19 novembro 2019

rui caeiro / vestes-te como quem tapa um segredo



Vestes-te como quem tapa um segredo
e desces a escada, para a despedida
não há palavras, ou não sobraram
Contigo, escada abaixo, vão adeuses
por dizer, ternura envergonhada, mudos
agradecimentos e ainda alguns restos
de humores trocados no entre-pernas
O que tu digas ou eu diga pouco importa
Que os corpos se lembrem – isso é tudo
Que tenham esquecido ou venham
a esquecer – tudo é também


rui caeiro
o quarto azul e outros poemas
o sangue a ranger nas curvas apertadas do coração
maldoror
2019






18 novembro 2019

nicolau saião / poemas desenhados




2. GIORGIO MORANDI

Ondas de sangue adormecem
solitárias, nocturnas, imprecisas

As veias são assim, na tela clara
das naturezas mortas

As tuas mãos, pausadamente
contam o tempo
da gestação dos frutos
e desvendam-nos coisas nos sentidos

Uma aqui, outra ali

E depois nós olhamos
a árvore, a catedral, o rio imóvel

O corpo e a maçã erguem melhor
o firmamento, a luz sobre as cadeiras
– são o retrato
das diferentes imagens invisíveis
animais, vegetais e minerais

Um ruído lá fora

Um pequeno barulho pouco a pouco desfeito.




nicolau saião
apeadeiro
revista de atitudes literárias
n.º 2 primavera de 2002
quasi
2002





17 novembro 2019

fernando pessoa / a aranha do meu destino




A aranha do meu destino
Faz teias de eu não pensar.
Não soube o que era em menino,
Sou adulto sem o achar.
É que a teia, de espalhada
Apanhou-me o querer ir...
Sou uma vida baloiçada
Na consciência de existir
A aranha da minha sorte
Faz teia de muro a muro...
Sou presa do meu suporte.

10-8-1932



fernando pessoa
poesias inéditas (1930-1935)
ática
1955







16 novembro 2019

augusto meneghin / aurora consurgens







veja bem    como poderemos
desafogar o mercúrio    Antonio
se tudo o que temos
são apenas trapos fervidos?
e este vinho
fermentado em plena sexta-feira
poderá por acaso
extrair de nossa loucura
uma lucidez estóica?
os ciganos se vão    Antonio
    as caravanas
o amargo da nectarina velha
até mesmo aquele velho romance
que relemos tantas vezes
por não termos mais que um livro
e um vidro de azeitonas.

o calendário na porta
uma mandrágora seca
para espantar os espíritos
e impedir que as crianças
morram todas
de uma disenteria industrial.
    aqui neva
mas nunca tivemos gelo
ou sequer um recinto
com os mantimentos que duram
    você fuma demais
e bebe exageradamente
:
deve ser por isso que neva
mas nunca tivemos gelo

foi algum conquistador
que esqueceu seu canhão
no deserto em que moramos
e agora as crianças brincam
enfurecendo o espírito ruivo
de um bucaneiro qualquer
    veja como pulam sobre a boca
e testam o eco
sem medo de serem mutiladas
    quando eu crescer serei como elas
só que mais velha
e sem canhão
serei mais negra também
guardando em cada bolso
uma esperança e uma estrela
(não importa a ordem)

parece um sonho    Antonio
este lugar que moramos
e você fazendo amor
:
o vento que abre
tanto as pernas
quanto os demônios que você me ensinou
    agora tenho mais demônios
do que quando casamos.
    naquela época eu apenas sabia
que a primeira vez iria doer
o resto aprendi tudo sozinha
por isso neva
e nunca tivemos gelo
apenas o barulho das crianças
e o canhão enferrujado

veja lá
se encontram um tabuleiro de xadrez
    meu bisavô dizia
que o jogo de xadrez
explicaria a vida
se ele soubesse jogar
por isso o enterrou bem longe
na esperança que seu segredo
não fosse achado por ninguém
    morreu sabendo apenas
que o peão andava para frente
e era peça
pouco importante

o sol é longe        Antonio?
pensam que somos pobres
porque somos ignorantes
    eles não sabem
que você é alquimista
e que faremos ouro
com o parafuso da fábrica

já está noite.
não quero fazer amor



augusto meneghin
o mar sem nós
editora urutau
2019






15 novembro 2019

adonis / seis notas do lado do vento




4

                A poesia, nos nossos dias, expõe-se a um perigo que não vem dela, mas da palavra que se lhe refere. Ela é ofuscada por essa palavra. O leitor já não lê o poema, lê o poeta, as suas referências, as suas inclinações. Lê o que lhe declaram do poeta e da poesia. O poeta tornou-se para o crítico um meio de afirmar as suas opções, de expor as suas teorias, não de dar acesso ao poema enquanto tal. Trata-se aqui de uma crítica que decifra a poesia por intermédio do mundo. A verdadeira crítica é o seu oposto, desvenda o mundo através da poesia. Acede às energias da própria língua sem outro instrumento que não seja só a poesia.


