01 julho 2021

ana hatherly / 39 tisanas

 
17
 
Era uma vez uma chave que vivia no bolso de um homem. Durante muito tempo desempenhou com honestidade o seu trabalho de abrir portas. Até que um dia descobriu que todo o seu trabalho tinha consistido sempre em abrir portas que já estavam abertas. Quando descobriu isso lançou-se corajosamente para fora do bolso. Caiu no chão. Ficou ali. Passa uma criança vê a chave e diz que coisa tão engraçada para fazer um carrinho.
 
 
 
ana hatherly
poesia
1958-1978
moraes editores
1980







30 junho 2021

mário-henrique leiria / esperar-te

 
 
esperar-te
esperar-te da mesma maneira solitária
com que se tem
saudades da paisagem numa vista
ficar incerto
– talvez desconhecido –
olhando as mãos vazias e inúteis
um cigarro somente
enquanto passam minúsculos animais
e o fumo te espera também
esperar
esperar apenas e não já esperar-te
esperar qualquer coisa
um rio que corra lentamente
um grande desastre de automóveis
o desmoronar da torre antiquíssima
um corpo que apareça de súbito
esperar
só por esperar
tanto pode ser que venhas
com que não venhas
que nunca venhas
depois
quando chegares
já eu parti.
 
 
 
mário-henrique leiria
obras completas
poesia
e-primatur
2018






 

29 junho 2021

steve klepetar / aula

 
 
Ela ensinou-me a apanhar chuva com a língua,
a saborear a cidade e as nuvens. Segurou a minha
mão e ensinou-me a ser pássaro, a deslizar
 
para um corpo de ossos vazios, a espreitar das copas
das árvores, a bicar, arranhar e voar. Ensinou-me
a sentir o vento como os seus dedos no meu cabelo,
 
a como não ter medo de saltar para a rebeldia
da sua voz, a música do seu corpo, mel
a pingar dos seus dedos como fios de ouro pegajosos.
 
 
 
steve klepetar
o filho da bebedora de café
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018





28 junho 2021

jack gilbert / o segredo

 
 
Existe uma beleza fácil nas estátuas de bronze
resgatadas do oceano, mas há valor
no informe onde a nossa doce mente é criada.
A verdade é como uma pérola, disse Francis Bacon.
É bela à clara luz, mas o carbúnculo
é mais precioso pelo seu profundo rubor se mostrar melhor
a várias luzes. «Um pouco de mentira
sempre aumenta o prazer.» Quando os chineses faziam
um círculo de pedras no topo dos seus poços,
uma ficaria enviesada de modo que o círculo
parecesse mais redondo. Irregularidade é o segredo
da música e da voz da grande poesia.
Quando um homem recorda a beleza do seu amor perdido
é a parte imperfeita dela que mais relembra.
O Pártenon arrasado é magnificado pelo seu dano.
 
 
 
jack gilbert
deixem-me ser ambos
trad. leonor castro nunes e marcos pereira
destrauss
2020





27 junho 2021

jorge de sousa braga / a ferida aberta

 
 
Há uma ferida aberta que
Sangra ciclicamente  um
 
Cíclame que floresce às
Horas mais inapropriadas
 
Quem me dera poder guardar
Todos esses milhões de flores
 
Que acabam diariamente em
Pensos higiénicos nos contentores
 
 
jorge de sousa braga
a ferida aberta
assírio & alvim
2001





26 junho 2021

josé luís peixoto / na hora de pôr a mesa

 
 
na hora de pôr a mesa, éramos cinco:
o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs
e eu. depois, a minha irmã mais velha
casou-se. depois, a minha irmã mais nova
casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje,
na hora de pôr a mesa, somos cinco,
menos a minha irmã mais velha que está
na casa dela, menos a minha irmã mais
nova que está na casa dela, menos o meu
pai, menos a minha mãe viúva, cada um
deles é um lugar vazio nesta mesa onde
como sozinho, mas irão estar sempre aqui.
na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco.
enquanto um de nós estiver vivo, seremos
sempre cinco.
 
 
josé luís peixoto
a criança em ruínas
quasi
2002






 

25 junho 2021

eunice de souza / alvorada II

 
 
Falamos através de continentes.
É pouco provável que nos voltemos a encontrar.
Não posso fumar, não posso viajar,
nenhuma felicidade, claro.
Sentindo um vento frio nas costas
renunciamos à filosofia.
Acabaram os amantes errantes, maridos,
passarões não propriamente sensatos.
Ainda temos a idade com que nos conhecemos.
 
