13 novembro 2020

isabel meyreles / o livro do tigre

 
 
                       V I
 
Do outro lado do sonho
a memória tem olhos facetados
(mil imagens de ti por segundo)
e a raiz quadrada do coração
não é aquela que julgas.
Do outro lado do sonho
as verdades levam uns chapeuzinhos verdes
muito engraçados e baloiçam-se
nas agulhas do relógio de Deus.
Do outro lado do sonho
o tempo é uma centopeia sem cabeça
que caminha sobre um espelho invertido
e a morte uma figurinha em maçapão
vestida com um poncho peruano.
Do lado de cá do sonho
a Fénix alisa as penas
e ri estupidamente.
 
 
 
isabel meyreles
poesia
o livro do tigre 1976
tradução de isabel meyreles
quasi
2004




 

12 novembro 2020

yvette k. centeno / caminho

 
 
devagar cortei-te o pulso
 
percorri esse caminho
dentro das tuas veias
 
enquanto o sangue saía
abria portas de entrada
 
eu avançava ao contrário
dentro de ti me perdia
 
o amor não era mais nada
 
 
 
yvette k. centeno
perto da terra
entre silêncios
poesia 1961-2018
glaciar
2019

 



11 novembro 2020

r. lino / nove instantâneos do sul

 
 
.terceiro.
 
nada se assemelha ao encontro do calor
que a brisa leva abrigado pelo fresco.
 
esta planície, as vestes
gestos vagos de cheiroso sândalo,
 
encontros preparados para a noite
lutas, pérolas e coragem:
 
três lâminas
aguçadas de surpresa.
 
 
 
r. lino
nove instantâneos do sul
políptico
companhia das ilhas
2016

 




10 novembro 2020

fiama hasse pais brandão / canto da chávena de chá

 
 
Poisamos as mãos junto da chávena
sem saber que a porcelana e o osso
são formas próximas da mesma substância.
A minha mão e a chávena nacarada
– se eu temperar o lirismo com a ironia –
são, ainda, familiares dos pterossáurios.
A tranquila tarde enche as vidraças.
A água escorre da bica com ruído,
os melros espiam-me na latada seca.
É assim que muitas vezes o chá evoca:
a minha mão de pedra, tarde serena,
olhar dos melros, som leve da bica.
A Natureza copia esta pintura
do fim de tarde que para mim pintei,
retribui-me os poemas que eu lhe fiz
de novo dando-me os meus versos ao vivo.
Como se eu merecesse esta paisagem
a Natureza dá-me o que lhe dei.
No entanto algures, num poema, ouvi
rodarem as roldanas do cenário,
em que as palavras representavam
a cena da pintura da paisagem
num telão constantemente vário.
Só o chá me traz a minha tarde,
com a chávena e a minha mão que são
o mesmo pedaço de calcário.
Hoje a bica refresca a água do tanque,
os melros descem da latada para o chão,
e as vidraças devagar escurecem.
As palavras movem-se e repõem
no seu imóvel eixo de rotação
o espaço onde esta mesa se verga
gira nas grandes nebulosas.
 
15/11/93
 
 
fiama hasse pais brandão
cantos do canto
relógio d´água
1995





09 novembro 2020

sophia de mello breyner andresen / estrada

 
 
Passo muito depressa no país de Caeiro
Pelas rectas da estrada como se voasse
Mas cada coisa surge nomeada
Clara e nítida
Como se a mão do instante a recortasse.
 
 
 
sophia de mello breyner andresen
dual
caminho
2004

 






08 novembro 2020

alexandre o'neill / mesa dos sonhos

 
 
Ao lado do homem vou crescendo
 
Defendo-me da morte quando dou
Meu corpo ao seu desejo violento
E lhe devoro o corpo lentamente
 
Mesa dos sonhos no meu corpo vivem
Todas as formas e começam
Todas as vidas
 
Ao lado do homem vou crescendo
 
E defendo-me da morte povoando
De novos sonhos a vida.
 

 
alexandre o´neill
no reino da dinamarca 1958
poesias completas
assírio & alvim
2000

 



07 novembro 2020

adília lopes / kabale und liebe

 
 
Marianna suspeita que
não é por cansaço dos carteiros
nos C.T.T. há funcionários
incumbidos
de lhe abrir as cartas
com facas muito finas
e de as substituir por fakes
humilhantes para ela
e para o marquês
ô les insondables mystéres
de la poste!
e Marianna vê esta frase
que escreveu
já subrepticiamente num postal
desfigurada
por dedos peritos na Mal
dade (como os do Dr. Mabuse)
oh lez inssondiable Mjzthère
de La Pozte &
nada é tão humilhante como um erro
de ortografia
 
