17 maio 2022

hans-ulrich treichel / conversa debaixo das árvores

 
 
O haver ainda árvores
andorinhas
poderia ser um consolo
ainda que elas já não saibam
o que é florescer, voar
e que nós continuemos
na sombra imóvel
a encostar palavras a palavras
como se nada nos faltasse
 
 
 
hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994




 

16 maio 2022

eugéne guillevic / montanhas




 

Teremos mesmo de deixar
no seu lugar
entregues à sua sorte,
Estas montanhas de terra,
Que no entanto têm formas de seios
E respiram
 
Teremos de deixar que formem
essa frente azul
Diante da qual passamos
 
Nós com a nossa fúria
E demasiada carne
 
 
 
guillevic
nervo/14 colectivo de poesia
maio/agosto 2022
tradução de yvette k. Centeno
 
 


15 maio 2022

luís vaz de camões / odes

 
 
[VI]
 
Pode um desejo imenso
arder no peito tanto
que à branda e à viva alma o fogo intenso
lhe gaste as nódoas do terreno manto,
e purifique em tanta alteza o esprito
com olhos imortais
que faz que leia mais do que vê escrito.
 
Que a flama que se acende
alto tanto alumia
que, se o nobre desejo ao bem se estende
que nunca viu, a sente claro dia;
e lá vê do que busca o natural,
a graça, a viva cor,
noutra espécie milhor que a corporal.
 
Pois vós, ó ciaro exemplo
de viva fermosura,
que de tão longe cá noto e contemplo
n'alma, que este desejo sobe e apura:
não creais que não vejo aquela imagem
que as gentes nunca vêm,
se de humanos não têm muita ventagem.
 
Que, se os olhos ausentes
não vêm a compassada
proporção, que das cores excelentes
de pureza e vergonha é variada;
da quai a Poesia, que cantou
até 'qui só pinturas,
com mortais fermosuras igualou;
 
se não vêm os cabelos
que o vulgo chama de ouro,
e se não vêm os claros olhos belos,
de quem cantam que são do Sol tesouro,
e se não vêm do rosto as excelências,
a quem dirão que deve
rosa, cristal e neve as aparências;
 
vêm logo a graça pura,
a luz alta e severa,
que é raio da divina fermosura
que n'alma imprime e fora reverbera,
assi como cristal do Sol ferido,
que por fora derrama
a recebida flama, esclarecido.
 
E vêm a gravidade
com a viva alegria,
que misturada tem, de qualidade
que ua da outra nunca se desvia;
nem deixa ua de ser arreceada
por leda e por suave,
nem outra, por ser grave, muito amada.
 
E vêm do honesto siso
os altos resplandores,
temperados co doce e ledo riso,
a cujo abrir abrem no campo as flores;
as palavras discretas e suaves,
das quais o movimento
fará deter o vento e as altas aves;
 
dos olhos o virar,
que torna tudo raso,
do quai não sabe o engenho divisar
se foi por artificio, ou feito acaso;
da presença os meneios e a postura,
o andar e o mover-se,
donde pode aprender-se fermosura.
Aquele não sei quê,
que aspira não sei como,
que, invisível saindo, a vista o vê,
mas para o compreender não acha tomo;
o qual toda a Toscana poesia,
que mais Febo restaura,
em Beatriz nem em Laura nunca via;
 
em vós a nossa idade,
Senhora, o pode ver,
se engenho e ciência e habilidade
igual à fermosura vossa der,
como eu vi no meu longo apartamento,
qual em ausência a vejo.
Tais asas dá o desejo ao pensamento!
 
Pois se o desejo afina
ua alma acesa tanto
que por vós use as partes da divina,
por vós levantarei não visto canto
que o Bétis me ouça, e o Tibre me levante;
que o nosso claro Tejo
envolto um pouco vejo e dissonante.
 
O campo não o esmaltam
flores, mas só abrolhos
o fazem feio; e cuido que lhe faltam
ouvidos para mim, para vós olhos.
Mas faça o que quiser o vil costume;
que o sol, que em vós está,
na escuridão dará mais claro lume.
 
