22 abril 2023

cesare pavese / tolerância



 

Chove sem ruído no prado do mar.
Nas ruas sujas não passa ninguém.
Do comboio desceu uma mulher sozinha:
por baixo do casaco comprido viu-se a combinação clara
e as pernas desaparecerem por uma porta escura.
 
Dir-se-ia uma aldeia submersa. O anoitecer
pinga, frio, sobre as soleiras das portas, e as casas
espalham na escuridão um fumo azulado. As janelas
acendem-se, avermelhadas. Acende-se uma luz
entre as portadas fechadas na casa às escuras.
 
Na manhã seguinte está frio e o sol brilha sobre o mar.
Uma mulher em combinação lava os dentes
na fonte e a espuma é rosada. Tem cabelos
louros arruivados, semelhantes às cascas de laranja
espalhadas no chão. De bruços na fonte, nota pelo canto do olho
um gaiato moreno que a fita encantado.
Mulheres feias abrem as portadas de par em par para a praça
– os maridos dormitam ainda, no escuro.
 
Quando volta a noite, a chuva recomeça
e crepita sobre as muitas lareiras. As esposas,
ao remexerem as brasas, deitam olhares à casa
às escuras e à fonte deserta. A casa
tem as portadas fechadas, mas lá dentro há uma cama,
e na cama uma loura ganha a vida.
Toda a aldeia descansa de noite,
toda, menos a loura que se lava de manhã.
 
 
 
cesare pavese
depois
trabalhar cansa
trad.carlos leite
cotovia
1997
 


 


21 abril 2023

julio cortázar / história verídica

 



 
     Um homem deixa cair os óculos que fazem um barulho terrível ao baterem no chão. Baixa-se aflitíssimo o homem, porque as lentes dos óculos são muito caras, mas com assombro descobre que por milagre não se partiram.
     Este homem fica contentíssimo e compreende que o acontecido é uma advertência amistosa, de maneira que vai a um oculista e compra imediatamente um estojo de couro almofadado com dupla protecção, para remediar o mal. Uma hora depois o estojo cai no chão e ao abaixar-se sem preocupações de maior descobre que os óculos se fizeram em fanicos. O homem demora um grande bocado a compreender que os desígnios da Providência são inescrutáveis e que na realidade o milagre ocorreu agora.
 
 
 
júlio cortázar
histórias de cronópios e de famas
material plástico
tradução de alfacinha da silva
editorial estampa
1973
 


20 abril 2023

leopoldo alas / com este sol

 
 
Com este sol que me descansa a alma
(a luz, a nitidez do céu,
esses aromas naturais
que desdenhei de há uns tempos até agora)
é fácil esquecer-me que o mal resiste
nos corações, nos olhares prudentes
dos homens cansados,
em tantos abismos das cidades,
nos dias que passam obscenos
sem se revoltarem,
tal como esses criados orientais
que, sem perder o sorriso, conspiram.
Com este sol que me descansa a alma.
 
 
 
leopoldo alas
poesia espanhola de agora vol. II
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997
 



19 abril 2023

josé tolentino mendonça / os incêndios

 



 
Não devias empurrar fogo tão solitário
sob os umbrais de uma morada
nos carreiros que vão dar aos montes
sairás ainda em súplica
quando os incêndios ignorarem a ameaça
da tua vassoura de giestas
 
a sombra uma vez avulsa
não retorna a mesma
 
não despertes o que não podes calar
 
 
 
josé tolentino mendonça
longe não sabia
presença
1997
 




18 abril 2023

jorge de sena / «quem muito viu…»

 
 
Quem muito viu, sofreu, passou trabalhos,
mágoas, humilhações, tristes surpresas;
e foi traído, e foi roubado, e foi
privado em extenso da justiça justa;
 
e andou terras e gentes, conheceu
os mundos e submundos; e viveu
dentro de si e o amor de ter criado;
quem tudo leu e amou, quem tudo foi –
 
não sabe nada, nem triunfar lhe cabe
em sorte como a todos os que vivem.
Apenas não viver lhe dava tudo.
 
Inquieto e franco, altivo e carinhoso,
será sempre sem pátria. E a própria morte,
quando o buscar, há-de encontra-lo morto.
 
