02 setembro 2018

natália correia / marcelo e as tágides





Marcelo, em cupidez municipal
de coroar-se com louros alfacinhas,
atira-se valoroso – ó bacanal! –
ao leito húmido das Tágides daninhas

Para conquistar as Musas de Camões
lança a este, Marcelo, um desafio:
jogou-se ao verso o épico? Ilusões!...
Bate-o Marcelo que se joga ao rio.

E em eleitorais estrofes destemidas,
do autárquico sonho, o nadador
diz que curara as ninfas poluías
com o milagre do seu corpo em flor.

Outros prodígios – dizem – congemina:
ir aos bairros da lata e ali, sem medo,
dormir para os limpar da vil vérmina
e triunfal ficar cheio de pulguedo.

Por fim, rumo ao céu, novo Gusmão
de asa delta a fazer de passarola,
sobrevoa Lisboa o passarão
e perde a pena que é de galinhola.



natália correia
cancioneiro joco-marcelino
antologia poética
dom quixote
2018







01 setembro 2018

vergílio ferreira / canta-me uma miséria de penas sem razão




Melo, 31 de Agosto de 1948


Canta-me uma miséria de penas sem razão
Com branda névoa de criança brincando na lama
e sois doentes morrendo.
Que a minha presença para mim seja este sonho magoado
sem corpo, sem desejo de que não seja magoado.
Que os meus olhos sejam a folha que o vento fez ave por
                                                                       segundos,
que o coração seja apenas o órgão mercenário para isto
                                                                             tudo,
e um momento estarei de acordo.



vergílio ferreira
diário inédito 1944-1949
bertrand editora
2008






31 agosto 2018

wislawa szymborska / as três palavras mais estranhas




Quando pronuncio aa palavra Futuro
a primeira sílaba já pertence ao passado.

Quando pronuncio a palavra Silêncio,
destruo-o.

Quando pronuncio a palavra Nada,
crio algo que não cabe em nenhum não-ser.


wislawa szymborska
instante
trad. elzbieta milewska e sérgio neves
relógio d'água
2006











30 agosto 2018

adonis / seis notas do lado do vento




I

                Que a poesia seja uma viagem aos confins do fora ou até ao mais íntimo do dentro, vivi nela, desde o início da minha empresa, um dentro que é no seu todo um fora, um fora indissociável do dentro. Senti porém que esse acto de escrita me exprimia menos do que designava o que eu queria exprimir de mim próprio, e o meu sentimento não variou desde então. A poesia, aos meus olhos, completa o homem, não é em nada a sua imagem. Não tinha nenhuma preocupação em criar uma harmonia entre o mundo e eu, mas tinha sempre o olhar fixo no abismo que se situa entre nós. Não escrevi portanto poesia no desígnio de encher esse abismo, mas como errância dentro dele e como exploração. Embora seja solicitado pela busca do sentido, ou de um sentido, adivinho que a minha identidade não se estabelece no que é estável, mas no que se move. Sinto que estou do lado do vento e da vaga.


adonis
arco-íris do instante
antologia poética
tradução de nuno júdice
dom quixote
2016







29 agosto 2018

eduardo moga / sempre o soubemos: somos erro, erro




[…]

Sempre o soubemos: somos erro, erro
que caminha e constrói pirâmides, erro
que julga e apedreja e se solidifica
e reza a Deus e quebra as ancas do vinho.
E antes de perceber ao nosso redor
a lentidão com que trabalham os fósseis, muito antes
de saber que só há um mundo – espera ser –
o que o vento que move os plátanos também
move as nossas correias e que um mesmo escoamento
luminoso – detém-te – arrasta a gangrena
e o silício e o pânico e as folhas do ácer
para um mar de silêncio onde tudo se anula
e dolorosamente recomeça, muito antes
de nos darmos conta da nossa radical
penumbra, construímos a casa dos sabres
e caímos, cobertos de língua, num nadir
de destruição, de edemas e de recifes, de gruas,
de enxertos e suor, de seiva acorrentada,
com a única ambição de iludir o crónico
esqueleto, mas indo até ele, vendo-o erguer-se,
sentindo que se incarna no voo exausto
do condor e da farinha, na polpa indómita
dos assassinados, na hérnia do bosque
que já não vê a luz, que só sente o hálito
dos astros mais negros, lentamente invocados.



eduardo moga
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000







28 agosto 2018

luís garcia montero / espelhos




                   Para Luis Muñoz



Não importa se dormiste pouco ou muito,
os espelhos de hotel nunca perdoam
e são como animais de montanha
que não aceitam o convívio dos homens.

