10 fevereiro 2023

paul bowles / sidi amar no inverno

 



 

Penso que nunca vi o teu rosto
Num dia de chuva, quando as sombrias artérias do céu
Pulsam junto às árvores, e no teu coração
A água corre. Nunca te vi chorar
Com o monólogo da noite, com a tua mente resistindo ao silêncio.
 
Chegará o dia em que as linhas do céu
Se desprenderão das torres
E em que tu, que tremes pela noite
Partirás para os lugares sombrios ao lado de um desconhecido.
 
 
                                                                              1935
 
 
paul bowles
poemas
trad. josé agostinho baptista
assírio & alvim
2008
 




09 fevereiro 2023

regina guimarães / outras gravidades

 




 
Da futura nudez se vestem os factos
mas fio a fio se desnudam horizontes
imitando o que morre ou mata
pois ao nó na garganta seremos reduzidos
se acaso nos julgarem com distinta lata
 
Contudo enlameada vou e voo
sob o signo da pesada lei das asas
acima dessa forca e das minhas forças
abraçando a precisão das bancarrotas
que paira sobre os espírito das casas
 
E se vergonha tenho
é do que ainda não penso
é do que penso e me é estranho
é deste sangue em suspenso
é desta roupa sem corpo
interior e exterior ao mesmo tempo.
 
 
 
regina guimarães
nervo/17 janeiro/abril 2023
colectivo de poesia
2023
 





08 fevereiro 2023

paul celan / oiço tanta coisa de vós

 




 
OIÇO TANTA COISA DE VÓS
que não oiço mais
do que ouvir,
 
vejo tanta coisa de vós
que não vejo mais
do que ver,
 
tanta coisa me assedia
com desconversa
que dou por mim a falar
como quem conversa,
que dou por mim
a falar como quem
fica em silêncio.
 
Eu vivo, forte.
 
 
 
paul celan
a morte é uma flor
trad. de joão barrento
relógio d´água
2022




07 fevereiro 2023

joão miguel fernandes jorge / vivi nesta casa muitos anos

 



 

Vivi nesta casa muitos anos.
Agora mudaram já decerto a fechadura
e as pequenas coisas que fazem uma casa.
As chaves já não as trago
ao lado dos meus gestos.
 
Mudaram os móveis
deitaram fora as cortinas
e as paredes
trazem agora um calendário novo.
 
Uma casa é sempre
caliço cheiros alianças.
Eu avanço sobre o silêncio de
ainda
esperar por ti.
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
à beira do mar de junho
relógio d´água
2019




06 fevereiro 2023

rui caeiro / fica e é só o que fica

 
 
Fica e é só o que fica: o primeiro encontro
o primeiro beijo numa gare deserta
o mar por líquida ou aérea testemunha
 
depois a longa gestação do adeus
único e verdadeiro adeus
o subtil envenenamento da memória
 
 
 
rui caeiro
baba de caracol
o sangue a ranger nas curvas apertadas do coração
maldoror
2019




05 fevereiro 2023

tereza balté / os idílios

 




 

Pousando no espelho os olhos serenos
não te encontrei ou procurei atento
quem ultrapassa a mão pelos cabelos
onde passaremos o inverno?
 
quem abrirá a porta quando torno
à ternura do braço agora outro
pesado e mais antigo no contorno
de quem também voltou mas volta novo?
 
os olhos repousam calando nos olhos
a justa memória de cada abandono
são retinas cegas no espelho sem fundo
já nada reflectem perderam o rosto.
 
 
 
tereza balté
horizontes portáteis
editorial inova
1977




04 fevereiro 2023

maria teresa horta / por dentro da alegria

 
 
Já dentro da alegria
novamente a tristeza
 
A espuma do escuro
onde os ombros se acolhem
 
Os escolhos – os escombros
o dilúvio obscuro?
 
Que tempo me importa
onde os outros não olham?
 
 
 
maria teresa horta
poesia reunida
educação sentimental
dom quixote
2009





03 fevereiro 2023

jack gilbert / em crítica da poesia

 



 
                 [ de Views of Jeopardy, 1962 ]
 
 
Quando o Rei de Siam não gostava de um cortesão,
oferecia-lhe um belo elefante branco.
À besta milagrosa era devido tamanho ritual
que cuidar devidamente dele conduzia à ruína.
No entanto, não o fazer era pior.
Parece que a dádiva não podia ser recusada.
 
 
jack gilbert
deixem-me ser ambos
trad. leonor castro nunes e marcos pereira
destrauss
2020



02 fevereiro 2023

beth baruch joselow / água entre um casco interior e um casco exterior

 



 

Dalguma maneira mantém o barco à tona.
Perguntas amáveis, a primeira vez que senti
a mão de um homem leve atrás
no pescoço, calor em todo o corpo
 
Contornando um carvalho para que ele não
me visse.
       Rapazinho voa em torno
da minha felicidade, tanto para contar.
 
