30 novembro 2020

maria victoria atencia / história

 
 
     Oh transe dos que amo, vivido em minha pele:
sê benigno comigo.
Se está em todo o fim
a pegada do início,
deixa-me acordada folgar com esta minha história
o resto da minha morte.
 
 
 
 
maria victoria atencia
antologia poética
el coleccionista
tradução josé bento
assírio & alvim
2000




29 novembro 2020

antónio josé forte / um homem

 
 
De repente
como uma flor violenta
um homem com uma bomba à altura do peito
e que chora convulsivamente
um homem belo minúsculo
como uma estrela cadente
e que sangra
como uma estátua jacente
esmagada sob as asas do crepúsculo
um homem com uma bomba
como uma rosa na boca
negra surpreendente
e à espera da festa louca
onde o coração lhe rebente
um homem de face aguda
e uma bomba
cega
surda
muda
 
 
 
antónio josé forte
uma faca nos dentes
parceria a. m. pereira
2003





28 novembro 2020

maria velho da costa / (dom se bastião)

 
 
Todas as coisas revêm a seu termos
se mantido o começo
o seu (de cada uma) pedúnculo,
sinal; fiel a si só quem outrem ladeia
no recreio de achá-lo só contíguo
ao desejado, o longes,
desfeitos assim lios, tramas
(ter, ter, só do engano e não da jorna).
 
Que, sob a mesma traça,
mão que desenhe o sacro de seu nome
praça de si condigna queira
e laude como, à ida,
e perseguindo a encoberta desavinda vinda,
a pele lhe não foi raias de mortal.
 
Onde achar paradouro do ir indo
que as mesmas vascas agasalhe e cumpra?
 
O olhar permutado, a líquida juntura
não congelada porque bem fugida,
o integral dum sim já denegado,
o tão de si senhor que em desistir-se tento tenha
e embrumado (nunca por nunca certo)
vagueie um solidíssimo ficar?
 
Conjugar montaria sem quebreiras
no quadrado de cama jugulada,
(a terra em trevas);
amar redondo (em giração) e a eito;
casal que por fendido
a casa casta aberta e hoste rotornante
pátria dos pés crescentes caminheiros faça.
 
 
 
 
maria velho da costa
desescrita
afrontamento
1972
 



27 novembro 2020

carlos saraiva pinto / atiras um livro

 
 
atiras um livro
à profundidade da água
a incerteza desagua
 
gostava de arrumar tudo
os passos que dava
um pensamento heróico de absolutos
sentado naquele alpendre
coberto de orvalho
de onde via o mar
 
reúnem-me os livros
para quebrar os pecíolos
de um quotidiano
 
mas a solidão de um irmão
não é igual à ambição de outros
 
lembra a adolescência
quando colhíamos
açucenas dos naufrágios
 
e descobríamos quando o mar
retirava às dunas um navio ferrugento.
 
enquanto guiava pelas montanhas
ao lado dava-lhe substantivos.
 
trazer até tão tarde
a luz cansa.
em breve chega o outono,
a dobra dos lençóis,
as crianças da escola,
a oração dos rostos.
 
sabes, agora,
que a vida
é um sonho desnecessário.
 
também se vive no campo.
 
os sentimentos de culpa
não nos devoram
as entranhas
 
nem vão aos funerais
os príncipes da igreja.
 
 


carlos saraiva pinto
escrever foi um engano
o correio dos navios
2001




 

26 novembro 2020

artur do cruzeiro seixas / não são cabelos


 

Não são cabelos
nem algas
nem o vento
o que prende estas mãos
no rio barrento
 
Tu estás
onde te sustento.
 
Áfricas, 57
 
 

cruzeiro seixas
viagem sem regresso
tiragem limitada
2001
 


 




25 novembro 2020

josé gomes ferreira / neste momento

 
 
I
 
Neste momento
um pássaro qualquer
canta, explica as flores
perto da margem dum rio.
 
Nunca ouvi esse pássaro cantar
nem sei onde o rio corre…
 
Mas todas as noites no meu quarto
tento aprender de cor
essa melodia que não ouço
– sentindo o coração pesado
como um pássaro morto.
 
