27 março 2022

natércia freire / guerra

 
 
São meus filhos. Gerei-os no meu ventre
Via-os chegar, às tardes, comovidos,
Nupciais e trementes,
Do enlace da Vida com os sentidos.
 
Estiveram no meu colo, sonolentos.
Contei-lhes muitas lendas e poemas.
Às vezes, perguntavam por algemas.
Respondia-lhes: mar, astros e ventos.
 
Alguns, os mais ousados, os mais loucos,
Desejavam a luta, o caos a guerra.
Outros sonhavam e acordavam roucos
De gritar contra os muros que há na Terra.
 
São meus filhos. Gerei-os no meu ventre.
Nove meses de esperança, lua a lua.
 
Grandes barcos os levam, lentamente…
 
 
 
natércia freire
liberta em pedra
1964




 

26 março 2022

maria alberta menéres / hoje a tristeza é outra e dela falo

 
 
Hoje a tristeza é outra e dela falo
com a minha língua de ar. Em tudo existe
uma polida lágrima embrulhada
em papel deslumbrado de outras mágoas.
Algo me diz que nada se transmite
da paixão à mais lenta compaixão,
dos dedos aos enredos   da prudência
à tão pura imprudência passeando
no peito que um feroz acolhimento
para ela em seus ócios inventou.
Porque a tristeza é outra e dela falo
hoje por ser diferente e triste ser.
 
 
 
maria alberta menéres
o jogo dos silêncios 1996
poesia completa
porto editora
2020




 

25 março 2022

victor oliveira mateus / poema com pássaros dentro

 




 
nos dias de muito frio
vêm os pássaros acoitar-se
entre a persiana descida
e a janela fechada
 
alinham-se em fila indiana
aconchegam-se uns aos outros
espiam-me deitado na cama
depois acabam por partir
sem me dizer para onde
 
é então que me lembro
do rouxinol de keats
da cotovia de de shelley
dos melros de junqueiro
e da irene lisboa
e lembro-me também de nós
sempre com uma janela fechada de permeio
 
há nos pássaros qualquer coisa de humano
igualmente divididos
entre uma plenitude que possuem
e um impercetível temor que os bloqueia
 
 
 
victor oliveira mateus
uma casa no outro lado do mundo
labirinto
2021





24 março 2022

leopoldo maría panero / branca-de-neve despede-se dos sete anões

 
 
Prometo escrever-vos, lenços que se perdem no horizonte, risos que empalidecem, rostos que caem sem peso sobre a erva húmida, onde as aranhas tecem agora as suas teias azuis. Na casa do bosque estalam, de noite, as velhas madeiras, o vento agita coçados cortinados, entra apenas a lua através das gretas. Os espelhos silenciosos, agora, que grotescos!, envenenados pentes, maçãs, malefícios, que cheiro a lugar fechado!, agora, que grotescos!. Terei saudades vossas, nunca vos esquecerei. Lenços que se perdem no horizonte. Ao longe ouvem-se pancadas secas, uma após outra as árvores sucumbem. Está à venda o jardim das cerejeiras.
 
 
 
leopoldo maría panero
inimigo rumor, nº 14
tradução de pedro serra
livros cotovia
2003



23 março 2022

pedro tamen / ivan illitch

 
 
Não perguntei ao agonizante que paisagem
via para além dos pés da cama
que era aquilo dos rostos inquietos
se de verdade inquietos
aos pés da cama há tantos dias          ai
há tantos          tantos dias
espreitando          espreitando de olhos molhadinhos
a passa passividade          a quase passada
posição deitada mas respirante ainda
 
 
Não perguntei se do outro lado
por cima ou          bem melhor          atrás
da vazia cabeça          alguma coisa ardia
sem nada anunciar
tudo pronunciando
 
 
 
pedro tamen
relâmpago nº. 13 10-2003
revista de poesia
fundação luís miguel nava
2003




 

22 março 2022

blaise cendrars / prosa do transiberiano e da joaninha de frança

 
 
Nesse tempo estava eu na adolescência
Tinha apenas dezasseis anos e já não me lembrava
          da minha infância
Estava a 16.000 léguas da terra onde nascera
Estava em Moscovo, na cidade dos mil e três
          campanários e das sete estações de caminho
          de ferro
Mas não estava farto das sete estações
          e das mil e três torres
Porque a minha adolescência era tão ardente
          e tão louca
Que o meu coração ardia, alternadamente, como
          o templo de Éfeso ou a Praça Vermelha
          de Moscovo
Quando o sol se põe.
E os meus olhos iluminavam caminhos antigos.
E era já tão mau poeta
Que não sabia ir até ao fim.
 
O Kremlin era como um imenso bolo tártaro
Coberto de ouro,
Com as grandes amêndoas das catedrais muito
          brancas
E o ouro meloso dos sinos…
Um velho monge lia-me a velha lenda de Novgorode
Eu tinha sede
E decifrava caracteres cuneiformes
Depois, subitamente, os pombos do Espírito-Santo
          levantavam voo na praça
E as minhas mãos voavam também, com sussurros
          de albatroz
Eram as ultimas reminiscências do último dia
Da última viagem
E do mar.
 