Nem tudo movimento em frente, mas quase tudo.
Será que nós os dois
agora fazemos felizes os outros?
Será que nos tornámos colectores, em paz com o destino?
 
                                               *
 
Mais um quarto de cimento, só para dormir,
sem garrafas de água nem livros de oração guardados.
 
O primo
ao piano e já sonhando
sonhos inconfessáveis.
 
A tia nunca sonhando a fuga,
nem tudo o que de todos eles já fugiu.
 
O rapaz no quintal trauteando
melodias dissonantes, a balançar
empoleirado da janela de um dos quartos.
 
O calor e a quietude do ar nesse lugar,
à espera de esfregar as folhas verdes da amora
na tua cara, em tudo aquilo que está exposto
à espera de consolo. Arranham.
 
Cansada demais para imitar outra pessoa,
vou ficando devagar e confio nesse estar.
 
A ironia e a distância afastam-se da forma.
 
 
 
beth baruch joselow
poesia do mundo / 3
trad. adriana bebiano
afrontamento
2001
 



01 fevereiro 2023

francis ponge / o pão



 

A superfície do pão é maravilhosa primeiro por causa desta impressão quase panorâmica que dá: como se se tivesse ao dispor, sob a mão, os Alpes, o Taurus ou a Cordilheira dos Andes.
 
Assim pois uma massa amorfa enquanto arrota foi introduzida para nós no forno estelar, onde, endurecendo, se afeiçoou em vales, cumes, ondulações, ravinas… E todos esses planos desde então tão nitidamente articulados, essas lajes finas em que a luz aplicadamente deita os seus lumes, – sem um olhar sequer para a flacidez ignóbil subjacente.
 
Esse lasso e frio subsolo que se chama o miolo tem o seu tecido semelhante ao das esponjas: folhas ou flores são aí como irmãs siamesas soldadas por todos os cotovelos ao mesmo tempo. Logo que o pão endurece essas flores murcham e contraem-se: destacam-se então umas das outras e a massa torna-se por isso friável.
 
Mas quebremo-la, calemo-nos: porque o pão deve ser na nossa boca menos objecto de respeito do que de refeição.
 
 
 
francis ponge
le parti pris des choses
alguns poemas
tradução de manuel gusmão
livros cotovia
1996


 



31 janeiro 2023

emanuel jorge botelho / retrato de jean genet por leonor fini, em 1950

 



 
os dias eram um
grande clarão de vinagre,
vê-se no teu rosto,
ardido de ir morrendo
sobre um chão raso de aspas.
 
olhas para cima
ou para a ponta de uma chama
como se por aí chegasse,
quase intacta,
a asa de todas as palavras.
 
há tanto frio no traço que te deram,
e até se ouve o teu coração.
 
 
 
emanuel jorge botelho
resumo
a poesia em 2013
assírio & alvim
2014
 



30 janeiro 2023

alberto pimenta / o dia tem 24 horas

 



 
o dia tem 24 horas
 
os canais de televisão
em conjunto
fazem delas perto de 100
 
a banca
para organizar
os seus assaltos súbitos
à bolsa
e vice-versa
trabalha em conjunto ou em separado
mais de 300 horas por dia
que depois
podem render
mais de cem mil salários anuais
de cem mil trabalhadores
 
os curso de balística
do exército e da polícia
ocupam entre todos eles
muitas centenas de horas
por dia
a treinar
a fatalidade e o erro científicos
 
para derrotarem o adversário
em décimas de segundos
ou menos
os atletas treinam
sem trégua
milhares de horas por ano
durante vários anos da sua vida
 
o homem aproveita
engenhosamente
o tempo
e nos intervalos
produz os novos escravos
do novo tempo
 
os donos dele
sucedem-se
 
o tempo tem dono
e é hereditário
 
 
 
alberto pimenta
resumo
a poesia em 2012
assírio & alvim
2013
 




29 janeiro 2023

david teles pereira / pequena elegia da memória

 


 

Não nego que me sinto vencido
pela tua distância,
uma pedra e um pouco de gelo no sangue
uma violeta na primavera desta morte em flor.
A aflição não passa,
ainda que eu permaneça na defensiva, dia após dia,
na retaguarda
do teu afecto.
 
Tocar-te o músculo, tal como a um livro de biblioteca.
Mas agora, o que se mantém vivo e fresco
No teu estojo de ossos? Assim, dizem,
Se retira aos nossos restos, ainda que dignos,
O nervo e a tentação do teu nome.
 
Não dizer o teu nome, nunca. Não pode dar-se
tesouro eterno assim a mãos que me recusaram.
Quanto mais morres, mais difícil é dizer-te,
 
mais fácil é dizer apenas… corpo.
 
 
 
david teles pereira
resumo
a poesia em 2011
assírio & alvim
2012