28 março 2023

gottfried benn / moral de artista

 



 

Só na palavra hás-de mostrar-te
que em formas claras aparece,
pois cale a sua humanidade
quem de tormentos se guarnece.
 
Tens de a ti mesmo consumir-te –
era melhor ninguém soubesse,
nem deixes que ninguém suporte
o que tão escuro te acontece.
 
Carrega os teus próprios pecados,
teu próprio sangue, e mais requer-se
só a ti mesmo te anuncies,
tua morte em ti tem alicerce.
 
 
 
gottfried benn
50 poemas
tradução vasco graça moura
relógio d’água
1998




27 março 2023

elio pecora / confidência

 
 
Espera-me no espelho
como num velho conto de desconfiada loucura,
raramente me olha
porém, conheço bem o desprezo que alterna com o medo,
estamos juntos ab initio
decerto estaremos até ao extremo encerramento
quando voltarmos a partir
rumo àquele nada que a nós, como a todos, toca.
De vez em quando o esqueço
e, ao andar, torna-se leve e contente o percurso,
mas cedo o ignorado
volta a contar os passos, a tirar o fôlego;
vi-o, apetrechava-se
de esperanças algo dúbias, de prémios baratos,
quando bastava
ministrar-se as ânsias e os desejos nunca calados.
Da vez em que tentei deixar o quarto do seu triste segredo
entreabriu a porta
e mostrou-me, num ápice, apenas areia e cinza.
 
 
 
elio pecora
poemas escolhidos
interlúdio (1987)
tradução de simoneta neto
quasi
2008
 



26 março 2023

fernando pessoa / na véspera de nada

  
 
Na véspera de nada
Ninguém me visitou.
Olhei atento a estrada
Durante todo o dia
Mas ninguém vinha ou via,
Ninguém aqui chegou.
 
Mas talvez não chegar
Queira dizer que há
Outra estrada que achar,
Certa estrada que está,
Como quando da festa
Se esquece quem lá está.
 
11-10-1934
 
 
 
fernando pessoa
poesias inéditas (1930-1935)
ática
1955


25 março 2023

antónio osório / um sentido

 




 
Porque há um sentido
no lírio, incensar-se;
e no choupo, erguer-se;
e na urze arborescente,
ampliar-se;
e no cobre, primeira cura,
que dou à vinha,
procriar-se.
 
E outro, pressago,
sentido há na memória,
explodir-se.
E outro, imensurável,
no amor, entregar-se.
E outro, definitivo,
na morte, render-se.
 
 
 
antónio osório
casa das sementes, poesia escolhida
felicidade da pintura
assírio & alvim
2006
 




24 março 2023

charles bukowski / lifedance

 



 

a linha que divide o cérebro e a alma
é afectada de diversas formas através da
experiência –
alguns perdem completamente a mente e tornam-se
                                                        apenas alma:
lunáticos.
alguns perdem toda a alma e tornam-se apenas mente:
intelectuais.
alguns perdem ambas e tornam-se:
aceites.
 
 
 
charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018
 
 


23 março 2023

karl vennberg / epílogo

 
 
Finalmente assim é o amor:
uma ferida incurável
que cada vez menos aguenta que a cocem;
mas também um espelhismo
de que o olhar só se desprende ao fim de tudo
antes que voltemos o rosto
para a parede vazia.
Talvez nos chegue, acrescenta a irónica esperança,
Uma palavra numa carta um dia depois da nossa morte.
 
I väntan pa pendeltaget, 1990



karl vennberg
o destino da árvore é
transformar-se em papel
antologia de poesia sueca
poemas vertidos para português por
amadeu baptista
contracapa
2021




22 março 2023

luís filipe castro mendes / o bibliotecário de alexandria


 

 

Quem julgará o que acordou, sobressaltado,
para salvar os espólios? Ele viu claramente o lume vivo,
as chamas que ninguém poderia apagar;
mas concluiu que tudo não era mais que um sonho
e sonhou sabê-lo.
 
