24 julho 2022

ruy belo / homem perto do chão

 
Na primavera quando as tardes se arredondam
e já nas praias nascem as primeiras ondas
e volta sobre o mar a ave solitária
o homem enche de ar o peito vespertino
arranca o corpo à chuva e às nuvens do inverno
e chega a ter desejos de ficar
Mas em que rosto isento de contradição
há-de ele peregrino erguer a tenda?
Não abrem na cidade à sua frente as ruas
caminha ante deus como se visse
esse deus invisível
Florescem quando passa contraditórios clarins
cantando cada um sua ideia diversa
nenhuma o levará à pátria que procura
Tenham outros tambores ele tem
a pesada cabeça entre as mãos caída
Ele que desça ao fundo de todos os olhos
que nos trazem a alma à flor da pele
também não serão lá o coração ou a infância
Quando a tarde morrer ou o outono vier
do seu olhar é que as aves todas partirão
Aí temos um homem perto como nunca nem ninguém do chão


ruy belo
todos os poemas I
aquele grande rio eufrates

assírio & alvim
2004





23 julho 2022

henry deluy / o mar tratava da paisagem

 
 
O mar tratava da paisagem. – Era
A mim que calhava estar sentado, - ali
Perto de um sopro incolor. – Uma luz
Púrpura tombava em ondulações densas
E azuladas. – Retalhos de conversas
Da véspera vinham-nos à memória.
O mar estava nu.
 
             *
 
Estava verdadeiramente nu.
 
 
 
henry deluy
primeiras sequências
trad. colectiva mateus, set. out. de 2000
quetzal editores
2002




22 julho 2022

eugénio de andrade / as mãos e os frutos

  
 
III
Quando em silêncio passas entre as folhas,
uma ave renasce da sua morte
e agita as asas de repente;
tremem maduras todas as espigas
como se o próprio dia as inclinasse,
e gravemente, comedidas,
param as fontes a beber-te a face.
 
 
 
eugénio de andrade
as mãos e os frutos
poesia
fundação eugénio de andrade
2000




 

21 julho 2022

hans-ulrich treichel / ao atravessar a paisagem

 
Ao atravessar
a paisagem, penso: aqui, atrás
desta janela, a sombra
do homem, a minha sombra, aqui
nesta porta, a mulher, a minha mulher.
 
E ali a árvore,
o muro, a cova, plantada, levantado,
cavada por mim.
 
O bode ao pé da estaca,
preso, abatido por mim, o menino
de bicicleta, diante da cancela
fechada, o meu menino, a cancela
fechada por mim.
 
Ao atravessar
a paisagem, penso: aqui os
carris cintilantes, o
leito da via, o horizonte de fumo, deslocados,
ensaibrado, atravessado por mim.
 
 
 
hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994




20 julho 2022

antónio manuel azevedo / pedido de empréstimo

 
 
 
Arranja-me uns versos para o verão.
Coisas de areia, de memória
e sem futuro. Passos das tuas coisas
em volta, a luz perdendo
que guia o pescador, o turista
e o amante em aventuras com o regresso
aos quartos onde repousa para o fim
a escassa vida.
 
Escreve como quem descreve quase
o fim do amor, da casa, do caminho
o teu ao meio-dia de agosto
quase inteiro de sol
e outras poentes alegrias.
 
 
 
antónio manuel azevedo
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990
 



19 julho 2022

sandro penna / tinham-me deixado só

 
 
 
Tinham-me deixado só
no campo, sob
a chuva fina, só.
Olhavam-se espantados
mudos
os choupos nus: sofriam
com o meu castigo: castigo
de não saber claramente…
 
E a terra molhada
e os negros altíssimos montes
calavam-se vencidos. Era como
se um deus ruim
tivesse com um só gesto
petrificado tudo.
 
E a chuva lavava aquelas pedras.
 
 
sandro penna
trad. albano martins
hífen 5 março
cadernos semestrais de poesia
tradução
1990





 

18 julho 2022

josé carlos llop / modus vivendi

 
 
Cruzar de caleche estas terras
esquecidas pelo homem.
Viver um regime antigo
Caçar de madrugada. Cuidar das cartas
para os amigos, do quintal
junto dos muros da casa
– a doçura da tâmara
a sombra da figueira –.
Pôr ordem num pequeno jardim
onde ler ao sol no inverno,
e no verão atrás da gelosia,
toda enlaçada pelas heras
e pelos jasmins. Estar só;
contemplar como se cumprem
os ciclos da natureza,
como crescem os teus filhos.
Escrever ao cair da tarde.
Passear debaixo das estrelas
e o ladrar dos cães
ao longe. Dormir pouco.
Atiçar o fogo na noite,
enquanto os pavões reais
pousam na copa de azinheiras
e tu te submerges nos tomos
daqueles velhos mestres
que já não existem.
 
