Se pensar numa certa língua e escrevo «o cão corre
atrás da lebre no bosque» e quiser traduzir para outra devo dizer «a mesa d
emadeira branca enterra as patas na areia e quase morre de medo por se saber
tão [pateta]».
Céu céu céu céu céu violeta violeta céu céu céu
violeta violeta violeta céu céu céu violeta violeta violeta céu céu céu
céu céu violeta violeta violeta violeta
céu céu céu céu céu violeta violeta violeta violeta céu céu céu céu céu violeta
violeta violeta céu céu céu violeta verde céu céu céu céu verde verde céu céu
céu céu preto verde verde céu castanho céu céu céu preto preto preto preto
preto branco branco preto verde castanho céu céu.
Poemas? Há pilhas de poemas amontoados por aí. Quando
comecei a escrevê-los, queria preparar uma paleta de palavras, como se
estivesse a lidar com cores. Todas essas palavras eram ponderadas, filtradas e
avaliadas. Não recorro muito a expressões espontâneas do inconsciente.
Sinos de prata e conchas de caramujos e víscera
entrançadas em fila um dedinho em erecção nem uma uva nem um figo. Caixão sobre
os ombros repleto de salsichas e bocas raiva que deforma o desenho duma sombra
que esmurra os dentes pregado na areia o cavalo rasgou-se de cima a baixo ao
sol. Gritos de crianças gritos de mulheres gritos de pássaros gritos de flores
gritos de madeira e de pedra gritos de tijolos gritos de móveis de camas de
cadeiras de cortinas de tachos de gatos e de papéis gritos de cheiros que se
arranham de fumo que morde o pescoço gritos que fervem no caldeirão e a chuva de
pássaros que inunda o amar que rói os ossos e quebra os dentes trincando o
algodão que o sol esfrega no seu prato que a bolsa e o banco escondem na
impressão cravada na rocha.
A pontuação é uma parra que esconde as partes
íntimas da literatura.
pablo picasso
sonhador definitivo e perpétua
insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua
francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021
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