17 fevereiro 2019

bernardo soares / não conheço prazer como o dos livros, e pouco leio.




Não conheço prazer como o dos livros, e pouco leio. Os livros são apresentações aos sonhos, e não precisa de apresentações quem, com a facilidade da vida, entre em conversa com eles. Nunca pude ler um livro com entrega a ele; sempre, a cada passo, o comentário da inteligência ou da imaginação me estorvou a sequência da própria narrativa. No fim de minutos, quem escrevia era eu, e o que estava escrito não estava em parte alguma.

As minhas leituras predilectas são a repetição de livros banais que dormem comigo à minha cabeceira. Há dois que me não deixam nunca — A Retórica do Padre Figueiredo e as Reflexões sobre a Língua Portuguesa do Padre Freire. Estes livros, releio-os sempre a bem; e, se é certo que já os li todos muitas vezes, também é certo que a nenhum deles li em sequência. Devo a esses livros uma disciplina que quase creio impossível em mim — uma regra de escrever objectivado, uma lei da razão de as coisas estarem escritas.

O estilo afectado, claustral, fruste, do Padre Figueiredo é uma disciplina que faz as delícias do meu entendimento. A difusão, quase sempre sem disciplina, do Padre Freire entretém o meu espírito sem o cansar, e educa-me sem me dar preocupação. São espíritos de eruditos e de sossegados que fazem bem à minha nenhuma disposição para ser como eles, ou como qualquer outra pessoa.

Leio e abandono-me, não à leitura, mas a mim. Leio e adormeço, e é como entre sonhos que sigo a descrição das figuras de retórica do Padre Figueiredo, é por bosques de maravilha que oiço o Padre Freire ensinar que se deve dizer Magdalena, pois Madalena só o diz o vulgo.

s.d.



fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
ática
1982





16 fevereiro 2019

pedro loureiro / não há absolvição







Não há absolvição
apenas a ilusão de um recomeço
a subversão do ontem
perfídia disfarçada
urdindo formações de desalojados
saciando a abstinência virulenta
cabeças que cortam cabeças
matilhas de pássaros orgânicos
causando a obstipação dos profetas



pedro loureiro
astigmatismo ou redenção
ilustrações inma serrano & josé louro
editora urutau
2019






15 fevereiro 2019

eduardo pitta / nenhum de nós passeia impune




Nenhum de nós passeia impune
pelos retratos: fazem-nos doer
os recessos da memória.

Deles saltam, por vezes, sustos,
primeiras noites, secreta
loucura, lábios que foram.

Interditam-nos sempre.
Trepam-nos pelo torpor
mais desprevenido, subsistem.

A sua perenidade é volátil
e cheia de venenosos ardis.
Um sopro no oceano.

Distintos, os seus contornos
não são nunca
os que supomos.



eduardo pitta
olhos calcinados
desobediência
poemas escolhidos
dom quixote
2011





14 fevereiro 2019

howard altmann / a barrar com chocolate




Pega na tua tristeza e põe-na
naquele frasco de doce vazio que guardas.
Pega no teu esconderijo e adoça-o.
Compra o jornal antes de te sentares.
Lê os obituários depois de leres a banda desenhada.
Come uma sopa que a tua mãe costumasse fazer.
Toma uma bebida que o teu pai costumasse pedir.
Imagina o mundo habitado por órfãos.
Depois procura o homem que se senta sozinho
e pergunta-lhe se podes pendurar
o teu casaco ao lado do dele.



howard altmann
enquanto uma fina neve cai
trad. eugénia de vasconcellos
guerra & paz
2019





13 fevereiro 2019

till lindemann / estranho




Como é estranho o que se transforma em dia
Que tu vivas é o que está em causa
Estranho é o que se transforma em noite
Trouxe-te bem para debaixo de mim

No crepúsculo vermelho lava-se o dia
levo-te aos mortos amanhã
para que a multidão não se esqueça
de qual de nós já morreu



till lindemann
nas noites tranquilas
trad. pedro garcia rosado
alma mater
2018






12 fevereiro 2019

luiza neto jorge / o sítio em visita




*

Há no mundo inteiro uma, quando muito, rua
difícil de encontrar.

São os campos, gente humílima, absorta em grãos
de areia, praia inequívoca onde,
na estação tardia, os do mar se deitam.

Algumas folhas, de livros, assinalam o ponto.
Algumas cartas, de marear,
não chegam.



luiza  neto jorge
os sítios sitiados
poesia
assírio & alvim
1993







11 fevereiro 2019

luís miguel nava / rapazes




Foi há cerca de um ano que eu
os vi, onde o granito e a luz são consanguíneos.

Seguiam abraçados um
ao outro, o pensamento posto no amoroso
lençol de que era na mão deles
o guarda-chuva uma antecipação.



luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
rebentação
publicações dom quixote
2002






10 fevereiro 2019

bernardo soares / a leitura dos jornais, sempre penosado ponto de ver estético,




A leitura dos jornais, sempre penosa do ponto de ver estético, é-o frequentemente também do moral, ainda para quem tenha poucas preocupações morais.