 
 
josé carlos llop
poesia espanhola de agora volume I
trad. de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997



 

17 julho 2022

gonçalo m. tavares / envelhecer

 
 
O Perigo não tem lugares fixos, como se sabe.
          Nem todos podem morrer de frente
ou com um tiro na nuca,
                    por vezes o assunto último
          é manuseado com tiques mesquinhos,
dedos como bicadas de galinhas imbecis
          a bicar o inútil, o impossível e a pedra.
Morres mas não morres de vez como os animais.
Apodreces, sim, como as plantas (quando envelheces)
          como uma rosa disputada à força por dez mulheres,
ou como um deus imortal atingido cem vezes.
          Talvez eu preferisse ver a erva
como os ratos vêem,
olhando em frente com os olhos minúsculos.
          Mas não.
 
 
 
gonçalo m. tavares
1 poesia
relógio d´água
2004
 



16 julho 2022

armando silva carvalho / agrário e agreste

 
 
                           ao António Rego Chaves
 

 
Sobre as árvores encolhidas que gastavam
a ternura de tudo; severo,
o céu desajeitado avolumou-se.
Na testa do silêncio ao pé dos montes
as pedras adoecem entre o sangue
derrota que se imprime por palavras
se imite diminuta nos alqueives.
Sob a capa da terra e no alcance
dos dedos de fora inesperados
a rotura simples dum soluço
ferindo o estrume em breves plantas novas.
Ao longe o grito do abraço em pé
com as vergonhas cobertas de papel
os prumos os cabos o pão um ovo
o vinho deitado, aqui ao pé do choro.



armando silva carvalho
lírica consumível 1965
o que foi passado a limpo, obra poética
assírio & alvim
2007




 

15 julho 2022

rené char / folhas de hipno

 
 
132
Parece que a imaginação, que em graus diversos assombra o espírito de cada criatura, é constrangida a separar-se dela quando não lhe propõe menos do que o «impossível» e o «inacessível» por missão extrema. Há que admitir que a poesia não é soberana em toda a parte.
 
 
         
rené char
furor e mistério
folhas de hipno (1943-1944)
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2000




14 julho 2022

antónio franco alexandre / corto viaggio sentimentale, capriccio italiano

 
 
3
 
os olhos da amizade não necessitam de perfil.
A presença das tuas mãos
acorda-me, a meio
da tarde e do lume,
no horizonte da planície.
E entretanto pequenos animais transmitem
o som interior do vento
ao teu ouvido sério e distraído.
 
 
 
antónio franco alexandre
quatro caprichos
assírio & alvim
1999
 



13 julho 2022

albano martins / quase marinha

 
 
 
Desta luz, mais branca
do que o branco – ou
do que o leite, como diria Safo –,
o que pode dizer-se
é isto: um dia
o céu
acordou sem nuvens e a linha
do horizonte, de tão fresca
e tão nítida
e tão próxima, era o parapeito
onde a infância vivia
debruçada. E era
ali que o voo
das gaivotas começava.
 
 
 
albano martins
por ti eu daria
castália e outros poemas (2001)
glaciar
2021




 

12 julho 2022

wislawa szymborska / uma gente

 
 
Uma gente em fuga de outra gente,
num país debaixo do sol
e de algumas nuvens.
 
Deixam para trás um tal seu tudo,
campos semeados, umas galinhas, cães,
espelhos, justamente nos quais o fogo se mira.
 
Levam às costas os cântaros e as trouxas,
quanto mais vazios mais pesados com o passar dos dias.
 
É em silêncio que alguém desfalece,
é na algazarra que alguém arranca o pão de alguém
e alguém sacode o filho morto.
 
Nunca é pela estrada que têm à frente,
nem é esta ponte
sob a qual passa um rio estranhamente avermelhado.
Em redor, disparos, ora longínquos ora próximos,
ao alto, um avião errante rodopia.
 
Oportuna seria a invisibilidade,
uma parda rochosidade,
ou ainda melhor a inexistência
durante um pouquinho ou por mais tempo.
 
Mais ainda está por acontecer, apenas onde e o quê.
Alguém lhes sairá ao caminho, apenas quando e quem,
de que forma e com que intenções.
Se puder escolher,
talvez não queira ser inimigo
e os deixe com alguma vida.
 
 
 
wislawa szymborska
instante
trad. elzbieta milewska e sérgio neves
relógio d'água
2006