06 maio 2017

herberto helder / ciclo IV



IV
Mais uma vez a perdi. Em cada minuto
a perco. Longe revolteiam suas palavras
e seus dedos depositam-se
em qualquer parte.


Se a busco? Esfaimadamente a busco.
Tacteando com a memória a forma com que era
nas noites de amor.
Reconstruindo sua espécie de enorme sorriso.
Busco-a sim, inventando subtilmente
o impudor de cada entrega,
a dádiva sobrenatural da sua carne aberta.
Mais uma vez foi destruída pela vida feroz,
e minha boca não suporta sem palavras
essa coisa mortal.
Sangrentas são as palavras e deixam vestígios
através do tempo.


Longe, naquilo que o acaso teceu,
elaboram-se os gestos. No casulo remoto
forma-se a distância
entre a sua fonte e a minha fonte.
– Com que ser se entende agora seu ser oculto?
E as voltas obscuras e difíceis
dos instintos.


Ela semeia-se. E alguma coisa misteriosamente
a fecunda.
– Ela é colhida por um vento e eu estou bêbedo
de coisas inextricáveis.
Sei que ela acontece. Um círculo de seda
forma-se prementemente,
e ela acontece.


A minha fonte não me dá ironia,
nem um fogo,
uma estrela violenta.
– Fico a saber que ela longe cresce
como outra folha de erva.


Nada em mim suporta. A memória
desimpede-lhe os pés, e beija-os.
Minhas pálpebras exaltam-na.
E a fonte, essa, recusa-a arduamente.


Recebo humildemente esta desordem
da carne, das palavras,
dos dedos bruscos do tempo.
– Recebo  tudo, e canto como quem deixa um sinal
maravilhoso.


herberto helder
poesia toda
a colher na boca
assírio & alvim
1996




05 maio 2017

joão esteves / sobre tudo o que nada presta




ainda que o tempo não dê para perceber a beleza
de todas as coisas, devo pé ante pé (para não
acordar o ódio), abeirar-me do desconhecido,
daquele outro lado que ignoro. contudo, era bom que

alguém me justificasse o desconhecimento que tenho
das coisas: haverá alguma beleza em descobrir que
tudo é relevante ou que nada presta, se aquilo a que
estou condenado é ver o outro lado a partir do meu?




joão esteves






04 maio 2017

jacobo cortines / nardos de novembro



I
Com o amor as rosas são mais belas
e dura o seu perfume na memória,
o nardo é sempre branco e a sua brancura
jamais receia os frios do inverno.
A um sonho bem remoto fui buscar-te
porque soube de ti entre os espinhos,
e segui as tuas pegadas passo a passo
até entrar em tua casa e encontrar-te.
Não me negues teus lhos, porque neles
vivo livre de mim. Que o teu sorriso
não se torne tristeza nem se manche
do teu amparo a límpida clareza.
Conheci tantos bosques e desertos,
subi a tantos cumes e deixei
que a vistas e perdesse pelos vales
para achar um lugar que te ofereça.
Hoje estás perto e sei da tua beleza
Sei que é bonita a rosa e a sua fragrância
Contigo não se extingue, e que os nardos
com o amor não morrem em Novembro.




jacobo cortines
nardos de novembro
tradução de josé colaço barreiros
canal revista de literatura nr.2
maio de 1998
palha de abrantes



03 maio 2017

josé antónio almeida / carne de porco



à maneira de Kavafis


Educado na contemplação das belas estátuas gregas
dos efebos de mármore da antiguidade clássica
e instruído na leitura dos poetas e filósofos
de ortodoxa e severa obediência platónica,
especialista em vasos com erómanos e erastas
e nas biografias dos discípulos do amor socrático,
ao cruzar-se com um desconhecido busto feminino
que misteriosamente recorda a proa de um navio
sulcando a multidão cinzenta das avenidas novas,
ele observa-o na outra margem da corrente de carros
perto do sinal vermelho do semáforo luminoso,
devorado pela curiosidade e por um estranho
apetite de provar o interdito sabor da fêmea
como um judeu proibido de comer carne de porco.


josé antónio almeida
poemas
as escadas não têm degraus – 2
livros cotovia
1990



02 maio 2017

ángél gonzález / como se nunca




     É algo mais que o dia o que morre esta tarde?
O vento,
                          – que leva ele?
que aromas arrebata?
Desatadas de súbito as folhas das árvores
cegas vão pelo céu.
Pássaros altos atravessam, adiantam-se
a luz que os guia.
                               Sombria claridade
será já em outro sítio
 – só por um instante –
madrugada.

