18 abril 2022

samuel beckett / onde iria, se pudesse ir…

 
 
 
Onde iria, se pudesse ir, que seria, se pudesse ser, que diria, se tivesse uma voz, quem é que fala assim, dizendo que sou eu? Respondam simplesmente, haja alguém que responda simplesmente. É o mesmo desconhecido de sempre, o único para quem existo, nas profundezas da minha inexistência, da sua inexistência, da nossa, ora aí está uma resposta simples. Não é pensando que me encontrará, mas que pode ele fazer, vivo e perplexo, sim, vivo, diga o que disser. Esquecer-me, ignorar-me, sim, seria o mais sensato, é perito nisso. Porquê esta súbita amabilidade após tanto abandono, é fácil de compreender, é o que ele diz, mas não compreende. Não estou na sua cabeça, não estou em parte nenhuma do seu velho corpo, e, no entanto, estou aqui, para ele estou aqui, com ele, donde tanta confusão. Deveria contentar-se em ter-me reencontrado ausente, mas não, quer-me aqui, com uma forma e um mundo, como ele, sem querer, eu que sou tudo, como ele que não é nada. e quando me sente sem existência, é da sua que ele me quer privado, e vice-versa, louco, louco, é louco. Na realidade anda à minha procura para me matar, para eu estar morto como ele, morto como os vivos. Sabe que é assim, mas não serve de nada saber, eu não sei, não sei nada. Evita raciocinar, mas só raciocina, falso, como se isso pudesse ajudar. Julga balbuciar, claro que balbucia. Conta a sua história de cinco em cinco minutos, dizendo que não é sua, vejam lá a esperteza. Gostaria que fosse eu a impedi-lo de ter uma história, claro que ele não tem história, mas será razão para querer impingir-me uma? É assim que ele raciocina, passando ao lado, sim, sim, mas, o que tem de se ver é passando ao lado de quê. Faz-me falar dizendo que não sou eu, vejam só o exagero, obriga-me a dizer que não sou eu, a mim que não digo nada. é grosseria a mais.
 
(…)
 
 
 
samuel beckett
novelas e textos para nada
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2006




17 abril 2022

eugénio de andrade / mar sobre a boca

 
 
 
1.
O corpo sabe.
O corpo não esqueceu ainda
a direcção do sol:
fará a casa perto do mar,
fiel ao quase adolescente
coração da água.
As mãos acesas – altas, altas.
 
2.
O mar – sempre que toco
um corpo é o mar que sinto
onda a onda
contra a palma da mão.
Vésper está agora
tão próxima que já não posso
perder-me naquela infatigável
ondulação.
 
3.
Vinha do mar.
A sua boca ardia.
Só casualmente passou por aqui.
Como o tordo branco. E a cotovia.
 
4.
Vem das ilhas ou dum verso de Homero.
Como dormir, depois de ter ouvido
o mar o mar o mar na sua boca?
 
 
 
eugénio de andrade
hífen 1 out. 87/ mar. 88
cadernos semestrais de poesia
1987



 
 

16 abril 2022

manuel antónio pina / alguém atrás de ti

 
 
Como no sonho dum sonho, arde
na mão fechada de Deus o que passou.
É cada vez mais tarde
onde o que eu fui sou.
 
Que coisa morreu
na minha infância
e está lá a ser eu?
a lâmpada do quarto? A criança?
 
Em quem tudo isto
a si próprio se sente?
Também aquele que escreve
é escrito para sempre.
 
 
 
manuel antónio pina
nenhum sítio
algo parecido com isto, da mesma substância
poesia reunida 1974-1992
afrontamento
1992
 



15 abril 2022

roger wolfe / dias sem pão

 
 
Sexta-feira, e chamam-lhe Santa.
As ruas estão desertas. Paz.
Acabou-se o pão e está tudo fechado.
Levantei-me às sete da matina
para me atirar ao trabalho.
São dez e meia e brilha o sol
sobre um céu muito azul
lacerado pelos gritos das gaivotas.
Segundo a rádio, Espanha
já começou a arder.
 
 
 
roger wolfe
fazer o trabalho sujo
tradução de luís pedroso
língua morta
2020



 

14 abril 2022

yvette k. centeno / querer e poder


 
 
Julgamos fazer o que queremos
mas só fazemos o que podemos
 
Vivemos entre os espaços dados
mas morremos em buracos
 
as pequenas feridas
que o tempo vai alargando
 
umas são de mais longe
outras ao nosso lado
 
 
 
yvette k. centeno
existir
eufeme
2022



 

13 abril 2022

louise glück / prisma

 
 
13
 
Chuva de Primavera, depois uma noite de Verão.
Uma voz de homem, depois uma voz de mulher.
 
Crescias, eras fulminada por um raio.
Quando abrias os olhos, estavas ligada para sempre ao teu verdadeiro
          amor.
 
Só acontecia uma vez. Depois tratavam de ti,
a tua história acabava.
 