No entanto, eu era muito mau poeta.
Não sabia ir até ao fim.
Tinha fome.
E todos os dias e a todas as mulheres dos cafés
          e a todos os copos
Gostaria de bebê-los e parti-los
E a todas as montras e a todas as ruas
E todas as casas e todas as vidas
E a todas as rodas dos fiacres que rodavam
          em turbilhão pelas más estradas
Gostaria de mergulhá-los numa fornalha de gládios
E triturar todos os ossos
E arrancar todas as línguas
E liquefazer todos os enormes corpos estranhos e nus
          sob vestimentas que me transtornam…
Pressentia a vinda do grande Cristo vermelho
          da revolução russa…
E o sol era uma chaga terrível
Que se abria como um braseiro.
 
[…]
 
 
 
blaise cendrars
prosa do transiberiano e da joaninha de frança.
poesia em viagem
trad. liberto cruz
assírio & alvim
1974




 

21 março 2022

artur do cruzeiro seixas / as paisagens vieram de muito longe

 
 
As paisagens vieram de muito longe
para nos receber
e é ver na copa das árvores
barcos que se debatem
no momento do naufrágio.
No museu das tuas unhas fundas
o sonho desperto
arrasta-nos para o subterrâneo azul.
Eficientes são essas tuas asas nocturnas
indiferentes aos grupos antagónicos arrastando chaves
que se cruzam com outros          conduzindo espelhos
com em cada cérebro um idioma fremente.
É a vitória do fragmento que passa e repassa
enquanto a mão repousa ainda
sobre a torneira do dilúvio.
Da ilusão da morte
dizem-nos os viajantes que
dirigindo uma petição às formigas
encontraremos a maneira mais eficaz
de jamais compreender este sonho de bronze vermelho
quando aninhado nos nossos ouvidos.
 
Áfricas 67
 
 
 
artur do cruzeiro seixas
obra poética vol. I
quasi
2002




 

20 março 2022

antonio gamoneda / não tenho medo nem esperança

 
 
Não tenho medo nem esperança. De um hotel fora do
destino, vejo uma praia negra e, longínquas, as gran-
des pálpebras de uma cidade cuja dor não me afecta.
 
Venho do metileno e do amor; tive frio debaixo dos
tubos da morte.
 
Agora contemplo o mar. não tenho medo nem espe-
rança.
 
 
 
antonio gamoneda
livro do frio
trad. de josé bento
assírio & alvim
1999



 

19 março 2022

ángél gonzález / crise

 
 
O ideal, nestes casos,
seria morrer de morte natural,
fazer um gesto amargo,
deitar-me
definitivamente,
e partir com cuidado
para que ninguém possa
dar-se por ofendido.
Mas isso não é possível,
descontando Deus nosso Pai
– e os outros.
Por isso
– frio na rua, tédio
em quantos passam –
não saio do sítio, e vivo
– coração assediado pelo pranto –
a minha hora terrível:
a que ainda não soou.
 
 
 
ángél gonzález
para que eu me chame ángel gonzález
uma antologia
selecção e tradução de miguel filipe mochila
língua morta
2018




18 março 2022

rui diniz / (love poem)






 
O tempo é a flor da marijuana e as tardes tristes.
Toda a tarde um morto na principal praça. À
distância, o fumo azul de uma exumação no cemitério.
E neste café leio o amor de Jaime e de Gisèle.
Nas ruas da Baixa a cidade inventa pessoas vivas,
mas os anos são vasos de tédio e copos de gin num bar.
Sigo com o olhar o vento: é leve e azulado.
Uma flor salta-lhe da boca, uma boca excêntrica e
floral. Uma a uma as pétalas e as páginas vão sendo
espalhadas pelos jardins e cais. É o crepúsculo no mar,
por fim. Acendem-se as luzes, amarelas e ninfómanas.
Ouço num búzio a espuma imóvel. Respiro o tempo.
E os meus olhos em silêncio recordam Sapho numa
ilha.
 
 
 
rui diniz
ossos de sépia
noemas
língua morta
2022




 

17 março 2022

ana hatherly / 463 tisanas

 
 
72
 
Era uma vez uma ausência que andava em missão de viagem. Quando chegava a uma encruzilhada dava três voltas sobre si própria para perder por completo a noção do caminho por onde viera atingindo assim com regularidade as regiões efémeras do esquecimento. Depois regressava a casa.



ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006




 

16 março 2022

a. c. swinburne / rosamunda

 
 
O medo é uma almofada sob os pés do amor,
Com cores que são para ele tranquilas;
Vermelho suave e branco tingido de sangue, azul
De flores, verde que se une ao estio,
Doce púrpura prometido ao mar e um negro calcinado.
Todas as formas coloridas do medo, presságio e mudança,
Uma triste profecia seguida de incertos rumores,
Premonições, astrologias e perigosas
Inscrições, o que a memória nos recorda,
Tudo fica encoberto pelo manto do amor,
E, quando ele o sacode, tudo será derrubado,
Agitado e levado no rosto poeirento do ar.
 
 
 
a. c. swinburne
poemas
tradução de maria Lourdes Guimarães
relógio d’ água
2006
 



15 março 2022

lawrence ferlinghetti / oh, tu que recolhes

 
 
Oh, tu que recolhes
          a fina cinza da poesia
                    cinza da chama demasiado branca da poesia
Pensa nos que arderam
          antes de ti
                              no fogo tão branco
Crisol de Keats e Campana
          Bruno e Safo
                    Rimbaud e Poe e Corso
E Shelley a arder na praia em Viareggio
 
E agora no meio da noite
          da conflagração geral
                    a luz branca
                              ainda a consumir-nos
                    pequenos palhaços
                         com as nossas velinhas
                              erguidas em direcção à chama!
 
 
 
lawrence ferlinghetti
a poesia como arte insurgente
tradução de inês dias
relógio d´água
2016