 
 
luís de camões
poesia lírica
ulisseia
1988



14 maio 2022

miguel torga / desfecho

 
 
Não tenho mais palavras.
Gastei-as a negar-te…
(Só a negar-te eu pude combater
O terror de te ver
Em toda a parte.)
 
Fosse qual fosse o chão da caminhada,
Era certa a meu lado
A divina presença impertinente
Do teu vulto calado
E paciente…
 
E lutei, como luta um solitário
Quando alguém lhe perturba a solidão.
Fechado num ouriço de recusas,
Soltei a voz, arma que tua não usas,
Sempre silencioso na agressão.
 
Mas o tempo moeu na sua mó
O joio amargo do que te dizia…
Agora somos dois obstinados,
Mudos e malogrados,
Que apenas vão a par na teimosia.
 
 
 
miguel torga
câmara ardente
1962




13 maio 2022

gil t. sousa / fosse assim

 
fosse assim:
dunas de linho
onde me perdesse
 
só o sal
e o violino do mar
no corpo antigo
 
vento de luz
e o sol longínquo
da infância
 
tão puro azul
como água
secando na lâmina
 
do tempo
 
 
 
gil t. sousa




12 maio 2022

maria alberta menéres / pelo amor saberemos de nós

 
 
XXI
Adora a flor das árvores, adora
toda a vaidade que das coisas vem.
 
Por ela nos traímos e vencemos,
e em cada hora de traição esquecemos
a dor de fruto que essa flor contém.
 
 
maria alberta menéres
cântico de barro 1954
poesia completa
porto editora
2020




11 maio 2022

ángeles mora / elegia e postal

 
 
Não é fácil mudar de casa,
de costumes, de amigos,
de segunda-feira, de varanda.
Pequenos ritos que nos foram
fazendo como somos, a nossa velha
taberna, cerveja
para dois.
Há coisas que não arrasta a bagagem:
o céu que levanta uma persiana,
o cheiro a tabaco de um desejo,
os caminhos batidos do nosso coração.
Não é fácil desfazer as malas um dia
numa chuva diferente,
mudar sem mais de lua,
de névoa, de jornal, de vozes,
de elevador.
E sair para uma rua que nunca pressentiste,
com outros pardais que já
não te perguntam, outros gatos
que não sabem o teu nome, outros beijos
que não te vêem chegar.
Não, não é fácil mudar agora de chaves.
 
E muito menos fácil,
já sabes
mudar de amor
 
 
 
ángeles mora
poesia espanhola de agora I
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997
 
 


10 maio 2022

pablo picasso / se pensar numa certa língua…

 
 
 
Se pensar numa certa língua e escrevo «o cão corre atrás da lebre no bosque» e quiser traduzir para outra devo dizer «a mesa d emadeira branca enterra as patas na areia e quase morre de medo por se saber tão [pateta]».
 
 
Céu céu céu céu céu violeta violeta céu céu céu violeta violeta violeta céu céu céu violeta violeta violeta céu céu céu céu  céu violeta violeta violeta violeta céu céu céu céu céu violeta violeta violeta violeta céu céu céu céu céu violeta violeta violeta céu céu céu violeta verde céu céu céu céu verde verde céu céu céu céu preto verde verde céu castanho céu céu céu preto preto preto preto preto branco branco preto verde castanho céu céu.
 
 
Poemas? Há pilhas de poemas amontoados por aí. Quando comecei a escrevê-los, queria preparar uma paleta de palavras, como se estivesse a lidar com cores. Todas essas palavras eram ponderadas, filtradas e avaliadas. Não recorro muito a expressões espontâneas do inconsciente.
 
 
Sinos de prata e conchas de caramujos e víscera entrançadas em fila um dedinho em erecção nem uma uva nem um figo. Caixão sobre os ombros repleto de salsichas e bocas raiva que deforma o desenho duma sombra que esmurra os dentes pregado na areia o cavalo rasgou-se de cima a baixo ao sol. Gritos de crianças gritos de mulheres gritos de pássaros gritos de flores gritos de madeira e de pedra gritos de tijolos gritos de móveis de camas de cadeiras de cortinas de tachos de gatos e de papéis gritos de cheiros que se arranham de fumo que morde o pescoço gritos que fervem no caldeirão e a chuva de pássaros que inunda o amar que rói os ossos e quebra os dentes trincando o algodão que o sol esfrega no seu prato que a bolsa e o banco escondem na impressão cravada na rocha.
 