As guerras e as revoluções — há sempre uma ou outra em curso — chegam, na leitura dos seus efeitos, a causar não horror mas tédio. Não é a crueldade de todos aqueles mortos e feridos, o sacrifício de todos os que morrem batendo-se, ou são mortos sem que se batam, que pesa duramente na alma: é a estupidez que sacrifica vidas e haveres a qualquer coisa inevitavelmente inútil. Todos os ideais e todas as ambições são um desvairo de comadres homens. Não há império que valha que por ele se parta uma boneca de criança. Não há ideal que mereça o sacrificio de um comboio de lata. Que império é útil ou que ideal profícuo? Tudo é humanidade, e a humanidade é sempre a mesma — variável mas inaperfeiçoável, oscilante mas improgressiva. Perante o curso inimplorável das coisas, a vida que tivemos sem saber como e perderemos sem saber quando, o jogo de dez mil xadrezes que é a vida em comum e luta, o tédio de contemplar sem utilidade o que se não realiza nunca (...) — que pode fazer o sábio senão pedir o repouso, o não ter que pensar em viver, pois basta ter que viver, um pouco de lugar ao sol e ao ar e ao menos o sonho de que há paz do lado de lá dos montes.

s.d.


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982







09 fevereiro 2019

maria gabriela llansol / LXII. dedico




a melodia é para a árvore e folhas; a leitura, a escrita, para o rosto entre ambas; o texto, ao entrar na árvore, sai paisagem. Resta-me a dor de aprender a identificar.



maria gabriela llansol
amigo e amiga
curso de silêncio de 2004
assírio & alvim
2006







08 fevereiro 2019

jorge velhote / fria é a água na escuridão




.11.

Na noite cintilam entre paredes
os despojos da pele e uma labareda
devastando os ossos dispara
a cegueira.
Infinitamente desce no teu olhar
apenas uma gota de luz
que varre das pedras a poeira inútil
a dor e a loucura.



jorge velhote
âmago
edições sem nome
2018






07 fevereiro 2019

fernando pinto do amaral / escotomas



2.
Depois da tempestade é mais difícil
continuar fiel ao fogo,
encontrar um refúgio nas cinzas
deste vulcão silencioso. O tempo
devora a minha voz e adormece
todo o amor, todo o medo,
sob o peso de um grito. Não resisto
à luz que se despede
do coração doente – sei apenas
que a verdade se move entre a poeira
de cada corpo, à espera de rezar
uma oração feliz e tenebrosa
no centro da cratera calcinada,
eterno purgatório onde nascem
as cores do meu arco-íris.

  

fernando pinto do amaral
às cegas
relógio de água
1997






06 fevereiro 2019

marianne moore / que contam os anos?





     Que conta a nossa inocência,
que conta a culpa? Tudo é
     nu, ninguém escapa. E vem de onde
a coragem: a pergunta sem resposta,
a dúvida decidida –
clamando muda, escutando surda – que
na desgraça, mesmo morte,
          os outros incentiva
          e quando sai vencida, agita

     na alma fortaleza? Sagaz
e feliz é aquele que
     aceita a mortalidade
e no cativeiro se ergue acima
da sua posição como
o mar face ao abismo, lutando
por ser livre sem poder,
          achando, na rendição,
          a sua resiliência.

     Condigno, pois, é aquele
que forte sente. Até o pássaro
      cantando se espevita
e todo se endireita. Embora cativo,
declara em canto firme
ser grosseira a satisfação,
ser tão pura a alegria.
          A mortalidade é isto,
          a eternidade é isto.




marianne moore
o pangolim e outros poemas
trad. margarida vale de gato
relógio d´água
2018






05 fevereiro 2019

wislawa szymborska / o céu





Era por aí que se devia ter começado: o céu.
janela sem parapeito, sem caixilho, sem vidros.
A abertura e nada para além dela,
de par em par aberta todavia.

Não tenho que esperar uma noite calma
nem de levantar a cabeça
para olhar o céu.
O céu tenho-o à mão,
atrás de mim, nas minhas pálpebras.
Hermeticamente o céu me envolve
e me levanta do chão.

Nem mesmo os mais altos cumes
ficam mais perto do céu
que os vales profundos.
Em lugar algum ele existe mais
que nalgum outro.
E em rigor tão coberta de céu está a nuvem
como o túmulo.
Tão do céu é a toupeira
como a coruja de asas lestas.
E coisa que caia em precipício
cai do céu para o céu.

Soltos, fluidos, rochosos,
coruscantes e etéreos
abas de céu, sobras de céu,
sopros de céu e medas.
O céu é omnipresente
até nas escuridões sob a pele.

Eu como o céu, expulso o céu.
Eu sou armadilha na armadilha,
o habitante habitado,
o possuído da posse,
pergunta em resposta a uma pergunta.

Dividir em terra e céu
não é a maneira certa
de pensar nesta unidade.
Permite-me apenas viver
em morada mais exacta,
mais rápida de encontrar
se eu fosse procurada.
Os meus sinais particulares
são o fascínio e o desespero.



wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998