20 outubro 2018

john havelda / um ford modelo t




                    Para M.E.


Ford pensou fazer fortuna
a fabricar relógios.
Mas, enfim, nem toda a gente
precisa de um relógio.


Normalmente, não acreditava
em pregar as janelas das suas ideias infelizes
tão cedo. Aquela, no entanto, ele bem via
que não ia longe.

Nem toda a gente precisa de um relógio, mas o que toda a gente
deseja em breve se tornou claro.
Um belo dia, entediado com o tilintar do gelo
no seu cocktail, pôs-se a olhar quem passava para lá
e ao fim do segundo copo,
passava para cá. Na verdade ninguém
estava ali,
em frente àquela janela.
«Sou o único aqui», disse ele,
e bateu palmas porque finalmente
nascera a fortuna.
Enquanto pulava pela sala,
entornando gin na camisa,
até ele se tornou um freguês potencial,
porque ninguém, nem mesmo sua excelência
o próprio senhor Henry Ford
quer ficar onde está.



John havelda
poesia do mundo
tradução do autor
edições afrontamento
1995








19 outubro 2018

antónio maria lisboa / acento




Vem dos montes friíssimos da Noruega
onde te sonhei para beberes estrelas
e caminhar a custo entre as cascatas
onde a ternura é um escadote
e o ar um caracol de planetas nas órbitas.


antónio maria lisboa
ossóptico e outros poemas
poesia
assírio & alvim
1995












18 outubro 2018

antónio ramos rosa / este homem que esperou




Este homem que esperou
humilde em sua casa
que o sol lavasse a cara
ao seu desgosto

Este homem que esperou
à sombra de uma árvore
mudar a direcção
ao seu próprio destino

Este homem que esperou
com uma pedra na mão
transformá-la num pão
transformá-la num beijo

Este homem que parou
no meio da sua vida
e se sentiu mais leve
que a sua própria sombra



antónio ramos rosa
matéria de amor
editorial presença
1985






17 outubro 2018

virgínia woolf / shakespeare




1930
Domingo, 13 de Abril

Li Shakespeare imediatamente após ter acabado de escrever, quando a minha mente está boquiaberta, ao rubro e fogosa. Então é assombroso. Nunca tinha percebido ainda quão surpreendente é o seu alcance, velocidade e capacidade de cunhar palavras, até sentir como me deixa completamente para trás e vence a minha, parecendo começar a par, e depois vejo-o adiantar-se e fazer coisas que não poderia imaginar na minha mais desenfreada agitação e máxima pressão mental. Mesmo as menos conhecidas e piores das suas peças são escritas a uma velocidade que é mais rápida do que a mais rápida de qualquer outra pessoa; e as palavras derramam-se tão depressa que não nos é possível recolhê-las. Evidentemente a flexibilidade da sua mente era tão completa que ele podia polir qualquer sequência de pensamentos; e, ao relaxar, deixar cair uma chuva dessas flores desconsideradas, para quê, então, qualquer outra pessoa tentar escrever? Isto não é “escrever” de todo. De facto, podia dizer que Shakespeare supera completamente a literatura, que soubesse o que queria dizer.



virgínia woolf
diários
trad. de jorge vaz de carvalho
relógio d´água
2018









16 outubro 2018

maria azenha / gaia




Ao longo de eras quiseram torturar-me.
Planearam crucificar-me.
Quando me quiseram matar
doei todas as minhas lágrimas.


Quando me deixaram completamente só, fiz companhia.



maria azenha
xeque-mate
editora urutau
2018









15 outubro 2018

ron padgett / paul eluard




Paul Eluard disse:
«Há outro mundo
mas está dentro deste»
ou algo semelhante.
Eu diria:
«Tudo é suficientemente estranho
tal como é»
ou algo semelhante.
A minha escrita à mão, por exemplo,
e a minha mão a escrever.
Mão, diz olá ao Paul Eluard.



ron padgett
poemas escolhidos
trad. rosalina marshall
assírio & alvim
2018







14 outubro 2018

josé pascoal / a pele dos dias




Morremos duros
E compridos,
Cheios de palavras
Que nunca dissemos.