 
A pontuação é uma parra que esconde as partes íntimas da literatura.
 
 
 
pablo picasso
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021




09 maio 2022

styliános kharkianákis / o humanismo das árvores

 
 
As árvores fiéis ficam onde as plantamos
Derrotam a inércia da morte
Absorvem a distância com uma constância sem falhas
Com todo o seu corpo bandeira rumorejante
Ralham aos bichos pelos seus
Movimentos sem rumo.
 
 
 
styliános kharkianákis
hinos modais, 1984
a grécia de que falas…
antologia de poetas gregos modernos
tradução de manuel resende
língua morta
2021
 



08 maio 2022

bernardo soares / quando nasceu a geração, a que pertenço, ...

 
1st. article
 
Quando nasceu a geração, a que pertenço, encontrou o mundo desprovido de apoios para quem tivesse cérebro, e ao mesmo tempo coração. O trabalho destrutivo das gerações anteriores fizera que o mundo, para o qual nascemos, não tivesse segurança que nos dar na ordem religiosa, esteio que nos dar na ordem moral, tranquilidade que nos dar na ordem política. Nascemos já em plena angústia metafísica, em plena angústia moral, em pleno desassossego político. Ébrias das fórmulas externas, dos meros processos da razão e da ciência, as gerações, que nos precederam, aluíram todos os fundamentos da fé cristã, porque a sua crítica bíblica, subindo de crítica dos textos a crítica mitológica, reduziu os evangelhos e a anterior hierografia dos judeus a um amontoado incerto de mitos, de legendas e de mera literatura; e a sua crítica científica gradualmente apontou os erros, as ingenuidades selvagens da «ciência» primitiva dos evangelhos; e, ao mesmo tempo, a liberdade de discussão, que pôs em praça todos os problemas metafísicos, arrastou com eles os problemas religiosos onde fossem da metafísica. Ébrias de uma coisa incerta, a que chamaram «positividade», essas gerações criticaram toda a moral, esquadrinharam todas as regras de viver, e, de tal choque de doutrinas, só ficou a certeza nenhuma, e a dor de não haver essa certeza. Uma sociedade assim indisciplinada nos seus fundamentos culturais não podia, evidentemente ser senão vítima, na política, dessa indisciplina; e assim foi que acordámos para um mundo ávido de novidades sociais, e [que] com alegria ia à conquista de uma liberdade que não sabia o que era, de um progresso que nunca definira.
 
Mas o criticismo fruste dos nossos pais, se nos legou a impossibilidade de ser cristão, não nos legou o contentamento com que (...) tivéssemos; se nos legou a descrença nas fórmulas morais estabelecidas, não nos legou a indiferença à moral e às regras de viver humanamente; se deixou incerto o problema político, não deixou indiferente o nosso espírito a como esse problema se resolvesse. Nossos pais destruíram contentemente, porque viviam numa época que tinha ainda reflexos da solidez do passado. Era aquilo mesmo que eles destruíam que dava força à sociedade para que pudessem destruir sem sentir edifício rachar-se. Nós herdámos a destruição e os seus resultados.
 
Na vida de hoje, o mundo só pertence aos estúpidos, aos insensíveis e aos agitados. O direito a viver e a triunfar conquista-se hoje quase pelos mesmos processos por que se conquista o internamento num manicómio: a incapacidade de pensar, a amoralidade e a hiperexcitação.
 
s.d.
 
 
 
fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol. I
europa-américa
1986
 


07 maio 2022

herberto helder / poemacto

 
(excerto)
 
Sou uma devastação inteligente.
Com malmequeres fabulosos.
Ouro por cima.
A madrugada ou a noite triste tocadas
em trompete. Sou
alguma coisa audível, sensível.
Um movimento.
Cadeira congeminando-se na bacia,
feita o sentar-se.
Ou flores bebendo a jarra.
O silêncio estrutural das flores.
E a mesa por baixo.
A sonhar.
 
