Não conheço prazer como o dos livros, e pouco leio.
Os livros são apresentações aos sonhos, e não precisa de apresentações quem,
com a facilidade da vida, entre em conversa com eles. Nunca pude ler um livro
com entrega a ele; sempre, a cada passo, o comentário da inteligência ou da
imaginação me estorvou a sequência da própria narrativa. No fim de minutos,
quem escrevia era eu, e o que estava escrito não estava em parte alguma.
As minhas leituras predilectas são a repetição de
livros banais que dormem comigo à minha cabeceira. Há dois que me não deixam
nunca — A Retórica do Padre Figueiredo e as Reflexões sobre a Língua Portuguesa
do Padre Freire. Estes livros, releio-os sempre a bem; e, se é certo que já os
li todos muitas vezes, também é certo que a nenhum deles li em sequência. Devo
a esses livros uma disciplina que quase creio impossível em mim — uma regra de
escrever objectivado, uma lei da razão de as coisas estarem escritas.
O estilo afectado, claustral, fruste, do Padre
Figueiredo é uma disciplina que faz as delícias do meu entendimento. A difusão,
quase sempre sem disciplina, do Padre Freire entretém o meu espírito sem o
cansar, e educa-me sem me dar preocupação. São espíritos de eruditos e de
sossegados que fazem bem à minha nenhuma disposição para ser como eles, ou como
qualquer outra pessoa.
Leio e abandono-me, não à leitura, mas a mim. Leio
e adormeço, e é como entre sonhos que sigo a descrição das figuras de retórica
do Padre Figueiredo, é por bosques de maravilha que oiço o Padre Freire ensinar
que se deve dizer Magdalena, pois Madalena só o diz o vulgo.
s.d.
fernando
pessoa
livro do
desassossego por bernardo soares. vol.I
ática
1982