24 fevereiro 2018

filipe marinheiro / habito dentro da pele dum deserto….





habito dentro da pele dum deserto a prumo está um brilho fresco
de estalar a língua

os dedos sobem numa convulsão entrançada à poeira em erro

as pedras a salivarem contra a minha boca cantam
cantam as pedras em sofrimento casto e cantam
cantam como a escorregar garganta acima!

as dunas e cavernas deste deserto prendem-se no sol gestual
sol de ossos canibais:
– é um deserto que dança falésia abaixo
– é um deserto que molda as máscaras
– é um deserto que se estende para me devolver
todo o meu silêncio infinito

e toda a sua carne a parir numa desfeita noite aperta-me as mãos
que estão em choque no vento da cabeça

e a cabeça cai pela pele do deserto a cabeça quer regressar
às areias movediças ao mesmo tempo que se dobra nas horas
intermináveis ainda por estrangular todo o sangue

e a lisura do sangue transforma-se agora em cactos
– iluminando todo o lume noctívago



filipe marinheiro
noutros rostos
chiado editora
2014








23 fevereiro 2018

lawrence ferlinghetti / o castelo de kafka ergue-se sobre o mundo




               
                O Castelo de Kafka ergue-se sobre o
                                                           [mundo
como uma última bastilha
                                 do Mistério da Existência
Os seus acessos cegos nos confundem
                                                Caminhos íngremes
                partem dele e mergulham em nenhures
                                                     Estradas perdem-se no
                                                                                   [ar
como labirintos fios de central
                                              telefónica
através da qual todas as chamadas
                   se perdem no infinito
                Lá em cima
                        faz um tempo celestial
As almas dançam despidas
                                 em grupo
                   e como intrusos
                          na periferia de uma feira
                   espiamos o inatingível
                                     mistério imaginado
                               Contudo na parte de trás do
                                                             [castelo
                                   como na entrada dos artistas
                                           [de uma tenda de circo
há uma fenda funda e larga nas muralhas
                             pela qual até os elefantes
                                 podem entrar e dançar




lawrence ferlinghetti
a coney island of the mind
trad. josé palla e carmo
cadernos de poesia
dom quixote
1972








22 fevereiro 2018

rui costa / o acidente IV




Levanta as tuas mãos
e se um dia te cansares
eu estarei pronto como o lugar da queda.



rui costa
«não sou quem era quando lhe mordi a orelha»
mike tyson para principiantes
antologia poética
assírio & alvim
2017











21 fevereiro 2018

mário-henrique leiria / simples como é




simples como é
a claridade é a coisa
mais difícil de encontrar

talvez porque a distância que nos
separa longa muito longa
e nítida
seja a torre de chumbo do nosso
próprio isolamento
talvez porque sentir
o aparecimento da madrugada
seja a origem do desespero
sombra trópico lâmina
entre nós dois

                ouve o que te digo

não esqueças que os meus lábios
mesmo quando desfeitos
e a claridade
essa não a procures não nunca
deixa-a ir comigo
até ao esgotamento do meu sangue
até ao limite
do meu corpo em carne viva




mário-henrique leiria
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998









20 fevereiro 2018

luís miguel nava / a pouco e pouco








     Há entre o coração e a pele cumplicidades para cujo entendimento apenas corpos como o dele às vezes contribuem.

     Olhando-o nos olhos não é fácil destrinçar do alcantilado coração a cama onde dormíamos, ao mais pequeno sopro o sol parece evaporar-se.

     Por esse coração, ainda que escarpado, era, no entanto, fácil alcançar a pele, o mar à força de bater na rocha ia ficando a pouco e pouco em carne viva.




luís miguel nava
como alguém disse
desenhos de manuel cargaleiro
contexto editora
1982







19 fevereiro 2018

josé luis garcía martin / o último convidado




Os amigos foram-se despedindo
e antes que pudesses dar-te conta
estás de novo a beber sozinho.
Também tu queres ir a qualquer lado
onde sem fim a festa continue.
Porém não podes. Há um convidado
ainda por chegar. Abres a porta,
sentas-te à sua espera, olhas ao longe
as lentas luzes de barcos na noite.
Um último convidado. Tens medo
de que afinal decida que não vem.
Os teus olhos fecham-se. Não te importes.
Podes ao vê-lo chorar como criança.
Mais vale que chegue contigo adormecido.


josé luís garcia martin
trípticos espanhóis 1º.
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1998







18 fevereiro 2018

fernando pessoa / há entre mim e o mundo…




Há entre mim e o mundo uma névoa que impede que eu veja as coisas como verdadeiramente são — como são para os outros.

Sinto isto.

1915?


fernando pessoa
páginas íntimas e de auto-interpretação
ática
1966












17 fevereiro 2018

jorge de sena / lepra





A poesia tão igual a uma lepra!
.   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .  


