20 fevereiro 2022

agustina bessa-luís / cumplicidade

 
 
     Eu hoje sou profundamente aceite na sociedade portuguesa na medida em que sou profundamente cúmplice dela. cúmplice das pessoas. […] Cúmplice na medida em que as entendo e faço parte delas. Por um fenómeno de mimetismo, pode-se dizer. […] Mais do que pelas ideias ou até do que pelo engenho dos livros. Há uma enorme quantidade de pessoas que me lêem pouquíssimo – ou que não me lêem de todo – e, contudo, fazem parte de mim e eu delas. Sem dúvida nenhuma. Quando eu morrer vou fazer imensa falta, nessa medida. Essa cumplicidade desaparece. E ela é necessária à vida humana. As pessoas sabem que nada de mal acontece a um povo em que essa cumplicidade está viva e é permanente…
 
 
 
agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008




19 fevereiro 2022

neil curry / sobre alfarrabistas

 
 
Nunca que me apercebesse, como Leonard
Uma vez referiu, passei ao lado de alfarrabistas,
Especialmente daqueles pequenos em ruas secundárias
Onde uma campainha pendurada na ombreira traz
Alguém de uma divisão nas traseiras. Contudo é
Desanimador e também salutar estar ali
Entre os que não têm casa e os indesejados, os falhados
E os esquecidos, mas é possível que descubramos
Alguns camaradas a quem sorrir ou acenar:
Cowper ou Gilbert White e até talvez
Encontrar, caído por trás de uns volumes grossos
De Bulwer-Lytton, uma aristocrata
Ansiosa para explicar o que se passa
Numa colmeia ou como foi estar
Deitada sob um céu estrelado com os beduínos.
E numa prateleira alta pode haver alguém
Que, por razões e de maneiras que nunca podíamos ter
Imaginado, se torne um dos nossos melhores
Amigos e mais chegados e como foi dito (por quem?):
In thy most need go by thy side.”
 
 
 
neil curry
companhia a mrs woolf
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2017




 

18 fevereiro 2022

joan margarit / mulher da primavera

 
 
Depois das palavras só te tenho a ti.
Triste é quem não perdeu nunca
por amor uma casa.
Triste o que morre rodeado de respeito e de prestígio.
Importa-me tudo o que acontece na noite
estrelada de um verso.
 
 
 
joan margarit
misteriosamente feliz
trad. miguel filipe mochila
flâneur / língua morta
2020




17 fevereiro 2022

león artigas / o luxo dos heróis

 
 
Os dias que vivi bem vividos estão.
De que adianta evocar com tom amargo
a fé desencantada de uma estupida infância,
o logro abandonado de uma infame juventude,
tantos atraiçoados objectivos?
 
Não olharei para trás.
Não olharei para outro futuro.
Implorarei apenas por um clarão
ofuscante de lucidez
para devolver a deus
um cadáver de luxo.
 
 
 
león artigas
(espanha, 1931-1984)
o meu livro de cabeceira é um revólver
dezassete suicidas
trad. jorge melícias
língua morta
2020




 
 
 

16 fevereiro 2022

georges bessière / eterna

 
 
     Tenho sede de linhas imortais: pois quero que o sol assassino me encontre forte e musculado. Preciso de apresentar às próximas auroras cabelos e olhos onde foi destilado o clarão das luas a envelhecer. Ó folhas mortas, ó folhas amarelas, ó vidas dessas folhas voando e pousando, e arrastando-se, encetai a sinfonia das minhas noites feiticeiras, sem receio, sem receio; eu não sou um mensageiro visto que o meu coração mora no vosso seio, encarquilhado, caído de suas artérias, visto que vai da senda ao regato, do regato às clareiras, pobre bloco seco de pergaminho, onde ficou gravada esta dor vespertina uivada pelas vossas raivas às nuvens hipnóticas de outono…
 
 
 
georges bessière
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021




15 fevereiro 2022

rui nunes / somos os que a morte reconduz

 
 
somos os que a morte reconduz
à rapidez das lágrimas, ao ritmo brutal
de uma festa que nada antecedeu:
hiato que a mão utilizou para guiar
a dor pelo trilho da suspeita; somos
os que a morte reconhece como a sua memória,
um rasto que procura a presa e a encontra
no homem que se embrenha por caminhos
dissimulado no seu próprio esquecimento
 
 
 
rui nunes
ofício de vésperas
relógio d’ água
2007




 

14 fevereiro 2022

joão miguel fernandes jorge / schumann, uma fantasia

 
 
Amo aquele que pede o impossível
quando sente a casa desmoronar tijolo
a tijolo
com a leveza de uma pena liberta pleno
voo
 
de um azul e oiro, o ritmo –
  esse tijolo de barro vermelho
de um modo apaixonado pede
 
a vida
e a vida, num último instante, dá-lhe jardins,
deuses e a energia de uma
cidade suspensa
a luz de um palácio submerso
 
no último instante,
muito lento,
silvam as chamas do desamparo, caducidade
duração
 
 
joão miguel fernandes jorge
invisíveis correntes
relógio d´água
2004




13 fevereiro 2022

mário de sá-carneiro / a sala do castelo é deserta e espelhada

 
 
A sala do castelo é deserta e espelhada.
 