A luz dos espelhos familiares
compadece-se de nós, porém,
ajuda-nos a fingir, e por afecto
ou por hábito consegue perdoar-nos.

Eu sei que os espelhos são a água
estagnada de um rio que se move.
E vi como o sol que se reverbera
pode ocultar o lodo das sombras.

Mas quem espreita o fundo dos teus olhos
vê as gretas do tempo, as aranhas
de um passado que surge inesperado
em manhã de hotel e nos ofende.

Para quê responder. Feche os olhos,
porque não há outra coisas que envelheça
pior do que o teu olhar.



luis garcia montero
quartos separados (1994)
as lições da intimidade
antologia
trad. de nuno júdice
abysmo
2018







27 agosto 2018

r. lino / palavras do imperador hadriano na morte de antínoos




perdi – quando partiste –
o completo sentido das metáforas…
terei adiado para outras tardes
abreviadas conversas
de suspeitos projectos?
– ou arrastado os olhos
para verdes mares
de idênticas cores?!
falo do Império
como do teu;
não mais fustigarei as palavras:
possibilidade inscrita no corpo
pela exaustão do silêncio,
deste
que fala o que digo
– em vez de mim para ti,
como se pelo espelho –
enquanto agarro
este e outro
coração nos meus gestos.


r. lino
palavras do imperador hadriano
segunda série
políptico
companhia das ilhas
2016







26 agosto 2018

josé gomes ferreira / memória



VIII

         (Skerzo)


Enterrava-se a noite
e às vezes também os astros
na alegria das férias
– para dar destinos azuis
Às raízes dos cardos
Cheias de estrelas
Estéreis.


josé gomes ferreira
poesia V
memória-II  1959
portugália
1973






25 agosto 2018

joaquim manuel magalhães / antónio palolo




oito

Quando a sair da juventude, um dia separaram-se. Nunca mais se viram. Apenas jeitos do corpo um do outro guardaram. Devem ter morrido pouco tempo depois, talvez junto de um rio, talvez junto da água a mágoa da memória perdoe. As luzes fogem, encontram-se muito ao longe, ignoradas de homens para outros homens prontos a morrer sem saber a quem chegarão suas verdades, sua solidão, os restos azuis das chamas.


joaquim manuel magalhães
antónio palolo
consequência do lugar
relógio d´água
2001








24 agosto 2018

rui costa / breve ensaio sobre a potência




1
a luz é a metáfora do verbo,
a matéria escura. ilumina
as paredes da água, é como
um vidro com as imagens
do avesso. o animal furtivo
que instaura a violência,
a mãe ao redor do silêncio.



rui costa
breve ensaio sobre a potência
(texto-ensaio composto por 31 fragmentos)
mike tyson para principiantes
antologia poética
assírio & alvim
2017






23 agosto 2018

carlos poças falcão / há sempre a laranjeira no quintal




Há sempre a laranjeira no quintal.
Ali a verde salsa. Além a hortelã.
Ao fundo o limoeiro. Do caleiro
o marulhar da água. Sobre a casa
a sonolência. O gato a ronronar.
Abra-se a janela para me maravilhar.
Ainda sou pequeno. Estou ainda a acumular
tardes como essa, liquidas e verdes.
Passem muitos anos para aqui as inventar.



carlos poças falcão
o número perfeito
arte nenhuma (poesia 1987-2012)
opera omnia
2012







22 agosto 2018

mário cesariny / muito acima das nuvens seja o centro





Muito acima das nuvens seja o centro
                das nossas misteriosas poéticas
                o irresistível anseio de viajar
um só movimento trabalhado à mão
                     nos ermos mais altos
                          mais desaparecidos



mário cesariny
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998







21 agosto 2018

sophia de mello breyner andresen / che guevara





Contra ti se ergueu a prudência dos inteligentes e o arrojo dos patetas
A indecisão dos complicados e o primarismo
Daqueles que confundem revolução com desforra

De poster em poster a tua imagem paira na sociedade de consumo
Como o Cristo em sangue paira no alheamento ordenado das igrejas

Porém
Em frente do teu rosto
Medita o adolescente à noite no seu quarto
Quando procura emergir de um mundo que apodrece


Lisboa, 1972



sophia de mello breyner andresen
o nome das coisas  I (1972-73)
obra poética
assírio & alvim
2015