IV
Mais uma vez a perdi. Em cada minuto
a perco. Longe revolteiam suas palavras
e seus dedos depositam-se
em qualquer parte.
Se a busco? Esfaimadamente a busco.
Tacteando com a memória a forma com que era
nas noites de amor.
Reconstruindo sua espécie de enorme sorriso.
Busco-a sim, inventando subtilmente
o impudor de cada entrega,
a dádiva sobrenatural da sua carne aberta.
Mais uma vez foi destruída pela vida feroz,
e minha boca não suporta sem palavras
essa coisa mortal.
Sangrentas são as palavras e deixam vestígios
através do tempo.
Longe, naquilo que o acaso teceu,
elaboram-se os gestos. No casulo remoto
forma-se a distância
entre a sua fonte e a minha fonte.
– Com que ser se entende agora seu ser oculto?
E as voltas obscuras e difíceis
dos instintos.
Ela semeia-se. E alguma coisa misteriosamente
a fecunda.
– Ela é colhida por um vento e eu estou bêbedo
de coisas inextricáveis.
Sei que ela acontece. Um círculo de seda
forma-se prementemente,
e ela acontece.
A minha fonte não me dá ironia,
nem um fogo,
uma estrela violenta.
– Fico a saber que ela longe cresce
como outra folha de erva.
Nada em mim suporta. A memória
desimpede-lhe os pés, e beija-os.
Minhas pálpebras exaltam-na.
E a fonte, essa, recusa-a arduamente.
Recebo humildemente esta desordem
da carne, das palavras,
dos dedos bruscos do tempo.
– Recebo tudo, e canto como quem
deixa um sinal
maravilhoso.
herberto helder
poesia toda
a colher na boca
assírio & alvim
1996