adonis
arco-íris do instante
antologia poética
tradução de nuno júdice
dom quixote
2016





14 novembro 2019

paul strand / elegia pelo meu pai



1 -  O CORPO VAZIO

As mãos eram tuas, os braços eram teus,
Mas tu não estavas lá.
Os olhos eram teus, mas estavam fechados e não iriam abrir.
O sol distante estava lá.
A lua envenenada no ombro branco da colina estava lá.
O vento em Belford Basin estava lá.
A luz verde pálida do inverno estava lá.
A tua boca estava lá,
Mas tu não estavas lá.
Quando alguém falava, não havia resposta.
Nuvens desciam
E enterravam os prédios pela água,
E a água estava silenciosa.
As gaivotas olhavam.
Os anos, as horas, que não te iriam encontrar,
giravam nos pulsos de outros.
Não havia dor. Tinha partido.
Não havia segredos. Não havia nada para dizer.
A sombra espalhara as suas cinzas.
O corpo era teu, mas tu não estavas lá.
O ar tremia contra a sua pele.
O escuro inclinou-se para os seus olhos.
Mas tu não estavas lá.




paul strand
apeadeiro
revista de atitudes literárias
nr. 2 primavera 2002
tradução josé luís peixoto
edições quasi
2002




13 novembro 2019

josé luis puerto / fecha



Fecha os olhos como se a morte
Viesse hoje buscar-te
E fecha a memória da luz
Para a levar com a tua obscuridade,
Nela está a forma das coisas,
A sorte, a ilusão dos sentidos,
O vaivém da temporalidade.
Leva contigo tudo
Nesse encerrar sobre ti
Que és fusão com o nada;
Há uma viagem de que não sabemos
Nem em que consiste
                                         nem se nos liberta
Deste desassossego de estar vivos
Pendentes da morte
Com a ameaça eterna do nada.
Fecha os olhos como se a vida
Tivesse sido uma ficção, um sonho
E vai-te retirando,
E vai-te despojando da matéria,
De dor, de consciência, de sentidos,
Dos restos amargos do amor,
E vai-te acostumando a não ser nada,
Nada, nada, tanto nada
Como se nunca tivesses
Do ser formado parte.
Esta é a suprema renúncia,
A maior que te falta cumprir.




josé luis puerto
trad. jorge melícias
apeadeiro
revista de atitudes literárias
n.º 2 primavera de 2002
quasi
2002






12 novembro 2019

josé carlos ary dos santos / pavana para uma burguesa defunta



A cabeça de vaca da minha tia mais velha
repousa em guerra lenta no cemitério maior.
Rói-lhe o bicho das contas a fímbria da orelha.
Rói-lhe o rato da raiva as narinas sem cor.

Repousa em paz Raposa que na toca
fareja a galinhola e o fricassé.
Já não mija mas cheira
já não vive mas ousa
ser a santa que foi  ser o estrume que é.

A cabeça de vaca de minha tia refoga
nas lágrimas burguesas da família enlatada
cozinha-lhe a memória um viúvo de toga
descasca-lhe a cebola uma filha frustrada.

A cabeça de vaca de minha tia meneia
o sim-sim i não-não dos outros semivivos
na família a razão de se morrer a meias
é a exalação dos suspiros cativos.

Se não fosse o desgosto  se não fosse a gordura
o retrato na sala  o buraco no ventre
se não fosse de força tinha feito a escritura
nem sequer houve tempo para o oiro dos dentes.

Minha tia mastiga  minha tia castiga
na saleta do inferno as almas dos criados:
– não me limpaste o pó  a campa tem urtigas
atrasaste o jantar dos condenados.

A cabeça de vaca de minha tia sem nome
coze no fogo brando do que é passar à história.
Dissolve-se na boca  resolve-se na fome
Do senhor que a devora em sua santa glória.




ary dos santos
vinte anos de poesia
insofrimento in sofrimento, 1969
círculo de leitores
1983






11 novembro 2019

nuno júdice / elegia



Demora-se o outono numa eclosão de frutos
secos: as taças onde puseste as mãos, sem
esperar que a chuva te molhasse os cabelos.
Ao fim da tarde, quando já parece noite,
as nuvens distraem-se com a falta de vento.
Esperam que lhes fales, como se as palavras
pudessem atravessar os limites da treva.
Ainda paras; e olhas para trás, onde os arbustos
te esperam numa hesitação de folhas. Depois
retomas o caminho. Deixo de te ver. É inverno.




nuno júdice
a fonte da vida
quetzal
1997








10 novembro 2019

alexander search / entrevista com alberto caeiro



Entre as muitas sensações de arte que devo a esta cidade de Vigo, sou-lhe grato pelo encontro que aqui acabo de ter com o nosso mais recente, e sem dúvida o mais original, dos nossos poetas.

