28 janeiro 2022

louise glück / caminhando à noite

 
 
Agora que é velha,
os homens não metem conversa com ela,
por isso as noites estão livres,
as ruas que ao crepúsculo eram tão perigosas
são agora tão seguras quanto o prado.
 
À meia-noite, a povoação está serena.
Os muros de pedra reflectem o luar;
nos passeios, é possível escutar os ruídos nervosos
dos homens estugando o passo para casa, para as suas mulheres e
   mães; a esta hora tardia,
todas as portas estão trancadas, as janelas às escuras.
 
Quando eles passam, não reparam nela.
É como uma folha de erva seca num campo de gramíneas.
Por isso, os seus olhos, habituados a não descolarem do chão,
são agora livres para passear onde quiserem.
 
Quando faz bom tempo e está cansada das ruas, caminha
pelos campos que demarcam o fim da povoação.
Às vezes, quando é Verão, chega a ir até ao rio.
 
Os jovens costumam encontrar-se não muito longe daí,
mas agora o rio está raso por falta de chuva, por isso
a margem está deserta –
 
Na altura, faziam-se piqueniques.
Os rapazes e as raparigas acabavam por formar pares;
Passado algum tempo, metiam-se pelos recessos dos bosques
que o crepúsculo sempre visita –
 
Agora, não se veria vivalma nos bosques –
tendo os corpos nus encontrado outros lugares para se esconder.
 
No rio, a água é só suficiente para que céu nocturno
desenhe padrões nas pedras cinzentas. A Lua brilha,
uma pedra entre muitas outras. E o vento levanta-se;
sopra as pequenas árvores que crescem à beira do rio.
 
Quando olhamos para um corpo, vemos uma história.
Assim que esse corpo deixa de ser observado,
a história que tentava contar acaba por se perder –
 
Em noites como esta, ela chega a caminhar até à ponte
antes de voltar para trás.
O cheiro do Verão persiste em todas as coisas.
E o corpo dela começa a parecer outra vez o corpo que fora o seu
   em jovem,
reluzindo sob as roupas ligeiras de Verão.
 
 
 
louise glück
uma vida de aldeia
tradução de frederico pedreira
relógio d´água
2021




27 janeiro 2022

anna akhmatova / acordar de madrugada

 
 
Acordar de madrugada
Pois a alegria sufoca,
E olhar pela vigia
Para as vagas de cor verde,
Ou no convés com mau tempo
Gasalhada em brandas peles,
Ouvir o bater da máquina,
E não pensar em nada,
Mas, pressentindo o encontro
Com esse que se tornou minha estrela,
Pelas gotas salgadas e o vento
Em cada hora rejuvenescer.
 
Julho de 1917
Slepnevo
 
 
 
anna akhmatova
poemas
trad. joaquim manuel magalhães e
vadim dmitriev
relógio d´água
2003
 


26 janeiro 2022

wislawa szymborska / instante

 
 
Vou pela ladeira da colina verdejante.
Erva, florinhas na erva,
como nas gravuras para crianças.
O céu enevoado, a ficar azul.
A vista para as outras colinas propaga-se no silêncio.
 
Como se por aqui não tivesse havido nenhuns câmbricos, silúricos,
rochas rosnando umas às outras,
abismos sublevados,
nenhumas noites em chamas
nem dias em baforadas de trevas.
 
Como se por aqui não se tivessem deslocado planícies
em febris delírios
e gélidos calafrios.
 
Como se somente em outro lugar se tivessem revoltado os mares
e se rompessem as orlas dos horizontes.
 
São nove e trinta, hora local.
Tudo no seu lugar e em impecável concórdia.
No vale, a pequena ribeira na qualidade de pequena ribeira.
A vereda sob a forma de vereda desde sempre e para sempre.
 
O bosque sob o pretexto de bosque por toda a eternidade, ámen.
No alto, os pássaros no papel de pássaros em voo.
 
Até onde a vista alcança, reina o instante.
Um desses instantes terrenos
aos quais se pede que perdurem.
 
 
 
wislawa szymborska
instante
trad. elzbieta milewska e sérgio neves
relógio d'água
2006
 




25 janeiro 2022

raymond queneau / sonho

 
 
 
Parecia-me que estava tudo enevoado e nacarado à minha volta, com presenças múltiplas e indistintas, entre as quais, no entanto, apenas se desenhava com bastante nitidez a figura de um homem jovem cujo pescoço demasiado longo parecia, por si só, anunciar o carácter simultaneamente cobarde e refilão da personagem. A fita do chapéu tinha sido substituída por uma guita entrançada. Discutia depois com um indivíduo que eu não via; a seguir, como que amedrontado, lançava-se na sombra de um corredor.
 
Uma outra parte do sonho mostra-mo a caminhar com o sol a pino, em frente da estação de Saint-Lazare. Está com um companheiro que lhe diz: “Devias mandar acrescentar um botão ao teu sobretudo.”
 
Nesse momento, acordei.
 