 
 
luís filipe castro mendes
relâmpago
revista de poesia
nr. 16/4 2005
luís miguel nava
fundação luís miguel nava
2005



 

21 março 2023

georg maurer / os românticos e os decadentes

 
 
O céu tinha sido varrido
e as Madonnas sentadas pelos prados
mostravam os seios brancos de neve e amamentavam os meninos.
Entraram na cena os poetas e procuraram as suas amadas,
cada um a sua Madonna. E as raparigas assustadas
viram-se postas em nuvens onde não conseguiam estar sentadas
até as mais angélicas, etéreas, caíam
pelos revérberos da névoa. Melancólicos,
os poetas mudaram, puseram-se a cantar virgens mortas,
fizeram do frio túmulo, da branca mortalha
o seu céu e celebraram aí as suas festas
com grandiloquentes hinos à noite –
até que um, estremecendo, levantou na cripta
a tampa do caixão: e viu horrorizado os vermes
disputarem os melhores petiscos
do corpo da amada. – Agora, todos os poetas
ficaram esclarecidos, apressaram-se a sentar
as moças sobre os joelhos e a aceitar as drogas do patrão.
Mas, com o absinto no sangue, saíam perturbados
para o ar da manhã e convertiam-se a chorar
à Madonna lá em cima, a cuja cabeceira infinita
há muito se tinham instalado os físicos com frios instrumentos.
 
 
 
georg maurer
trad. joão barrento
hífen 5 março
cadernos semestrais de poesia
tradução
1990
 



20 março 2023

sylvia plath / canção da manhã

 




 

O amor acertou o teu passo como um pesado relógio de ouro.
A parteira deu-te duas palmadas nos pés e o teu grito nu
Tomou o seu lugar entre os elementos.
 
As nossas vozes em eco engrandecem a tua chegada. Estátua
     nova.
Na corrente de ar de um museu, a tua nudez
Encobre a nossa segurança. Rodeamos-te inexpressivos como
     paredes.
 
Sou tanto tua mãe como
A nuvem que em espelho se destila e nele vai reflectir o seu
     lento
Apagamento às mãos do vento.
 
Toda a noite a tua respiração de borboleta
Paira entre o cor-de-rosa murcho das roas. Acordo e oiço:
Move-se no meu ouvido um mar distante,
 
Um choro e saio da cama aos tropeções, vaca gorda e florida
Na minha camisa de noite vitoriana.
A tua boca abre-se limpa como a de um gato. O quadrado da
     janela
 
Empalidece e engole as estrelas sombrias. E tu agora ensaias
     a tua
Mão cheia de notas;
Claríssimas vogais elevando-se como balões.
 
 
 
sylvia plath
ariel
trad. maria fernanda borges
relógio d´ água
1996




19 março 2023

ricardo reis / quatro vezes mudou a estação falsa

 
 
 
Quatro vezes mudou a estação falsa
No falso ano, no imutável curso
        Do tempo consequente;
Ao verde segue o seco, e ao seco o verde;
E não sabe ninguém qual é o primeiro,
        Nem o último, e acabam.
 
s.d.



poemas de ricardo reis
fernando pessoa
imprensa nacional - casa da moeda
1994





18 março 2023

luís vaz de camões / julga-me a gente toda por perdido

 
 
 
Julga-me a gente toda por perdido,
Vendo-me tão entregue a meu cuidado,
Andar sempre dos homens apartado
E dos tratos humanos esquecido.
 
Mas eu, que tenho o mundo conhecido,
E quase que sobre ele ando dobrado,
Tenho por baixo, rústico, enganado
Quem não é com meu mal engrandecido.
 
Vá revolvendo a terra, o mar e o vento,
Busque riquezas, honras a outra gente,
Vencendo ferro, fogo, frio e calma;
 
Que eu só em humilde estado me contento
De trazer esculpido eternamente
Vosso fermoso gesto dentro n’alma.
 
 
 
luís vaz de camões
sonetos




17 março 2023

günter grass / sustento de profetas

 



 
Quando os gafanhotos invadiram a nossa cidade
deixou de haver leite em casa, o jornal faliu.
Abriram-se as prisões e libertaram-se os profetas.
3800 profetas percorreram então as ruas.
Podiam falar impunemente.
 
Quem poderia esperar outra coisa?
Pouco depois o leite voltou a ser distribuído, o jornal reapareceu.
Os profetas enchiam novamente as prisões.
 
 
 
günter grass
trad. egito gonçalves
hífen 5 março
cadernos semestrais de poesia
tradução
1990
 




16 março 2023

maria andresen de sousa / quando tudo ardeu

 
 
Quando tudo ardeu olhaste a árvore de cinza,
o gelo, o seu recorte de Inverno: e disseste: basta;
 
ficas nessa posição, nela hibernas
porque tu amas a paragem no que basta
 
um dia ébrio, um tanto, na sua luz
de frio; a sentença, tão breve e precisa
 
 
 
maria andresen de sousa
relâmpago
revista de poesia
nr. 16/4 2005
luís miguel nava
fundação luís miguel nava
2005