E os poetas na leprosaria
vão vivendo
uns com os outros,
inspeccionando as chagas
uns dos outros.


jorge de sena
perseguição (1942)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972










16 fevereiro 2018

rui knopfli / o fio da vida




Há homens que rezam na penumbra
das catedrais dolentes e há outros
que do alto das pontes olham
a escuridão rumorejante das águas.
Há homens que esperam na orla
marítima e outros arrastando-se
no viscoso esterco dos subterrâneos.
Há homens debruçados em pleno azul
e outros que deslizam sobre densos verdes;
há os desatentos na atenção e os que
espreitam atentamente a ocasião.
Há homens por fora e por dentro
do cimento armado, suspensos
das mil ciladas do quotidiano voraz;
de encontro aos muros, às paredes,
ao sol do meio-dia, ao visco da noite,
às sediças solicitações de cada instante.
Há a impotência poderosa da oração
e a obsessão amarga dos suicidas
e, de permeio, os que, porque hesitam,
porque ignoram, porque não crêem,
não oram, nem se suicidam
e se quedam ante a impossibilidade de destrinça
entre o fio da vida e a vida por um fio.



rui knopfli
maxila triste
memória consentida
20 anos de poesia 1959/1979
imprensa nacional -casa da moeda
1982







15 fevereiro 2018

ruy belo / segunda infância




À tua palavra me acolho lá onde
o dia começa e o corpo nos renasce
Regresso recém-nascido ao teu regaço
minha mais funda infância meu paul
Voltam de novo as folhas para as árvores
e nunca as lágrimas deixaram os olhos
Nem houve céus forrados sobre as horas
nem míseras ideias de cotim
despovoaram alegres tardes de pássaros
O sol continua a ser o único
acontecimento importante da rua
Eu passo mas não peço às árvores
coração para além dos frutos
Tu és ainda o maior dos mares
e embrulho-me na voz com que desdobras
o inumerável número dos dias



ruy belo
dedicatória
todos os poemas I
assírio & alvim
2004






14 fevereiro 2018

nuno júdice / gramática




Com que gramática se escreve? A
de  um luar antigo, por onde voaram
as aves nocturnas em busca
de alvorada? A de uma sintaxe matinal,
emprestando ao verso o soletrar
luminoso das vogais? Ou a dessa tarde
que deixou nos lábios o sabor
de palavras secas como as folhas
de outono?

Aprendi essas gramáticas nos
compêndios da imaginação; decorei
as suas regras com o fervor obscuro
das mnemónicas doentes; repeti
os seus exemplos em estrofes
vazias como as caixas amontoadas
num sótão de infância.
“Terá valido a pena esse
trabalho?”, perguntas-me. De facto,
não sei que resposta te poderei
dar. Os livros – arrumados nesse
canto do infinito em que nunca
nos havemos de encontrar; as frases,
sem ligação, como se a vida
as tivesse desfeito no moinho
da eternidade.

Então, pergunto eu: de que corpo
és a sombra sem rosto, o pulso
sem emoção, a queixa sem a música
de um murmúrio?




nuno júdice
a fonte da vida
quetzal
1997








13 fevereiro 2018

enrique lihn / mais velho




     O filho único seria o mais velho de seus irmãos
e em sua orfandade algo possui
do que se entende pela palavra velho. Como se também tivessem
                morrido
seus impossíveis irmão mais novos.
Muito mais rigoroso que o luto repartido
é o seu; a morte cortou-o à sua medida,
coseu-o, lenta, com extrema finura,
enquanto o pai se ia vazando no filho,
envelhecia-o à força de o criar à sua imagem
– menino outra vez o homem, homem outra vez o menino –
em noites tão escuras como o luto que levam.

     E o filho tem alguma coisa de um irmão mais velho
como se o rodeássemos, nonatos, enquanto ele nasce pela segunda
                vez
para uma vida mais grave que a nossa.
Alguém se olha nele com os olhos fechados,
gravita em seu silêncio
sobre nossas palavras sem objectivo.




enrique lihn
trad. josé bento
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001








12 fevereiro 2018

manuel antónio pina / primeiro domingo




A tarde estava errada,
não era dali, era de outro domingo,
quando ainda não tinhas acontecido,
e apenas eras uma memória parada
sonhando (no meu sonho) comigo.

E eu, como um estranho, passava
no jardim fora de mim
como alguém de quem alguém se lembrava
vagamente (talvez tu),
num temo alheio e impresente.

Tudo estava no seu lugar
(o teu lugar), excepto a tua existência,
que te aguardava ainda, no limiar
de uma súbita ausência,
principalmente de sentido.

23/4/99


manuel antónio pina
nenhuma palavra e nenhuma lembrança (1999)
todas as palavras, poesia reunida
assírio & alvim
2012