 
 
jorge de sena
arte de música (1968)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972




17 abril 2023

josé saramago / estrelas poucas




 
Dizer-te rosa, aurora ou água solta,
Que mais é que palavras apanhadas
No refugo das línguas e das bocas?
Os mistérios são pouco o que parece,
Ou não chegam palavras a dizê-los:
Na fundura do espaço estrelas poucas.
 
 
 
josé saramago
provavelmente alegria
caminho
1987





 

16 abril 2023

luis alberto de cuenca / sem medo nem esperança

 
 
E de repente voltas do inferno
com um fato de gala impressionante
que recorda o que Dale Arden usou
quando Ming, o cruel, foi derrocado.
Fitámo-nos ambos nos olhos como
se fosse o primeiro dia da História.
E bailámos, bochecha com bochecha,
trasladados a um mundo sem amanhã
nem ontem, ardendo numa fogueira
de plenitude, como anjos rebeldes
que acabam por levar a sua avante
perdendo a batalha, como sombras
que, na vitória do amor, sem silêncio
se dizem, sem medo nem esperança,
as palavras que nunca se disseram.
 
 
 
luis alberto de cuenca
a vida em chamas
uma antologia
trad. miguel filipe mochila
língua morta
2018




15 abril 2023

ted hughes / horóscopo

 




 

Querias estudar
as tuas estrelas – as guardas que vigiavam
o pátio da tua prisão, o seu zodíaco. Os planetas
murmuraram na sua fala de poder babilónico –
como os ossos do feiticeiro. Tinhas razão em ter medo
do ruído que os ossos pudessem fazer,
da nitidez com que o ouvido podia ouvir
o que os ossos segredavam,
até mesmo os que estavam como estes, embutidos num corpo
     quente.
 
Só que tu não tinhas necessidade de calcular
os graus para saberes que o teu ascendente perturbava
Carneiro. Não tinha qualquer significado certo – nada mais
do que um rosto com uma cicatriz,
segundo o livro babilónico. Até onde
é que um mágico podia espreitar por dentro da pele?
 
Só tinhas de olhar
para o rosto mais próximo de uma metáfora
tirada do teu guarda-vestidos ou do teu prato
ou do sol ou da lua ou do teixo
para veres o teu pai, a tua mãe, ou a mim
trazendo-te o teu Destino completo.
 
 
 
ted hughes
cartas de aniversário
trad. de manuel dias
relógio d´água
2000
 



14 abril 2023

maria teresa horta / os outros

 
 
Despimo-nos dos outros
secamente
e devagar ficamos
enlaçados
 
Enquanto a noite voa
no seu vento
procuramos a paz fora do tempo
e a ternura a meio da madrugada
 
Quem foi que nos
deixou
uma certeza?
 
Quem foi que nos
disse
encantamento?
 
Quem foi que nos
leu
a nossa vida?
 
Quem foi que
acendeu
o pensamento?
 
Que viagem difícil
de regresso
 
Que objecto difícil
de repor
 
Que adiado veneno
não tomado
 
Que estranha tempestade
sem fragor
 
Despidos meu amor
dos outros tarde
mas sedentos de esperança
sempre cedo
 
Acusados
Suspeitos
Devassados
 
A fazermos amor
do nosso medo
 
 
 
maria teresa horta
poesia reunida
minha senhora de mim
dom quixote
2009
 



13 abril 2023

manuel resende / a parteira da história

 



 
Já nem sequer se consegue amar nem odiar a parteira da
     História e, vendo bem, que nos resta senão o humilde
     gosto de saber o trabalho bem feito quando o há,
De escovar a mão por fim preguiçosa na cadeira acabada?
Quanto a corpo, temos conversado, menino mimado
     sempre a pedir atenção e médicos e cama de dormir.
De repente, caímos em nós, dentro de nós, e não há nada
     lá dentro
A que nos agarrarmos.
 
