18 junho 2020

pedro loureiro / eu juro que não escolhi isto



Eu juro que não escolhi isto
esforcei-me por escapar
pelo friso do cordão umbilical
mas logo me colocaste o ébrio guizo
e este tinido incessante
calcifica tudo
até à transmutação da gola em redondel
portas chapeadas que cercam
o lusitano em corrida
a sacudir hipóteses e argumentos da crina
sempre em revolteio
é tão difícil ter-me de quatro
a mão que na superfície de uma janela toca o mundo
já recebeu a Grã Ordem de Marcha
e as mais altas condecorações
pela bravura do estupro
por isso, não
não me prometas nada
antes que o galo cante
negar-me-às n vezes



pedro loureiro
that´s all folks
editora urutau
2018





17 junho 2020

antónio sá / lugares na terra



Não há corredores nesta parte
da terra e nenhuma outra coisa
parece necessária.

Nem parede completa
ou quaisquer outras casas.
Um som contínuo
enche-a de bem-estar

e isso depende
de haver atmosfera
e nada ser próprio.

A mão toca os dedos, encerra-se no seu círculo.
Existe quase
um sentido de paixão no centro.


antónio sá
hífen 2 abr/ set 88
cadernos semestrais de poesia
1988







16 junho 2020

valter hugo mãe / os pobres vinham aos portões



os pobres vinham aos portões
deus mandava que lhes entregássemos
restos e laranjas mesmo que amargas

bocas de pobre
sabores de cão



valter hugo mãe
publicação da mortalidade
poesia reunida
segundo livro, primeira parte
mais bíblicos do que nunca
assírio & alvim
2018









15 junho 2020

mia couto / tristeza



A minha tristeza
não é a do lavrador sem terra.

A minha tristeza
é a do astrónomo cego.



mia couto
tradutor de chuvas
caminho
2013













14 junho 2020

camilo pessanha / soneto de gelo



Ingénuo sonhador – as crenças d´oiro
Não as vás derruir, deixa o destino
Levar-te no teu berço de bambino,
Porque podes perder esse tesoiro.

Tens na crença um farol. Nem o procuras,
Mas bem o vês luzir sobre o infinito!...
E o homem que pensou, - foi um precito,
Buscando a luz em vão – sempre às escuras.

Eu mesmo quero a fé, e não a tenho…
– Um resto de batel – quisera um lenho,
Para não afundir na treva imensa,

O Deus, o mesmo Deus que te fez crente…
Nem saibas que esse Deus omnipotente
Foi quem arrebatou a minha crença.


camilo pessanha
clepsidra
1920







13 junho 2020

natália correia / marcelo é bom bailarino



É entrar, venham ver a maravilha
das variedades na feira marcelina!
e entre atracções à escolha a que mais brilha
é de Marcelo a fúria bailarina.

Do tango ao rock do chá-chá-chá ao samba,
dançando a valsa como quem flores pisa,
baila Marcelo até na corda bamba
e os alunos de Apolo inferioriza.

Topa, enfim, de cavaco o mafarrico
no dernier cri da dança uma golpada:
rebolar-se no novo sassarico
para no partido acabar tudo à lambada.



natália correia
cancioneiro joco-marcelino
antologia poética
dom quixote
2018






12 junho 2020

ana hatherly / 463 tisanas


391

Tenho épocas em que sonho muito. Uma vez sonhei que estando de visita a uma casa desconhecida sou assaltada por um enxame de pequeninas moscas pretas que me cobrem o rosto. Para me livrar delas pego num frasco de álcool e chego-o aos olhos. Todas as mosquinhas caem lá dentro. Então o álcool torna-se um líquido leitoso cheio de pintas pretas. Aos poucos nessa massa turva surgem formas geométricas: cubos, esferas, pirâmides, cilindros, tudo símbolos de uma ignorada escrita. São lindas. Encantada quero mostrá-las a toda a gente. Acordando, escrevo isso no meu caderno de apontamentos.



ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006












11 junho 2020

jorge de sena / ode para o futuro


Falareis de nós como de um sonho.
Crepúsculo dourado. Frases calmas.
Gestos vagarosos. Música suave.
Pensamento arguto. Subtis sorrisos.
Paisagens deslizando na distância.
Éramos livres. Falávamos, sabíamos,
e amávamos serena e docemente.