Mas não
uma vez um carteiro
inexperiente
deixou cair uma carta
perto duma sarjeta parisiense
e a carta de Marianna
envelheceu ao lado de uma folha
caída
com a água das ruas de Pari
com o lixo das ruas de Paris
deito-me para pensar em si
como para ouvir Bach
preciso de me deitar
não sei porquê
é tão forte o que me dá
et l’eau coule encore
 
 
 
 
adilia lopes
caras baratas
antologia
relógio d´água
2004





06 novembro 2020

daniel faria / para o instrumento difícil do silêncio

 
 
3
 
Porque a morte tem o seu tempo
A ruína soma ruína, à cabeça
Equilibra a existência desmoronada e inteira.
Tu és o que edifica
Tu constróis mil vezes.
Porque o raio tem o seu tempo.
És o clarão, a lâmpada, a estrela
Somas luz à luz.
Não és a luz, és mais que a luz
Porque a noite tem o seu tempo.
 
 
 
daniel faria
poesia
quasi
2003




 

05 novembro 2020

harold pinter / poema

 
 
beijavam-se voltei-me abriram bem abertos
os olhos voltados cegamente para mim
vi que aqui onde nos juntávamos
a luz que caía sobre nós queimava
tão vivamente as trevas que partilhávamos
enquanto eles com olhos cegos voltados para mim se voltavam
e eu o seu beijo cego formei
 

                                                                                    1971
 

harold pinter
várias vozes
tradução jorge silva melo e francisco frazão
quasi
2006

 





04 novembro 2020

philip larkin / sexta à noite no hotel royal station

 
 
A luz desce e alastra obscuramente lá do alto
Dos cachos de luzes por sobre cadeiras vazias
De frente umas para as outras, em tons variados.
Pelas portas abertas, a sala de jantar afirma
Uma solidão mais vasta, de facas e copos
E silêncio assente como alcatifa. Um criado lê
Um vespertino que ficou. Passam as horas
E os vendedores já voltaram todos para Leeds,
Deixando cinzeiros atulhados na Sala de Congressos.
 
Nos corredores sem sapatos, ardem as luzes. Como
Fica isolado, que nem uma fortaleza –
O papel timbrado, feito para enviar para casa
(Se isso existisse) cartas de exílio: Agora
Avança a noite. Em ondas para lá das aldeias.
 
 
 
philip larkin
janelas altas
trad. rui carvalho homem
cotovia
2004

 





03 novembro 2020

aldo palazzeschi / novembro

 
 
Jovens e velhos
agrupam-se
entre as quentes ruínas de Roma,
e sobre elas os plátanos deixam cair
ao som do papel
as suas folhas douradas.
Os jovens falam aos velhos
das coisas que gostam,
e os velhos fazem de conta que nada ouvem.
 
 
 
aldo palazzeschi
um pouco do meu sangue
antologia de poesia italiana
trad. joão coles
contracapa
2020

 

02 novembro 2020

jorge luís borges / o instante

 
 
Onde os séculos, onde o sonho estranho
Das espadas que os tártaros sonharam?
Onde as fortes muralhas que arrasaram,
Onde a Árvore de Adão e o cutro Lenho?
Está só o presente. E a memória
Erige o tempo. Sucessão e engano
É a rotina do relógio. O ano
Nunca é menos vão que a vã história.
Entre a alva e a noite há um abismo
De agonias, de luzes, de cuidados;
O rosto que se fita nos cansados
Espelhos nocturnais não é o mesmo.
O hoje fugidio e ténue é eterno;
Não esperes outro Céu, ou outro Inferno.
 
 
 
jorge luís borges
trad. josé bento
hífen 5 março
cadernos semestrais de poesia
tradução
1990




01 novembro 2020

adolfo luxúria canibal / 1.º de novembro

 
 
Um traço um berço
Dois destinos que se cruzam na lonjura da distância
Erva fálica pelo caminho
 
Distúrbios subúrbios
Automóveis ferrugentos desenhando o horizonte
Os paralelos asfixiam a alma
 
Solidão saudade
Romagens romaria aos queridos defuntos
Carcaças abandonadas ao passado
 
Lágrimas fábricas
Tempo invernoso sublinhando a ausência
A música ouve-se triste
 
Solidão! Saudade! Romagens! Romarias!
Solidão! Saudade! Queridos! Defuntos!
 
 
 
adolfo luxúria canibal
no rasto dos duendes eléctricos
(poesia 1978-2018)
cancioneiro 1984-1985
porto editora
2019