     Com bandeiras de fumo alguém me avisa:

      – Olha bem tudo isto:
isto que passa
não voltará jamais
e é como se nunca tivesse sido

     efémera matéria de tua vida.



ángél gonzález
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
trad. josé bento
assírio & alvim
2001




01 maio 2017

jacques prévert / canção na massa do sangue




Há grandes manchas de sangue no mundo
para onde vai todo esse sangue vertido
será a terra que o bebe e com ele se embebeda
estranha bebedeira então
tão ponderada… tão monótona…
Não a terra não se embriaga
a terra não gira ao contrário
vai arrastando a sua carripana as quatro estações
a chuva… a neve…
o granizo… o bom tempo…
nunca se embebeda
só muito de longe a longe ela se permite
um mísero vulcão
A terra gira
gira com as suas árvores… os seus jardins… as suas casas…
gira com as suas poças de sangue
e todas as coisas vivas giram com ela e sangram…
Mas a terra
pouco se importa
gira e todas as coisas vivas desatam a gritar
ela pouco se importa
vai girando
sem parar
e o sangue não pára de correr…
Para onde vai todo esse sangue vertido
o sangue dos crimes… o sangue das guerras…
o sangue da miséria…
e o sangue dos homens torturados nas prisões…
o sangue das crianças calmamente torturadas pelo pai e pela
     mãe…
E o sangue dos homens que sangram da cabeça
nas celas de isolamento…
 e o sangue do trolha
quando escorrega e cai do telhado
E o sangue que brota e que corre aos borbotões
com o recém-nascido… com o filho novo…
a mãe a gritar… a criança a chorar…
o sangue corre… a terra gira
a terra não pára de girar
o sangue não pára de correr
Para onde vai todo esse sangue vertido
o sangue dos espancados… dos humilhados…
dos suicidados… dos fuzilados… dos condenados…
e o sangue daqueles que morrem assim… por acidente
Na rua passa um vivo
com todo o seu sangue lá dentro
de repente ei-lo morto
e todo o seu sangue está cá fora
e os outros vivos fazem desaparecer o sangue
levam o corpo
mas o sangue é teimoso
e lá onde estava o morto
em breve já negro
vê-se ainda um pouco de sangue…
sangue coagulado
ferrete da vida ferrete dos corpos
sangue coalhado como leite
como o leite azeda
quando gira como a terra
como a terra que gira
com o seu leite… com as suas vacas…
com os seus vivos… com os seus mortos
a terra que gira com as suas árvores… os seus vivos… as suas
     casas…
a terra que gira com os casamentos…
os enterros…
os clarins…
os regimentos… a terra que não pára de girar
com os seus grandes rios de sangue.

1936


jacques prévert
palavras
trad. manuela torres
sextante editora
2007




30 abril 2017

bernardo soares / assim organizar a nossa vida que ela seja para os outros um mistério



Assim organizar a nossa vida que ela seja para os outros um mistério, que quem melhor nos conheça, apenas nos desconheça de mais perto que os outros. Eu assim talhei a minha vida, quase que sem pensar nisso, mas tanta arte instintiva pus em fazê-lo que para mim próprio me tornei uma não de todo clara e nítida individualidade minha.
s.d.



fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
ática
1982



29 abril 2017

adolfo casais monteiro / o paraíso perdido



Meus paraísos perdidos!

Este entreter a olhar-me
Em espelhos que enganam
que feitiço mo impõe?

Devolvei-me os meus brinquedos…
  

adolfo casais monteiro
confusão
1929




28 abril 2017

Ítalo calvino / as cidades subtis. 4




A cidade de Sofrónia compõe-se de duas meias cidades. Numa iça a grande montanha russa de íngremes bossas, o carrossel com a sua auréola de correntes, a rode das gaiolas giratórias, o poço da morte com os motociclistas de cabeça para baixo, a cúpula do circo com o cacho dos trapézios a pender ao meio.  A outra meia cidade é de pedra e mármore e cimento, com o banco, os opiários, os prédios, o matadouro, a escola e tudo o resto. Uma das meias cidades está fixa, a outra é provisória e quando acaba o tempo da sua estadia despregam-na, desmontam-na e levam-na dali para fora, para a enxertar nos terrenos vagos de outra meia cidade.

Assim todos os anos chega o dia em que os operários destacam os frontões de mármore, deitam abaixo as paredes de pedra, os pilares de cimento, desmontam o ministério, o monumento, as docas, a refinaria de petróleo, o hospital, e carregam-nos em reboques de grandes camiões para seguirem de praça e praça o itinerário de todos os anos. Aqui fica a meia Sofrónia das barracas de tiro ao alvo e dos carrosséis, com o grito suspenso da naveta da montanha russa do avesso, e começa a contar quantos meses, quantos dias deverá aguardar antes eu retorne a caravana e recomece a vida inteira.