 
 
eunice de souza
coração de abacate
trad. francisco josé craveiro de carvalho
do lado esquerdo
2018

 




24 junho 2021

josé miguel silva / má sorte que ela fosse mercenária

 
 
 
                                         It´s a miracle you’re not cynical.
                                                                                  Felt
 
 
Não era só a bela do bairro, era a lusa Marilyn
dos arrabaldes portuenses. Alta, toda loira,
só lhe faltava miar. De longe e de perto a segui
ao longo dos anos mais tolos. Uma tarde,
no acaso de uma rua: meu amor perdido,
ainda moras em Vilar do Paraíso?
Quando lhe telefonei dias depois
quis perguntar quanto é que eu ganhava.
Ao saber que era tudo lágrimas e livros,
ouvi – ai sim? – como arrefecia o paraíso
do outro lado da linha. Os meus 25 anos
aprenderam aí uma lição qualquer.
Mas já não me lembro muito bem
que aplicação ela teve, na gorada sequência
desses meses. A que só volto, agora,
porque já posso rir-me à vontade.
 
 
 
 
josé miguel silva
vista para um pátio seguido de desordem
relógio d´água
2003





23 junho 2021

antónio reis / poemas quotidianos

 
 
27
 
Conheço
entre todas
a jarra que enfeitaste
 
têm o jeito
com que compões o cabelo
as flores
que tocaste
 
 
antónio reis
poemas quotidianos
tinta da china
2017





22 junho 2021

josé saramago / aniversário

 
 
Pai, que não conheci (pois conhecer não é
Este engano de dias paralelos,
Este tocar de corpos distraídos,
Estas palavras vagas que disfarçam
O intransponível muro):
Já nada me dirás, e eu não pergunto.
Olho, calado, a sombra que chamei
E aceito o futuro.
 
 
 
josé saramago
os poemas possíveis
porto editora
2018





21 junho 2021

eugénio de andrade / matéria solar

 
 
49
 
Sei onde o trigo ilumina a boca.
Invoco esta razão para me cobrir
com o mais frágil manto do ar.
 
O sono é assim, permite ao corpo
este abandono, ser no seio da terra
essa alegria só prometida à água.
 
Digo que estive aqui, e vou agora
a caminho doutro sol mais branco.
 
  
 
eugénio de andrade
matéria solar
poesia
fundação eugénio de andrade
2000





 

20 junho 2021

bob dylan / deitei tudo a perder

 
 
Outrora tive-a nos meus braços
Ela disse que ficaria para sempre
Mas eu fui cruel
Tratei-a como um idiota
Deitei tudo a perder
 
Outrora tive montanhas na palma da mão
E rios que aí corriam todos os dias
Devo ter estado louco
Nunca soube o que tinha
Até que deitei tudo a perder
 
O amor é tudo o que existe, faz o mundo girar
O amor e somente o amor, não se pode nega-lo
Não importa o que penses sobre ele
Simplesmente não serás capaz de passar sem ele
Aceita o conselho de alguém que tentou
 
Assim se encontrares alguém que te dê todo o seu amor
Leva-o para o teu coração, não o deixes perder-se
Porque uma coisa é certa
De certeza que ficarás a sofrer
Se o deitares a perder
 
 

bob dylan
canções 1962-2001
volume 1 (1962-1973)
nashville skyline
trad. angelina barbosa e pedro serrano
relógio d´água
2008





 

19 junho 2021

arthur rimbaud / sensação

 
 
 
Pelas tardes azuis de Estio, irei pelos trilhos,
Picado pelas espigas, calcar a erva miúda:
Sonhador, sentirei o frescor que os pés pisam.
Virá banhar o vento a minha fronte nua.
 
Irei sem dizer nada, sem pensar em nada:
Mas o amor infinito subirá no meu ser,
– Boémio, pela Natureza, de bem longa jornada,
Feliz, como se fosse comigo uma mulher.
 
Março de 1870
 
 
 
jean-arthur rimbaud
poesia
obra completa
trad. miguel serras pereira e joão moita
relógio d´água
2018