Uma angústia delida, melancólica,
sobre ela sonhareis.

E as tempestades, as desordens, gritos,
violência, escárnio, confusão odienta,
primaveras morrendo ignoradas
nas encostas vizinhas, as prisões,
as mortes, o amor vendido,
as lágrimas e as lutas,
o desespero da vida que nos roubam
- apenas uma angústia melancólica,
sobre a qual sonhareis a idade de oiro.

E, em segredo, saudosos, enlevados,
falareis de nós - de nós! - como de um sonho.



jorge de sena
pedra filosofal (1950)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972






10 junho 2020

josé de almada negreiros / histoire du portugal par coeur


Mosteiro de Santa Maria da vitória, 1920

A MEU irmão António
de CAVALARIA 4

Na Cova da Batalha ficou dita um dia para semprea Vontade de Portugal.
As torres da Vontade de Portugal vêm desde o fundo da Cova, direitas, até ficarem mais altas do que os montes em redor.
– Foi a Fé d’O POVO-MAIS-PEQUENO que encheu de confiança uma Cova vazia na terra Portuguesa!





A HISTOIRE DU PORTUGAL PAR COEUR foi escrita para ser espalhada por todas as partes, depois de julgada por todos os Portugueses.
Está em francês, porque foi assim que ensinei aos estrangeiros a Raça onde nasci.
Sejam quais forem os Portugueses, todos podem julgar a minha HISTOIRE DUPORTUGAL PAR COEUR. E se houver entre Portugueses quem não tenha uma iniciação literária, tanto melhor, para poder julgar o que eu quis escrever por Nós todos.
Mas, inesperadamente, (porque os Portugueses nunca se denunciam na maneira de melhor servir a sua terra), dois Portugueses acabam de provar que eles serão o melhor júri do valor nacional da minha HISTOIRE DU PORTUGAL PAR COEUR.
Esses dois Portugueses chamam-se Gago Coutinho e Sacadura Cabral.
A eles dois venho pedir para que me digam se a minha HISTOIRE DU PORTUGAL PAR COEUR deve ser, na verdade, espalhada por todas as partes ou rasgada para sempre, comigo próprio.
Aguardo de joelhos a sua resposta, com a HISTOIRE DU PORTUGAL PAR COEUR sobre o meu peito, onde guardo quotidianamente a ambição que não cedo a ninguém – de querer ser eu o melhor de todos os Portugueses!

Lisboa – Abril 1922






TEJO, lombada do meu poema aberto
em páginas
de Sol

Le Portugal se trouve là-bas, dans un endroit
du Sud-Ouest de l’Europe le plus éloigné
de Paris.

Le Portugal est le dernier coeur Européen
avant la Mer.

Nous avons notre Soleil National Portugais
qui fait grandir les pastèques et qui rend les
femmes belles comme des pommes et les hom-
mes durs comme des mâts.

Nous avons tous les fleuves dont nous avions
besoin. Le Tage en est leplus grand : il est
né en Espagne, comme d’autres, mais i1 n’a
pas voulu y rester.

Nous avons aussi des petits chevaux d’ancien-
ne race méridionale, tâchetés comme des va-
ches et qui n’ont jamais eu de pareil. Ils se
promènent après le diner, tout fièrs d’être
Portugais.

Nous avons aussi des vendeuses de poissons
qui vont dans les rues comme les bateaux sur Mer.
– Elles ont le goût du sel. Dans leur pan-
niers elles portent la Mer.
Elles se marient avec les pêcheurs qui ont
des têtes d’Océan et pantalonas bleu-marin.
(Au bout d’une dizaine d’années cela fait une
dizaine de petits matelots tout neufs!)

Le dimanche on va déjeuner sur l’herbe pour
voir notre Soleil National Portugais faire gran-
dir les pastèques au tour de petites maisons
blanchies où l’on fait encore des Portugais.
Les femmes du Portugal sont les seules qui
sachent faire des Portugais!

Le Dimanche on cherche une Marie pour se
marier. Tous les mariages commencent par
un Dimanche!

Moi aussi, j’aime une Maria! Je voudrais bien
que ce soit la Mienne: jetrouve qu’Elle est la
plus jolie et Elle crois que je suis le plus intel-
ligent!
Nous nous marierons, tout le monde le dit!