 
 
raymond queneau
exercícios de estilo
tradução colectiva
edições colibri
2000




 
 
 

24 janeiro 2022

marina tzvietáieva / à vida

 
 
Não colherás no meu rosto sem ruga
A cor, violenta correnteza.
És caçadora – eu não sou presa.
És perseguição – eu sou fuga.
 
Não colherás viva minha alma!
Acossado, em pleno tropel,
Arqueia o pescoço e rasga
A veia com os dentes, o corcel
 
Árabe.
 
 
 
marina tzvietáieva
poesia da recusa
trad. augusto de campos
perspectiva
2011




 

23 janeiro 2022

nydia bonetti / a dor é uma canção…



 
a dor é uma canção colada numa pedra
que vai ao fundo
de qualquer poça d´água
rio
ou mar – água qualquer onde se possa
se afogar
 
 
 
nydia bonetti
& natália gregorini
de barro e pedra
editora urutau
2017





 

22 janeiro 2022

manuel de freitas / alta definição

 
 
                          [para o Carlos Luís Bessa]

 
Escombros, «coisas assim», a raiva
de todos os partidos
a adivinhar-se sem fulgor, murada.
Tristes evidências, triste
desobedecer. Na rua da Alegria
existe ainda uma taberna
com vista para as pombas
e os prédios muito em derrocada.
Que sei eu? na televisão
resgatam corpos sem rosto
de um rio que não passou na minha infância.
O Inverno, como é sabido,
pode ser mortal. «Nós cobrimos
o acontecimento» - parabéns,
o horror em directo fica mais bonito.
 
Convido-te para um copo,
aqui onde tudo finda
– alegria nenhuma, débeis parras
de fingir. Se entardece
ou chove
já não sei falar.
 
 
 
manuel de freitas
[ sic ]
assírio & alvim
2002




21 janeiro 2022

alexandre o'neill / fim de semana

 
 
Estirado na areia, a olhar o azul,
ainda me treme o parvalhão do corpo,
do que houve que fazer para ganhar o nosso,
do que houve que esburgar para limpar o osso,
do que houve que descer para alcançar o céu,
já não digo esse de Vossa Reverência,
mas este onde estou, de azul e areia,
para onde, aos milhares, nos abalançamos,
como quem, às pressas, o corpo semeia.
 
 
 
alexandre o´neill
de ombro na ombreira 1969
poesias completas
assírio & alvim
2000
 



20 janeiro 2022

vitor matos e sá / festa

 
 
Vamos proteger os dias contra o desgaste
dos dias, a invasão do medo e a dissociação das coisas
repetidas. É preciso, excessivamente, promover
a comunicação do grande e do pequeno tempo,
convidar o imprevisto e o rosto inicial. Dispensaremos
os especialistas da evocação, os funcionários
que administram os lugares e comemoram o eterno.
Vamos antes recriá-lo todos nós para além
do espaço dos templos, teatros,
estádios, nadar no rio elástico
dos gestos e das vozes. É preciso
 
virar o forro às palavras, deixar que fervam
nelas a alegria e o vigor dos risos,
recuperar o jogo livre onde, a arder,
foram pronunciadas as primeiras regras
 
e deixar circular o amor, como um vinho, entre os lábios,
abrir os dedos, trocar as almas, emprestar os rostos,
confundir as vozes no cântico unânime e completo,
pegar fogo ao corpo dançando uns para os outros
nosso único público, hospedados no êxtase
e no possível, para explicarmos com palavras e corpos
o excesso e as fronteiras, a terra e o céu,
a luz e a sombra, a vida e a morte.
 
 
 
vitor matos e sá
poesia do mundo
edições afrontamento
1995




19 janeiro 2022

marguerite yourcenar / a paisagem dos meus dias…

 
 
[…]
 
A paisagem dos meus dias parece compor-se, como as regiões montanhosas, de materiais diversos acumulados desordenadamente. Encontro aí a minha natureza, já compósita, formada em partes iguais de instinto e cultura. Aqui e ali afloram os granitos do inevitável; por toda a parte, os desmoronamentos do acaso. Esforço-me por voltar a percorrer a minha vida a fim de encontrar um plano, seguir um veio de chumbo ou de ouro, ou o escoamento de um rio subterrâneo, mas este plano inteiramente fictício não é mais que uma aparência enganosa da lembrança. De tempos a tempos julgo reconhecer uma fatalidade num encontro, num pressentimento, numa série definida de acontecimentos, mas os caminhos de mais não conduzem a parte alguma, somas excessivas não se adicionam. Distingo perfeitamente nesta diversidade, nesta desordem, a presença de uma pessoa, mas a sua forma parece quase sempre traçada pela pressão das circunstâncias; os seus traços tornam-se confusos como uma imagem reflectida na água. Não sou daqueles que dizem que as suas acções se lhes não assemelham. É preciso que elas se pareçam comigo, porque são a minha única medida e o único meio de me desenhar na memória dos homens ou mesmo na minha própria, pois que a impossibilidade de continuar a exprimir-se e a modificar-se pela acção constitui talvez a diferença entre o estado de morto e o de vivente. Mas entre mim e esses actos de que sou feito existe um hiato indefinível. E a prova é que sinto constantemente a necessidade de os pesar, de os explicar, de dar conta deles a mim mesmo. Alguns trabalhos que duraram pouco são certamente desprezíveis, mas ocupações que se prolongaram durante toda a vida não têm maior significado. Por exemplo, no momento em que escrevo isto, o facto de ter sido imperador parece-me fracamente essencial.
 
