Quantas coisas, que temos por certas ou justas, não
são mais que os vestígios dos nossos sonhos, o sonambulismo da nossa
incompreensão! Sabe acaso alguém o que é certo ou justo? Quantas coisas, que
temos por belas, não são mais que o uso da época, a ficção do lugar e da hora?
Quantas coisas, que temos por nossas, não são mais que aquilo de que somos
perfeitos espelhos, ou envólucros transparentes, alheios no sangue à raça da
sua natureza!
Quanto mais medito na capacidade, que temos, de nos
enganar mais se me esvai entre os dedos lassos a areia fina das certezas
desfeitas. E todo o mundo me surge, em momentos em que a meditação se me torna
um sentimento, e com isso a mente se me obnubila, como uma névoa feita de
sombra, um crepúsculo dos ângulos e das arestas, uma ficção do interlúdio, uma
demora da antemanhã. Tudo se me transforma em um absoluto morto de ele mesmo,
numa estagnação de pormenores. E os mesmos sentidos, com que transfiro a
meditação para esquecê-la, são uma espécie de sono, qualquer coisa de remoto e
de sequaz, interstício, diferença, acaso das sombras e da confusão.
Nesses momentos, em que compreenderia os ascetas e
os retirados, se houvesse em mim poder de compreender os que se empenham em
qualquer esforço com fins absolutos, ou em qualquer crença capaz de produzir um
esforço, eu criaria, se pudesse, toda uma estética da desconsolação, uma
rítmica íntima de balada de berço, coada pelas ternuras da noite em grandes
afastamentos de outros lares.
Encontrei hoje em ruas, separadamente, dois amigos
meus que se haviam zangado um com o outro. Cada um me contou a narrativa de
porque se haviam zangado. Cada um me disse a verdade. Cada um me contou as suas
razões. Ambos tinham razão. Ambos tinham toda a razão. Não era que um via uma
coisa e o outro outra, ou que um via um lado das coisas e outro um lado
diferente. Não: cada um via as coisas exactamente como se haviam passado, cada
um as via com um critério idêntico ao do outro, mas cada um via uma coisa
diferente, e cada um, portanto, tinha razão.
Fiquei confuso desta dupla existência da verdade.
s.d.
fernando
pessoa
livro do
desassossego por bernardo soares. vol. II
europa-américa
1986
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