 
 
herberto helder
poezz
jazz na poesia em língua portuguesa
josé duarte e ricardo antónio alves
almedina
2004



06 maio 2022

joaquim manuel magalhães / um pano turvo

 
 
 
É bom acordar a meio das horas
e não estar ali só por encontro.
A névoa donde sai uma defesa amedrontada.
Abro o livro com o velador, sem sobressalto
volto a adormecer. A outra cama
com a respiração, será sonho?,
de quem dorme sem pressentimentos.
 
Só depois da noite, nos hangares,
tijolos, tubos, ferragens sem deriva
me trazem o que é a vida; a que se contrapõe,
como dantes diziam, à verdadeira.
De quase tudo salta um estilhaço,
um cerro de fornalha que naufraga
por encontros que no longe constroem
sofrimentos tirados à pressão,
com muita espuma, cuspo a casca dos tremoços.
Por aí me dirijo ao uso destinado.
 
O estendal dos prédios desfigura
a linha do frio, o monte que fora civil.
Comboios regionais meio desfeitos,
pontões de madeira, estradas de pó batido,
tudo lento, com a medida sépia do tempo,
disposto para nos dar desvalor.
Escrevo para não esquecer:
o silvo de um muro, uma chave quebrada,
tudo o que da alameda já não vejo
e quando descia do alto do adro
para dentro das tuas mãos.
 
O maior inimigo do homem
sobe do invisível e fica baixo
sem causar sinais
até ao instante em que desmoronamos.
 
O país cada vez mais longínquo.
Descobre-se, no próprio crematório
da vitória abrupta de tantos,
que nele nenhuma coisa é nossa.
Quem é, quem são, que fazem
ninguém conhece e nada nos diz.
Vias, detritos, uma gente pesada
que sai de carroçarias e regressa,
ao fim de tempo farpado, à escuridão
em que tudo nos soterra. Seu destino
a devastada aceitação dos que por votos
lhes dão o caos e a mediania.
 
A noite, quando há luz ainda,
antes das estrelas sujas,
calca vestígios de se ter partido
para o cansaço de outros lugares,
o airo forçado nas arribas com óleo sem rota,
pinhais que já não voltam a acender-se,
fábricas de chapa sanguinolenta.
 
E eu ouço um coro de sombras dos escusos
que preferem a peste, a separam em clínicas de cal
para fugirem à agressão dos murmurros que avançam
em impropérios inúteis de combater.
 
E tu, minha única companhia,
quem és? Não entendes quanto sofre
o teu mendigo, eu, enquanto o vês fechado
com o livro a meio da sua noite,
sem a sombra de terra da azinheira,
sem o loendro num jardim.
Embora de face nos agarremos
e prontos para o entorno nos encontrem
todos os que excluem.
Um homem diante de dois homens
amando-se no centro da desordem,
por esse amor tecendo melodia.
Além da nuvem transitória que ceava,
além da asfixia.
 
Tens gume ou gelo para aniquilar
quem fez deste país este país?
embora seja tarde. Embora, na realidade
e sempre,
seja primeiro a nós que matarão.
 
Outrora pude rir-me dos bairros malfazejos
porque encontrei a blindagem do teu rosto
 encostada a cada ponte que levava
de um lado do mundo ao outro lado da desolação.
 
O seu cabelo lançava uma sombra
sobre a manta lilás
e sobre a vinha.
 
 
 
joaquim manuel magalhães
alta noite em alta fraga
relógio d´água
2001




05 maio 2022

daniel faria / procuro o lento cimo da transformação

 
 
Procuro o lento cimo da transformação
Um som intenso. O vento na árvore fechada
A árvore parada que não vem ao meu encontro.
Chamo-a com assobios, convoco os pássaros
E amo a lenta floração dos bandos.
Procuro o cimo de um voo, um planalto
Muito extenso. E amo tanto
A árvore que abre a flor em silêncio.
 
 
 
daniel faria
dos líquidos
do inesgotável
quasi
2003