Como me senti estranhamente melancólico ao ver um
pobre homem arrastar-se pelas ruas num sobretudo muito gasto, verde-claro, para
o amarelado! Deu-me pena dele. Mas o que mais me comoveu, no entanto, foi que essa
mesma cor do sobretudo tão vivamente me recordou as minhas primeiras criações
de criança na nobre arte da pintura. Esta era precisamente uma das minhas cores
preferidas. Não é mesmo triste que estas misturas de cores, em que ainda penso
com tanta alegria, não se encontrem em parte nenhuma na vida? Toda a gente as
acha berrantes, garridas, a empregar apenas nas figuras de Nuremberga. Se alguma
vez, nos deparamos com elas, o encontro será sempre tão infeliz como este
agora. Tem sempre de ser um fraco de espírito ou um desgraçado, em resumo,
sempre alguém que se sente um estranho na vida e que o mundo não quer
reconhecer. E eu que sempre pintei as vestes dos meus heróis com pinceladas
deste verde amarelado eternamente inesquecível! Não acontece o mesmo com todas
as misturas de cores da infância? O brilho que a vida então tinha torna-se
pouco a pouco demasiado forte, demasiado berrante para o nosso olhar esvaído.
s.
kierkegaard
diapsalmata
trad. de bárbara silva, m. jorge de carvalho,
nuno ferro e sara carvalhais
assírio & alvim
2011