Ítalo calvino
as cidades invisíveis
trad. josé colaço barreiros
teorema
1999




27 abril 2017

mário cesariny / lord bevan em lisboa



Ora deixai-me dizer
que vejo tudo ao contrário
do que era lícito ver

Ontem encontrei um operário
todo de pernas para o ar
no bolso de um usurário

«Que linda vista para o mar!»
dizia – e dizendo isto
tinha uns olhos a chorar

que eram tal qual os do Cristo
nos bonecos de se orar.
De repente o usurário

vai para o bolso do operário
«Que linda vista para o campo!»
dizia – e dizendo isto

escondia num lenço branco
um dinheirinho
que era a túnica do Cristo
à moda do Minho.

Vai daí veio a polícia
o exército a milícia
com trinta carros de assalto

e um capitão muito alto.
Zás! Zim! Bum! já nada vejo
e até creio que morri.

«Que linda vista para o Tejo!»

 – Mas o que é que se passa aqui?




mário cesariny
nobilíssima visão
assírio & alvim
1991




26 abril 2017

juan luís panero / os abandonados da morte



Um, com o punho apoiado no queixo,
outro, com a cabeça enfiada nas mãos,
e o terceiro de olhos postos no vazio,
os três velhos dormitam à roda da mesa
na esplanada de um bar.
Aquecidos pelo café, aguardam, pacientes
ou impacientes, a desconhecida
que os visita em sonhos,
e acaricia as máscaras os seus rostos,
que o suor desenha e borra.
De súbito, o ruído de uma mota
e um casal jovem e enlaçado cruza a estrada,
depois o estrondo, os previsíveis sinais da morte,
que busca juventude e não corpos decrépitos.
Os três velhos entreolham-se e choram o seu abandono.



juan luís panero
antes que chegue a noite
versões de antónio cabrita e teresa noronha
fenda
2000





25 abril 2017

mário dionísio / à tua volta



102

À tua volta
espalha a alegria

Não o contentamento
esse cântaro quebrado
num mundo sitiado
onde tudo nos magoa
e vira
contra tudo
o grande riso dos engenhos
para esmagar
o amor e a ternura

Não o contentamento
esse estou-me nas tintas dos velhos manhosos
coração ausente hilariedade
até nos tira a fome e a vontade
e tu próprio dilacerado
cativo
da ironia suja
dos arames farpados
dos sentimentos sepultados

Onde quer que sejas
onde quer que estejas
em liberdade
sem liberdade
acorrentado fustigado fica de pé


mário dionísio
poesia completa
le feu qui dort (1967)
imprensa nacional-casa da moeda
2016



24 abril 2017

herberto helder / transforma-se o amador na coisa amada




«Transforma-se o amador na coisa amada», com seu
feroz sorriso, os dentes,
as mãos que relampejam no escuro. Traz ruído
e silêncio. Traz o barulho das ondas frias
e das ardentes pedras que tem dentro de si.
E cobre esse ruído rudimentar com o assombrado
silêncio da sua última vida.
O amador transforma-se de instante para instante,
e sente-se o espírito imortal do amor
criando a carne em extremas atmosferas, acima
de todas as coisas mortas.



Transforma-se o amador. Corre pelas formas dentro.
E a coisa amada é uma baía estanque.
É o espaço de um castiçal,
a coluna vertebral e o espírito
das mulheres sentadas.
Transforma-se em noite extintora.
Porque o amador é tudo, e a coisa amada
é uma cortina
onde o vento do amador bate no alto da janela
aberta. O amador entra
por todas as janelas abertas. Ele bate, bate, bate.
O amador é um martelo que esmaga.
Que transforma a coisa amada.



Ele entra pelos ouvidos, e depois a mulher
que escuta
fica com aquele grito para sempre na cabeça
a arder como o primeiro dia do verão. Ela ouve
e vai-se transformando, enquanto dorme, naquele grito
do amador.
Depois acorda, e vai, e dá-se ao amador,
dá-lhe o grito dele.
E o amador e a coisa amada são um único grito
anterior de amor.



E gritam e batem. Ele bate-lhe com o seu espírito
de amador. E ela é batida, e bate-lhe
com o seu espírito de amada.
Então o mundo transforma-se neste ruído áspero
do amor. Enquanto em cima
o silêncio do amador e da amada alimentam
o imprevisto silêncio do mundo
                                                         e do amor.



herberto helder
poesia toda
a colher na boca
assírio & alvim
1996