 
 
 
josé gomes ferreira
melodia 1932
poesia I
portugália
1972





24 novembro 2020

jack gilbert / para ver se algo vem depois

 
 
Não há nada aqui no cimo do vale.
Céu e manhã, silêncio e o cheiro seco
da pesada luz solar na pedra, por toda a parte.
Cabras, ocasionalmente, e o som dos galos
no vivo calor onde ele vive com a mulher
morta e a pureza. Tentando ver se algo
vem depois. Perguntando-se se terá estagnado.
Talvez, pensa, seja como o Nó: sempre
que o guião pede dança, faça o actor o que fizer
é uma dança. Se permanecer quieto, está a dançar.
 
 
 
jack gilbert
deixem-me ser ambos
trad. leonor castro nunes e marcos pereira
DeStrauss
2020





23 novembro 2020

pat boran / a planta

 
 
 
Na praia em Malahide
o casal jovem num jogo estranho
com paus e fitas, andando para a frente e para trás,
para trás outra vez – sem bola à vista – está apenas
 
a planear a casa que tenciona construir,
as paredes e as entradas marcadas na areia húmida,
indo de quarto imaginado para quarto
sob o sol a pôr-se, a lua a nascer.
 
 
pat boran
o sussurro da corda
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018





22 novembro 2020

joão almeida / duas esperas no domingo à tarde

 
 
Encontrei no bolso do casaco que te fica mal
Um lenço com manchas de suor
E sangue?
 
Um pensamento para encher a imensidão.
 

 
Chegou a chuva
Subirá pelo tronco até à nuca
E tudo será então absorvido.
 
 
 
joão almeida
canto skin
língua morta
2019

 



21 novembro 2020

joão miguel fernandes jorge / fins de outubro

 
 
Fins de Outubro. As uvas ainda estão
nas ramadas.
É preciso perder o rosto mais próximo
vencê-lo como se fisgam pássaros novos
e ficar preso a esse movimento.
Deixar nos campos crescer a flor do
aloés.
 
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
à beira do mar de junho
relógio d´água
2019







20 novembro 2020

josé ángel cilleruelo / aqui

 
 
                                                                          Eu estou sempre aqui.
                                                                                          Ruy Cinatti
 

Gostava da chuva mansa
dos dias do norte.
adorava a humidade sobre o rosto:
pouso no chão o telefone
sobre o tapete cinzento
e ajusto a luz nas persianas;
ria-se por nada às sextas-feiras
quando ao entardecer
enlouquece de súbito a cidade:
fecho a varanda
em pleno agosto para impedir
que se espalhe a campainha;
não perdia uma única
das manhãs de feira,
as rifas, as lojas com sardinhas:
abro um livro para fechá-lo,
não me sobressalte a meio de um verso
o som do telefone;
atava à esquerda
o cachecol sobre a gabardina
desproporcionalmente clara:
ponho um disco, embora baixo,
e olho com prazer o aparelho
mudo sobre o tapete;
gostava de passar a noite em comboios,
apanhar aviões, camionetas
para qualquer lado:
no meu caderno anoto uma data mais,
outro dia, outro mês, outro ano,
eu estou sempre aqui.
 
 
 
josé ángel cilleruelo
o dom impuro
antologia
trad. joaquim manuel magalhães
averno

2004




19 novembro 2020

eduardo pitta / vejo-os chegar à velocidade

 
 
Vejo-os chegar à velocidade
da erva
inquietos mais que desolados.
 
Vêm mudos, sujos
quase sempre, periféricos
a qualquer melancolia.
 
O campo, a cidade
e mesmo as gentes
lhes são estrangeiras.
 
 
 
eduardo pitta
olhos calcinados
desobediência
poemas escolhidos
dom quixote
2011

 




18 novembro 2020

jorge velhote / fria é a água na escuridão

 
 
.2.
 
Eras sem destino como o vento.
 
Ou os pássaros exactamente.
 
Sob o abismo do silêncio a imensidão
 
das sombras é como estrume.
 
Ou a pureza dos pastores.
 
Diante da chuva o medo cresce
 
como o bosque inacessível.
 
Mais tarde, destinaste à morte
 
um relâmpago de tristeza.
 
E a serenidade das sementes.
 
 
 
jorge velhote
âmago
edições sem nome
2018