Tenho medo de Mim. Quem sou? Donde cheguei?...
Aqui, tudo já foi… Em sombra estilizada,
A cor morreu – e até o ar é uma ruína…
Vem d’ Outro tempo a luz que me ilumina –
Um som opaco me dilui em Rei…
 
 
 
mário de sá-carneiro
indícios de oiro
poemas
assírio & alvim
2007




12 fevereiro 2022

antónio botto / nem sequer podia

 
 
Nem sequer podia
Ouvir falar no teu nome.
E se fixava o teu vulto,
Irritava-me, sofria
Por não poder insultar-te…
Até que um dia,
– Foi no Inverno, anoitecia.
Chuviscava; - uma chuvinha
Impertinente e gelada
Como sorriso de ironia
Numa boca desejada.
 
Já não sei o que disseste;
Nem me lembro do que disse…
 
A chuva continuava.
Atravessámos um jardim.
E à luz fosca
Dum candeeiro,
Segredaste ao meu ouvido:
Quero entregar-te o meu corpo.
E eu acrescentei: - Pois sim.
 
A chuva tornou-se densa.
Eu ia todo encharcado.
Por fim, chegámos; entrei…
Um marinheiro descia
Ajeitando a camisola
E compondo os caracóis.
 
Era uma casa vulgar,
Aonde o amor
– Oculto a todos os sóis,
Se vendia a troco da “real mola”.
 
Arrependi-me. Blasfemei…
Mas quando abandonei os teus braços
Senti que tinha mais alma!
 
E nunca mais te encontrei!
 
 
 
antónio botto
màrio soares, os poemas da minha vida
público
2005




 

11 fevereiro 2022

lamiae el amrani / alma desventurada

pedro calapez


 
Amarrei-me a um vento traidor
Que me levou ao ventre do mar
E me tapou a boca
Com bolhas salgadas
Lágrimas que o mar derramava.
 
Gritei ao vento que parasse
Mas ele continuou a enforcar-me
Com as suas mãos de água
Até que me entreguei ao nada.
 
 
 
lamiae el amrani
trad. zetho cunha gonçalves
nervo/13 janeiro/abril 2022
colectivo de poesia
2022
 
 
 
 

10 fevereiro 2022

miguel-manso / campéstico, paisagens e interiores

 
 
13
os textos são um retrato dos dias
 
ou um salão dentro do qual repousa
uma jarra de porcelana
 
formas que resultam de frágil
consistência pedindo à violência o seu
imodesto exercício de tumulto
 
quantas gerações mais de versos
porém
 
queimarão à vez e com brandura estes
mesmsíssimos enredos
 
 
 
miguel-manso
persianas
tinta da china
2015




 

09 fevereiro 2022

elisabete marques / blue velvet

 
 
A mulher canta o azul – que tinge
as suas pálpebras – daquele jeito açucarado
de ser toda ela cor e violência num vestido de noite.
 
Mas antes, antes do canto, a película
confunde-se com a descoberta de um fragmento
do corpo, a orelha. O labirinto fílmico começa assim.
 
Não, não começa assim. Antes vemos o aconchego
doméstico, a relva, a água, a lama e os acasos da morte.
Preâmbulo para o que teremos de procurar.
 
blue velvet
 
De como o escaravelho, a substância
sôfrega e centenar do bicho côncavo, fundo,
interno à relva cuidada do jardim, vive, matéria
obscura cheia de patas.
 
 
 
elisabete marques
voo rasante
mariposa azual
2015




 
 
 

08 fevereiro 2022

gottfried benn / são desprezíveis…

 
 
São desprezíveis os que amam e os que troçam
e quem espera e o desespero e a nostalgia.
Somos deuses que a dor e a infecção engrossam
e em Deus vamos pensando todavia.
 
A baía suave. Sonho em bosques sumido.
Os astros pesam, flores-bolas de nevar.
Saltam panteras plas árvores sem ruído.
Tudo é margem. Eterno chama o mar.
 
 
gottfried benn
50 poemas
tradução vasco graça moura
relógio d’água
1998