 
 
manuel resende
em qualquer lugar seguido por
o pranto de bartolomeu de las casas
poesia reunida
edições cotovia
2018
 



12 abril 2023

novalis / os hinos à noite

 



 

 
2
 
Terá a manhã sempre que voltar? Não terminará jamais o poder da Terra? Agitação nefasta consome o celeste poisar das asas da Noite. Jamais ficará a arder sem fim a secreta oferenda do amor? O tempo da Luz é imensurável; mas o império da Noite é sem tempo e sem espaço. – Perene é a duração do sono. Sagrado sono, não sejas avaro de teus benefícios para todos os que nesta jornada terrena se consagram à Noite. Só os loucos te desconhecem, não sabendo de outro sono que a sombra que tu misericordiosamente sobre nós lanças no crepúsculo dessa vera Noite. Eles não te sentem no dourado caudal das uvas – na maravilha do óleo de amêndoas, no suco escuro da papoila. Não sabem que és tu que pairando no contorno dos seios das tenras donzelas tornas o seu regaço o Céu – não supõem que tu, vindo de histórias antiquíssimas ao nosso encontro, vens para abrires o Céu e trazeres contigo as chaves das moradas dos bem-aventurados, mensageiro silente de infindáveis segredos.
 
 
 
novalis
os hinos à noite
tradução de fiama hasse pais brandão
assírio & alvim
1998




11 abril 2023

léo ferré / eu cá sou da raça ferroviária

 



 

[…]
 
     Eu cá sou da raça ferroviária que fica a ver passar as
vacas
     Se não comêssemos as vacas, os carneiros e os restos
     Não conheceríamos nem as vacas, nem os carneiros nem
os restos…
     No fim de contas, criam-nos para nos darem bicadas
     Então, sejamos nós a dá-las!
     Costeleta para duas pessoas, conheces?
 
     Felizmente há a cama: um parque de estacionamento!
     Vens, meu amor?
     E depois, é como na roleta: apostamos, apostamos…
     Se a roleta só tivesse um buraco, obrigavam-nos a apostar
na mesma
     Aliás, é o que fazemos!
     Compreendo os jogadores: têm trinta e cinco possibilidades
de não se deixarem enrabar…
     E deixam, deixam…
     O drama, no casal, é que são dois
     E só há um buraco na roleta…
 
[…]
 
 
léo ferré
il n´y a plus rien / já não há nada
trad. antónio ferreira, luísa mariante e maria paiva
ler devagar
2017





10 abril 2023

jacques brel / o último repasto



 

No meu último repasto
Quero ver os meus irmãos
E os meus gatos e os meus cães
E a beira do mar
No meu último repasto
Quero ver os meus vizinhos
E também alguns Chineses
Em jeito de primos
E quero que se lá beba
Além do vinho da missa
Aquele vinho tão bonito
Que se bebia em Arbois
Quero que se lá devore
Após umas tantas sotainas
Uma faisoa
Vinda do Périgord
Depois quero que me levem
Ao cimo da minha colina
Ver as árvores fechar os
Braços para dormir
E depois quero ainda
Atirar pedras ao céu
E gritar Deus morreu
Uma última vez
 
No meu último repasto
Quero ver o meu burro
As minhas galinhas e os meus gansos
As minhas vacas e as minhas mulheres
No meu último repasto
Quero ver essas desavergonhadas
De quem fui dono e senhor
Ou que foram minhas senhoras
Quando tiver na pança
Com que afogar a terra
Quebrarei o meu corpo
Para impor silêncio
E cantarei aos berros
Para a morte que chega
As canções libertinas
Que metem medo às freirinhas
Depois quero que me levem
Ao cimo da minha colina
Ver o crepúsculo que se encaminha
Lentamente para a planície
E aí ainda de pé
Insultarei os burgueses
Sem medo e sem remorsos
Uma última vez
 
Após o meu último repasto
Quero que se vão todos embora
Que continuem o festim
Mas não sob o meu tecto
Após o meu último repasto
Quero que me instalem
Sentado só como um rei
Acolhendo as suas vestais
No meu cachimbo queimarei
As recordações de infância
Os sonhos inacabados
Os restos de esperança
E apenas conservarei
Para vestir a minha alma
A ideia de uma roseira
E um nome de mulher
Depois olharei
O cimo da minha colina
Que dança que se adivinha
E acaba por se afundar
E entre o cheiro das flores
Que não tarda a extinguir-se
Sei que terei medo
Uma última vez
 
 
 
jacques brel
antologia poética
trad. eduardo maia
assírio & alvim
1997