Morremos duros
E cobertos
Por uma nudez
Educada



josé pascoal
sob este título
editorial minerva
2017







13 outubro 2018

maria f. roldão / percorro-lhe o corpo pequeno




Percorro-lhe o corpo pequeno
verificando as falhas
os excessos
Entro e saio inúmeras vezes
da loja das palavras
em busca de sinónimos
Compro metáforas
a peso de ouro

Fica caro o poema
– ruína do poeta.





maria f. roldão
nervo/1
colectivo de poesia
janeiro/abril 2018










12 outubro 2018

iosif brodskii / ab ovo




No limite, devia haver uma língua
em que a palavra “ovo” se reduzisse ao O
apenas. O italiano é a que mais se aproxima,
naturalmente, com a sua “uova”. Por isso o Alighieri achava
que o alimento mais saudável era o ovo, comungando
dessa predilecção com sopranos e tenores, cujos torsos
em forma de pêra, em última análise, dão corpo à “ópera”.
O mesmo é válido para os verdadeiros românticos, ou seja,
os poetas alemães, em que praticamente todos os versos
começam com o que comeram ao pequeno almoço,
ou para os igualmente emproados matemáticos,
aninhados em cima da boa poedeira da sua infinidade,
cujos imaculados zeros jamais chocarão.

1996




iosif brodskii
paisagem com inundação
trad. de carlos leite
livros cotovia
2001








11 outubro 2018

antónio amaral tavares / o edifício da onu


(Charles Sheeler. Secretariado das Nações Unidas. 1951)



Vertical e monolítico

de lado as fachadas levantam-se cegas
como um espírito vigoroso crescente

e paralelo

o mármore da manhã
a suportar a pedra
da existência humana

nos alçados frontal e posterior
a igualdade rigorosa
das janelas alinha-se no mesmo plano

irmão nos tumultos do espaço da cidade
está muito longe o mundo

este edifício

todos o sabemos.




antónio amaral tavares
retratos de nova iorque
do lado esquerdo
2018









10 outubro 2018

francis ponge / fôssemos apenas um corpo




*
Fôssemos apenas um corpo e seguramente estaríamos em equilíbrio com a natureza.

Mas a nossa alma está do mesmo lado que nós na balança.

Leve ou pesada, não sei.

Memória, imaginação, afectos imediatos tornam-na mais pesada; todavia temos a palavra (ou qualquer outro meio de expressão); cada palavra que pronunciamos torna-nos mais leves. Na escrita, ela passa mesmo para o outro lado.

Leves ou pesados, não sei de facto, mas precisamos de um contrapeso.



francis ponge
alguns poemas

tradução de manuel gusmão
livros cotovia
1996








09 outubro 2018

roberto juarroz / todos falam



Todos falam
do que encontraram no caminho.
Alguns falam também
do que não encontraram.
E uns tantos referem-se
ao que não é possível encontrar.

Mas há quem fale de um encontro
que surge de uma emboscada entre as mãos
como uma andorinha que nunca foi parte
de nenhum bando,
como um gesto secreto que recolha
a compaixão que falta nos encontros.

Todo o encontro nasce
como a água perante a sede.
O resto é uma miragem
que não chega sequer
a desconcertar o deserto.



roberto juarroz
a árvore derrubada pelos frutos
trad. rui caeiro, duarte pereira e diogo vaz pinto
língua morta
2018







08 outubro 2018

miguel-manso / lamento londrino





passaram anos sem ter servido à poesia
porque é que agora volto ali?

Londres era, palavra, aquele mesmo nevoeiro
fastidioso, uma morrinha triste como se espera que seja
eu muito novo ainda para saber conciliar a acne
do rosto com a dolência da alma com que acudia
sobre a cama do hotel (colcha amarela, descosida, desmaiada)
a um disco insuportável do Choen: Live Songs, 1973

é fácil perceber agora o porquê de ter repetido
tantas vezes aquele Minute Prologue
dava corda à melancolia, era cedo e tarde para
tanta coisa, e naquele tempo eu tinha a convicção de ser
a pessoa menos contemporânea de mim mesmo

a noite, uma ambulância, o vidro molhado
da janela do quarto onde as imagens nebulosas do dia
nunca se fixavam

terei tentado o choro, o suicídio?
nada, nem um cigarro

viajava, que extravagância, com os meus pais
a autonomia e o inglês rudimentares
coragem nenhuma para ir socorrer sozinho



miguel-manso
mortel
do lado esquerdo
2018