Mão amiga me havia mandado desde Portugal, para suavização talvez, do meu exílio, o livro de Alb[erto] Caeiro. Li-o aqui, a esta janela, como ele o quereria, tendo diante dos meus olhos extasiados o (...) da baía de Vigo. E não posso ter senão por providencial que um acaso feliz me proporcionasse, tão cedo empós a leitura, travar conhecimento com o poeta glorioso.

Apresentou-nos um amigo comum. E à noite, ao jantar, na sala (...) do Hotel (...), eu tive com o poeta esta conversa, que eu ansiei poder converter-se em entrevista.

Eu dissera-lhe da minha admiração perante a sua obra. Ele escutára-me como quem recebe o que lhe é devido, com aquele orgulho espantoso e fresco que é um dos maiores atractivos do homem, por quem, de supor é, lhe reconheça o direito a ele. E ninguém mais do que eu lho reconhece. Extraordinariamente lho reconhece.

Sobre o café a conversa pôde intelectualizar-se por completo. Consegui levá-la, sem custo, para um único ponto, o que me interessava, o livro de Caeiro. Pude ouvir-lhe as opiniões que transcrevo, e que, não sendo, claro é, toda a conversa, muito representam, contudo, do que se disse.

O poeta fala de si e da sua obra com uma espécie de religiosidade e de natural elevação que, talvez, noutros com menos direitos a falar assim, parecessem francamente insuportáveis. Fala sempre com frases objectivas, excessivamente sintéticas, censurando ou admirando (raro admira, porém) com absolutismo, despoticamente, como se não estivesse dando uma opinião, mas dizendo a verdade intangível.

Creio que foi pela altura em que lhe disse da minha desorientação primitiva em face da novidade do seu livro que a conversa tomou aquele aspecto que mais me apraz transcrever aqui.

O amigo que me enviou o seu livro disse-me que ele era renascente, isto é, filiado na corrente da R[enascença] P[ortuguesa] mas eu não creio...
- E faz muito bem. Se há gente que seja indigna [?] da minha obra é essa.
O seu amigo insultou-me sem me conhecer comparando-me a essa gente. Eles
são místicos. Eu o menos que sou é místico. Que há entre mim e eles? Nem
o sermos poetas, porque eles o não são. Quando leio Pascoaes farto-me de rir.
Nunca fui capaz de ler uma coisa dele até ao fim. Um homem que descobre
sentidos ocultos nas pedras, sentimentos humanos nas árvores, que faz gente dos montes e das madrugadas (...)É como um idiota belga dum Verharen, que um amigo meu, com quem fiquei mal por isso, me quis ler. Esse então é inacreditável.
- A essa corrente pertence, penso, a Or[ação] à L[uz] de Junqueiro.
- Nem poderia deixar de ser. Basta ser tão má. O Junqueiro não é um poeta. É um [...] de frases. Tudo nele é ritmo e métrica. A sua religiosidade é uma coisa. A sua admiração da natureza é outra coisa. Pode alguém tomar a sério um tipo que diz que é (...) da luz misteriosa juntinho ao altar de Deus. Isto não quer dizer nada. É com coisas que não querem dizer nada, excessivamente nada, que as pessoas têm feito obra até agora. É preciso acabar com isso.
- E João de Barros?
- Qual? O contemporâneo... A personagem não me interessa. Detesto-a, como o futuro e o destino. A única coisa boa que há em qualquer pessoa é o que ela não sabe.

s.d.


fernando pessoa
pessoa por conhecer - textos para um novo mapa
teresa rita lopes
estampa
1990





09 novembro 2019

abdul cadre / se quiseres imaginar um mundo





47

Se quiseres imaginar um mundo
sem conflitos nem contradições,
imagina-o à imagem e semelhança
da tua verdadeira essência.

Torna-te um prisma de cristal
que a luz atravessa sem constrangimentos.

Realiza da luz desejos e segredos,
explode de cor e silencia.



abdul cadre
a razão das palavras cortadas muito rentes
(ou algumas heresias)
editora urutau
2019






08 novembro 2019

josé gomes ferreira / e ainda hoje por lá ando a correr



IV

E ainda hoje por lá ando a correr
na superfície das manhãs paradas
a gastar-me com os mortos
– e a deixar cair invenções de sombras nas estradas.


Depois perdi as mãos
de tanto escrever no musgo da parede
por baixo dum desenho obsceno inocente:

«Futuro,
deixa-me continuar a ter sede.»


                                  («Futuro.
                                  deixa-me continuar a ter sede.»
                                  Vou mandar desenhar este lema na bandeira
                                  vermelha com o meu brasão.)




josé gomes ferreira
poesia V
memória – I (1957-1958)
portugália
1973




07 novembro 2019

natália correia / o livro dos amantes



IV
Dá-me a tua mão por cima das horas.
Quero-te conciso.
Adão depois do paraíso
errando mais nítido à distância
onde te exalto porque te demoras.



natália correia
poemas
antologia poética
dom quixote
2018