredor avança a penumbra,
umas formas que parecem fantasmas.
Mas não tenhas medo, não são espíritos maus.
São apenas duendes brincalhões
cujo ser se dissolve na música
do piano vizinho ou na canção
de um rio do teu país, que lembres
fechando os olhos. Não, não tenhas medo,
eu acenderei a lâmpada e ir-se-ão.
 
 
 
juan manuel bonet
poesia espanhola de agora volume I
trad. de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997





09 outubro 2023

rui diniz / o outono

  
Num lugar ao sul às aves lentas é dado
o trémulo saber do mar. As asas afastadas,
o sangue inquieto e um único olhar que
enfrente as mãos e o riso da intempérie,
estas aves deslocam-se e viajam, frequente-
mente até ao norte, a uma galiza sonhada
na pureza do céu, sob o trajecto das primeiras
chuvas, em novembro ou outro mês. O frio
transporta-as aos velhos palácios da Cantuária,
a instância do seu nome e do seu fulgor
arrasta-as até aos enormes salões e ameias,
num precipício comum, a aventura leda e
cega do animal, sua rota de acaso, sua beleza
imortal. Nos campos ásperos e molhados dos
manors, rostos, serenidade e demência, perante as frágeis
regiões que percorrem, abrem sua sulcada voz
e um instante é percorrido desse balbuciar alado,
sombras no céu da silhas, no exacto lugar
de junção das correntes do estreito, caudais
fortes e rápidos, certeza, decisão, um lugar.
Por fim, quando da travessia exaustas, se
Deixam vogar na solidez de um vento, e
Nesse semelhante gesto ao do amor, seu destino
Qual for entre si abertas deliberam.
 
 
 
rui diniz
ossos de sépia
noemas
língua morta
2022





08 outubro 2023

vicente aleixandre / vida





 
Um pássaro de papel no peito
diz que o tempo dos beijos não chegou;
viver, viver, o sol invisível crepita,
beijos ou pássaros, tarde ou cedo ou nunca.
Para morrer basta um pequeno ruído,
o de outro coração ao calar-se,
ou esse regaço alheio que na terra
é um barco dourado para os cabelos louros.
Cabeça dolorida, têmporas de ouro, sol que declina;
aqui na sombra sonho com um rio,
juncos de verde sangue que neste instante nasce,
sonho apoiado em ti, calor ou vida.
 
 
 
vicente aleixandre
la destrucción o el amor (1932-1933)
antologia de vicente aleixandre
tradução de josé bento
editorial inova
1977



 

07 outubro 2023

ted hughes / a máquina

 
 
 
A escuridão devorava-te. E o medo
de seres esmagada. «Uma enorme máquina escura»,
«a mó trituradora e indiferente das circunstâncias». Depois
de olhares o poente alaranjado, foram estas as palavras
que escreveste numa folha. Tinham vindo ter contigo
e eu não. Quando tentaste
fazer-me subir até ao cimo da escada, foi esse terror
que chegou em vez de mim. Enquanto
eu estava, se calhar, sentado com o Lucas, sem outro propósito
do que de cuidar do cão
que não tinha. Um cão a sério
talvez tivesse fitado o vazio,
com os pêlos arrepiados
enquanto a máscara grotesca do teu Mãe-Pai,
metade pedreira, metade hospital, mas no seu toso
de uma força irresistível, cheia dos teus poemas por escrever,
vinha até mim, invisível sem um murmúrio
por entre os imóveis salgueiros,
através da parede do The Anchor,
onde eu esvaziava a minha Guinness de um só trago
sorvendo-me obscuramente
para o interior do outro mundo
onde encontraria a minha casa. Os meus filhos. E a minha vida
sempre a tentar subir os degraus agora de pedra
em direcção à porta agora vermelha
que tu, no teu jeito habitual, abririas
ainda com tempo para falar.
 
 
 
ted hughes
cartas de aniversário
trad. de manuel dias
relógio d´água
2000
 




06 outubro 2023

sylvia plath / o enforcado

 
 
 
Pela raiz dos meus cabelos algum deus me agarrou.
Crepitei nos seus vóltios azuis como um profeta no deserto.
 
As noites fecharam-se de repente como a pálpebra de um lagarto:
Um mundo de dias brancos e monótonos, numa cova sem
     sombra.
 
Um aborrecimento de abutre pregou-me aqui a esta árvore.
Se ele fosse eu, faria o que eu fiz.
 
 
sylvia plath
ariel
trad. maria fernanda borges
relógio d´ água
1996





05 outubro 2023

sophia de mello breyner andresen / intervalo

 




 
Eu só quero silêncio neste porto
Do mar vermelho, do mar morto
 
Perdida, baloiçar
No ritmo das águas cheias
 
Quero ficar sozinha neste espanto
Dum tempo que perdeu a sua forma
 
Quero ficar sozinha nesta tarde
Em que as árvores verdes me abandonam
 
 
 
sophia de mello breyner andresen
coral 1950
obra poética I
caminho
1999