TEJO, lombada do meu poema aberto
em páginas
de Sol



Notre premier Roi fut un géant. On dit que,
de ce fait, il fut Roi

Dans une guerre contre les sarrasins, notre
1er Roi perdit tous ses soldats. Il resta seule
en combat contre les sarrasins.
Notre-Seigneur Jésus-Christ vint à son aide
et tous deux ont gagné la guerre contre tous
les sarrasins.
Ceci est raconté en héraldique par le drapeau
Portugais.
Au moyen-âge, où l’on a beaucoup pensé, le Roi Jean Premier, dit celui de Bonne Renommée, s’est marié (avec le consentement du peuple Portugais) à une très jolie dame Anglaise laquelle accoucha 4 des plus grands Portugais:
Un SAINT, un ROl, un HÉROS et un SAGE.
Celui-ci fut grand mathématicien. Il fit dela mathématique dans un temps où il failait encore inventer de la mathématique.
Il choisit un endroit dans le midi du Portugal, tout contre la Mer – pour déchiffrer la Mer! C’est là l’endroit du Portugal le plus éloigné de Paris!
Et tout ceci se passait dans un temps où laMer avait de terribles serpents dans la tête des marins.
Ce sage prince dessinait jour et nuit le mappemond. Quand ce fut fait, il fit bâtir des vaisseaux et des vaisseaux, pour qu’ils allassent répéter sur Mer les lignes au crayon qu’il avait tracées sur son mappemond.
Les vaisseaux sont partis, et quand les vaisseaux revinrent, les lignes au crayon que le Sage avait tracées sur son mappemond, étaient exactement vraies! elles avaient été parfaitement bien imaginées!
Depuis ce jour, l’Europe commença à devenir bien plus grande que sur la carte.

Un autre Portugais fait, le premier, le tour
du monde, tout comme l’oeil fait de rond le
l’orange.

Sur terre aussi, nous avons été três grands.
Guillaume Apollinaire connut un Portugais,
D. Pedro d’Alfarrobeira qui est revenu de son
7ème voyage.
«Avec ses quatre dromadaires courut le
monde et l’admira. Il fit ce que je voulais
faire si j’avait quatre dromadaires»,
dit Guillaume Apollinaire sur ce Portugais-là.

Un jour, Dom Sebastião, notre Roi le plus
jeune, notre plus beau Roi, rassembla toute
la jeunesse Portugaise pour accomplir la
grande Victoire.
Mais Dieu garda cette Victoire, en atten-
dant... en attendant demain... en attendant
toujours demain…
…Nous attendant, nous autres, les Por-
tugais d’aujourd’hui!


Paris, 7 Avril 1919.


--- * ---



TEJO, lombada do meu poema aberto
em páginas
de Sol


Portugal situa-se lá em baixo, no lugar
do Sudoeste da Europa mais afastado de
Paris.

Portugal é o último coração Europeu
antes do Mar.

Nós temos o nosso Sol Nacional Português
que faz crescer as melancias e torna as
mulheres belas como maçãs e os ho-
mens duros como mastros.

Temos todos os rios de que
precisávamos. O Tejo é o maior: nasceu
em Espanha, como outros, mas
não quis lá ficar.

Temos também pequenos cavalos da antiga
raça meridional, manchados como vacas
e que nunca tiveram igual. Passeiam-se
depois do jantar, orgulhosos de serem
portugueses.

Também temos vendedoras de peixe
que vão pelas ruas como os barcos no Mar.
– Elas sabem a sal. Nos seus cestos
transportam o Mar. Casam-se com pescadores que têm
cabeças de Oceano e calças azul-marinho.
(Ao fim de uma dezena de anos o resultado
é uma dezena de pequenos marinheiros novinhos em folha!)

Ao domingo vai-se almoçar ao campo
para ver o nosso Sol Nacional Português fazer crescer
as melancias à volta de casinhas
pintadas de branco onde ainda se fazem portugueses.
As mulheres de Portugal são as únicas que
sabem fazer Portugueses!

Ao Domingo procura-se uma Maria para
casar. Todos os casamentos começam
por um Domingo!