Acontecia uma vez. Ser fulminada era como ser vacinada,
ficavas imune para o resto da vida,
ficavas ao abrigo de tudo.
 
A menos que o choque não fosse suficientemente profundo.
Então não ficavas vacinada, mas viciada.
 
 
 
louise glück
averno
tradução de inês dias
relógio d´água
2020




12 abril 2022

emanuel jorge botelho / versos do desconsolo

  
 
                  para Stig Dagerman
 
 
 
fiquei com pouco tempo
para dar à claridade,
e as abelhas já não vêm
pôr mel dentro das rosas.
 
às vezes, a minha sombra
é um pedaço de risco,
qualquer coisa desavinda
a que o Sol quer dar sustento.
 
quem disse que a memória
é sempre muito antiga?
 
quem falou de uma aranha
para tecer a eternidade?
 
                         Outubro de 2013
 
 
 
emanuel jorge botelho
telhados de vidro n.º 19 . maio . 2014
averno
2014





 
 
 
 

11 abril 2022

sonnet mondal / vivendo memórias

 
 
O comprimento desta noite
parece mais longo do que a minha vida.
 
Ninguém sabe o que está dentro
e ninguém anseia por isso.
 
Todas as minhas experiências estão presas
 
Os seus nascimentos
foram carimbados pela dependência
como as trepadeiras
agarrando-se a uma antiga árvore despenteada
que alugou as suas folhas
aos incansáveis chilreares da experiência.
 
Eu sinto-me tão calmo, mapeio coisas para esquecer
Mas os pássaros do meu passado estão inquietos.
 
O sono está em toda a parte, excepto nas minhas memórias.
 
 
 
sonnet mondal
nervo/1
colectivo de poesia
janeiro/abril 2018
trad. de sérgio ninguém




 

10 abril 2022

arancha nogueira / a casa estralou

 
 
a casa estralou
mil cores azuis.
e agora os cachiños como pedazos de metacrilato
ou um universo roto.
 
ti descansabas nalguns recunchos
como a cociña
ou unha cadeira vella que conserva o cheiro.
 
as lâmpadas están acesas
as miñas mans, espidas.
 
 
 
arancha nogueira
o único lugar onde ficar inmóbil
editora urutau
2018




 

09 abril 2022

armando pinheiro / sobejos

 
 
As vitórias completas são bem raras:
Quase sempre há o reverso da medalha,
E aquilo que se ganha são aparas
Que sobram dos despojos da batalha…
 
 
 
armando pinheiro
espelho
editorial inova
1978
 



08 abril 2022

antónio dacosta / nesse jardim onde pousais

 


 
Nesse jardim onde pousais
Pousei eu
 
Os sinos soavam pesados
Na limpidez da tarde
E havia nos eucaliptos
Uma memória antiga
Um antigo cheiro
 
Passavam as raparigas
Que sabia não serem minhas
 
Doía-me o destino
A sua voz vinda de longe
O seu dedo apontado a mim
 
Elas sabiam
 
 
 
antónio dacosta
a cal dos muros
assírio & alvim
1994









07 abril 2022

ana paula inácio / querida sophia

 
 
Afinal as mónicas continuam
são as de sempre.
Fazem psicanálise e ioga,
cabeleireiro aos sábados e depilação 2 vezes por mês.
Não têm filhos mas adoptam-nos
como dão guarda aos cães
têm-nos de toda a qualidade
e para qualquer situação:
de cego para quando acordam cedo
e o excesso de luz as perturba;
da pradaria se pretendem preciosidades
raridades escondidas;
de água quando temerariamente mergulham
Quelques centimètres plus fond;
Briard quando precisam de inteligentes
e corajosos ou de pelagem abundante e
algo ondulado como os define
o dicionário Houaiss;
e finalmente de guarda ou de
fila não venha a coisa tornar-se pior.
Por vezes, estes últimos, podem tornar-se pegajosos,
inoportunos, indesejáveis
pelo que recebem o nome de miúdo ou
tinhoso, como o do rabo comprido, o
que também as enfeitiça
por fugir à norma, ao vulgo, ao
tremoço.
São sempre as mónicas
e quando falam ao telemóvel
usam uma voz recortada
como as mitenes da avó
e nunca amanham peixe
ou se amanham é para utilizar
as escamas em quadros florais
dispostos corredor acima.
Ao peixe comem-no cru,
para experimentar outras culturas.
 
 
 
ana paula inácio
2010-2011
averno
2011




06 abril 2022

alexandre nave / a dor é um abraço que afoga

 
 
5
 
A roupa estendida a desfeitear rapariga
as mãos delas prendidas nas outras
os olhos em tanques de água,
 
os dedos frios alongados no pátio,
 
saem para a praça vestidas no céu
que vela os mortos, os cabelos
entrelaçados nos beirais da chuva
 
a roupa seca balançada nos olhos
 
 
 
alexandre nave
columbários & sangradouros
quasi
2003