1st. article
Quando nasceu a geração, a que pertenço, encontrou
o mundo desprovido de apoios para quem tivesse cérebro, e ao mesmo tempo
coração. O trabalho destrutivo das gerações anteriores fizera que o mundo, para
o qual nascemos, não tivesse segurança que nos dar na ordem religiosa, esteio
que nos dar na ordem moral, tranquilidade que nos dar na ordem política.
Nascemos já em plena angústia metafísica, em plena angústia moral, em pleno
desassossego político. Ébrias das fórmulas externas, dos meros processos da razão
e da ciência, as gerações, que nos precederam, aluíram todos os fundamentos da
fé cristã, porque a sua crítica bíblica, subindo de crítica dos textos a
crítica mitológica, reduziu os evangelhos e a anterior hierografia dos judeus a
um amontoado incerto de mitos, de legendas e de mera literatura; e a sua
crítica científica gradualmente apontou os erros, as ingenuidades selvagens da
«ciência» primitiva dos evangelhos; e, ao mesmo tempo, a liberdade de
discussão, que pôs em praça todos os problemas metafísicos, arrastou com eles
os problemas religiosos onde fossem da metafísica. Ébrias de uma coisa incerta,
a que chamaram «positividade», essas gerações criticaram toda a moral,
esquadrinharam todas as regras de viver, e, de tal choque de doutrinas, só
ficou a certeza nenhuma, e a dor de não haver essa certeza. Uma sociedade assim
indisciplinada nos seus fundamentos culturais não podia, evidentemente ser
senão vítima, na política, dessa indisciplina; e assim foi que acordámos para
um mundo ávido de novidades sociais, e [que] com alegria ia à conquista de uma
liberdade que não sabia o que era, de um progresso que nunca definira.
Mas o criticismo fruste dos nossos pais, se nos
legou a impossibilidade de ser cristão, não nos legou o contentamento com que
(...) tivéssemos; se nos legou a descrença nas fórmulas morais estabelecidas,
não nos legou a indiferença à moral e às regras de viver humanamente; se deixou
incerto o problema político, não deixou indiferente o nosso espírito a como
esse problema se resolvesse. Nossos pais destruíram contentemente, porque
viviam numa época que tinha ainda reflexos da solidez do passado. Era aquilo
mesmo que eles destruíam que dava força à sociedade para que pudessem destruir
sem sentir edifício rachar-se. Nós herdámos a destruição e os seus resultados.
Na vida de hoje, o mundo só pertence aos estúpidos,
aos insensíveis e aos agitados. O direito a viver e a triunfar conquista-se
hoje quase pelos mesmos processos por que se conquista o internamento num
manicómio: a incapacidade de pensar, a amoralidade e a hiperexcitação.
s.d.
fernando
pessoa
livro do
desassossego por bernardo soares. vol. I
europa-américa
1986
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