Eu também gosto de uma Maria! Gostaria muito
que fosse a Minha: acho que Ela é
a mais bonita de todas e Ela acha que eu sou
o mais inteligente!
Havemos de nos casar, toda a gente o diz!


TEJO, lombada do meu poema aberto
em páginas
de Sol



O nosso primeiro Rei foi um gigante. Dizem que,
por isso mesmo, foi Rei.

Numa guerra contra os sarracenos, o nosso
1º Rei perdeu todos os seus soldados. E ficou sozinho
a combater contra os sarracenos.
Nosso Senhor Jesus Cristo veio em seu auxílio
e os dois ganharam a guerra contra os sarracenos.
Esta história é contada em heráldica pela bandeira
Portuguesa.

Na idade-média, onde se pensou muito, o Rei João Primeiro, chamado o da Boa Memória, casou-se (com o consentimento do povo Português) com uma bonita dama Inglesa a qual deu à luz 4 dos maiores Portugueses:
Um SANTO, um REI, um HERÓI e um SÁBIO.
Este último foi um grande matemático. Ele fez matemática num tempo em que faltava ainda inventar a matemática. Escolheu um lugar no sul de Portugal, juntinho ao Mar – para desvendar o Mar! É esse o lugar de Portugal mais distante de Paris! E tudo isto se passava num tempo em que o Mar tinha terríveis serpentes na cabeça dos marinheiros. Este príncipe sábio desenhava dia e noite o mapa-mundo. Quando acabou, fez construir barcos e barcos, para irem repetir no Mar as linhas a lápis que ele tinha traçado no mapa-mundo. Os barcos partiram, e quando os barcos voltaram, as linhas a lápis que o Sábio tinha traçado no mapa-mundo eram exactamente verdadeiras! tinham sido perfeitamente bem imaginadas! Desde esse dia, a Europa começou a tornar-se bem maior do que no mapa.
Um outro Português foi o primeiro a fazer a volta ao mundo, assim como o olho faz a volta à laranja.

Em terra também fomos grandes.
Guillaume Apollinaire conheceu um Português,
Dom Pedro d’ Alfarrobeira que voltou da sua 7ª viagem:
«Com seus quatro dromedários correu
o mundo e o admirou. Fez o que eu fazer gostava
se tivesse quatro dromedários»,
diz Guillaume Apollinaire sobre esse Português.

Um dia, Dom Sebastião, o nosso Rei mais novo,
o nosso mais belo Rei, reuniu toda a juventude
Portuguesa para levar a cabo a grande Vitória.
Mas Deus guardou essa Vitória, à espera…
à espera de amanhã…  sempre à espera de amanhã…
… Esperando-nos, a nós, aos Portugueses de Hoje.

Paris, 7 de Abril de 1919



josé de almada negreiros
poesia
estampa
1971


(a tradução é a de Graça Vieira Lopes)








09 junho 2020

egito gonçalves / o vagabundo decepado


2)

Assim eu vou cantando o que o acaso me entrega,
buscando no amor um supremo refúgio
contra as raivas, traições, desesperanças diárias,
angústias, calúnias, ódios de escorpiões…
assim me vou revoltando contra o medo. Assim eu
                                                                  [forjo
o fundo falso em que envio notícias do bloqueio,
o martelo que às vezes quebra a carapaça do silêncio.
Assim resisto e duro.



egito gonçalves
o amor desagua em delta
editorial inova
1971






08 junho 2020

edgar lee masters / john hancock otis



No que diz respeito à democracia, concidadãos,
não estareis dispostos a reconhecer
que eu, apesar de ter nascido num solar e ter herdado uma fortuna,
não tinha quem rivalizasse comigo em Spoon River
no apego à causa da liberdade?
Ao passo que o meu contemporâneo, Anthony Findlay,
que nasceu num casebre e que começou a vida
como carregador de água para os trabalhadores ferroviários,
ascendendo com o tempo a trabalhador ferroviário
e depois a capataz, até chegar ao posto
de superintendente dos caminhos-de-ferro
e morar em Chicago,
que era um autêntico negreiro,
que ameaçava os trabalhadores
e detestava ferozmente a democracia.
Por isso te digo, Spoon River,
e a ti também, ó república,
cuidado com o homem que sobe ao poder
pela corda da pobreza.



edgar lee masters
spoon river
tradução josé miguel silva
relógio d´água
2003