Os três quartos da minha vida escapam, aliás, pelos actos a esta definição: a soma das minhas verdades, dos meus desejos, dos meus próprios projectos mantém-se tão nebulosa e tão fugidia como um fantasma. O resto, a parte palpável, mais ou menos autenticada pelos factos, é pouco mais distinta, e a sequência dos acontecimentos tão confusa como a dos sonhos. Tenho a minha cronologia muito minha, impossível de conciliar com a que se baseia na fundação de Roma ou com a era das Olimpíadas.  Quinze anos nos exércitos duraram menos que uma manhã de Atenas; há pessoas com quem convivi toda a minha vida e que não reconhecerei nos Infernos. Os planos do espaço cavalgam também: o Egipto e o vale de Tempe ficam muito próximos e eu não estou sempre em Tíbure quando aqui me encontro. Umas vezes a minha vida parece-me vulgar a ponto de não valer a pena não só escrevê-la mas comtemplá-la um tanto longamente, sem mais importância, mesmo a meus olhos, que a de outra pessoa qualquer. Outras vezes parece-me única, e por isso mesmo sem valor, inútil por ser impossível reduzi-la à experiência do comum dos homens. Coisa alguma me explica: os meus vícios e as minhas virtudes são absolutamente insuficientes para isso; a minha felicidade fá-lo melhor, mas com intervalos, sem continuidade, e sobretudo sem causa aceitável. Mas repugna ao espírito humano aceitar-se das mãos do acaso, não ser mais que o produto passageiro de probabilidades a que nenhum deus preside, nem sobretudo ele próprio. Uma parte de cada vida, e mesmo de cada vida muito pouco digna de ser notada, passa-se à procura das razões de existir, dos pontos de partida, das origens. Foi a minha impotência para os descobrir que me fez por vezes inclinar para as explicações mágicas, procurar nos delírios do oculto o que o senso comum me não dava. Quando todos os cálculos complicados se revelam falsos, quando os próprios filósofos não têm nada mais a dizer-nos, é desculpável que nos voltemos para a chilreada fortuita dos pássaros ou para o longínquo contrapeso dos astros.
 
 
 
marguerite yourcenar
memórias de adriano
trad. maria lamas
ulisseia
1974




 

18 janeiro 2022

r. lino / das origens

 
no ano de mil novecentos e setenta e um
depois de cristo
a agricultura crescia, se não me engano,
pelo mês de março
e os versos pelo tempo.
entre a ousadia e as cidades
– lá onde param os bairros na memória –
as crianças dos fossos arremetem palavrões
a quem lhes não abre a porta para esmolas.
no ano de mil novecentos e setenta… , digo,
nesse ano
tudo continuará igual à igual diferença
de alguns acertos…
onde pousam os pés dos meus irmãos
eu não sei
mas certamente que não pelo descanso mensal
dos verdes sobre as praias…
 
 
 
r. Lino
atlas paralelo
livro 2 das origens
gota de água / imprensa nacional-casa da moeda
1984




 

17 janeiro 2022

josé gomes ferreira / bem

 
 
XLV
 
Bem. Sacudo as lágrimas da gabardine
e sento-me neste esconderijo de café sujo
a olhar através da montra em mim na rua
a treva mecânica
do amor vazio.
 
Quem me vir aqui a estas horas
há-de pensar: está à espera de uma mulher.
 
E estou.
 
Corpo subterrâneo.
Cabelos clandestinos.
Perfil que queima e neva.
Revolução.
Tu.
Justificação do nevoeiro.
 
Lume
para exercícios de névoa.
 
 
 
josé gomes ferreira
comboio 1955-1956
poesia IV
portugália
1971




16 janeiro 2022

florbela espanca / caravelas

 
 
Cheguei a meio da vida já cansada
De tanto caminhar! Já me perdi!
Dum estranho país que nunca vi
Sou neste mundo a exilada.
 
Tanto tenho aprendido e não sei nada.
E as torres de marfim que construí
Em trágica loucura as destruí
Por minhas próprias mãos de malfadada!
 
Se eu sempre fui assim este Mar morto:
Mar sem marés, sem vagas e sem porto
Onde velas de sonhos se rasgaram!
 
Caravelas doiradas a bailar…
Ai quem me dera as que eu deitei ao Mar!
As que eu lancei à vida, e não voltaram!...
 
 
 
florbela espanca
sonetos
livraria bertrand
1981