04 março 2016

david mourão-ferreira / presídio



Nem todo o corpo é carne … Não, nem todo,
Que dizer do pescoço, às vezes mármore,
às vezes linho, lago, tronco de árvore,
nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco …?

E o ventre, inconsistente como o lodo? …
E o morno gradeamento dos teus braços?
Não, meu amor … Nem todo o corpo é carne:
é também água, terra, vento, fogo …

É sobretudo sombra à despedida;
onda de pedra em cada reencontro;
no parque da memória o fugidio

vulto da Primavera em pleno Outono …
Nem só de carne é feito este presídio,
pois no teu corpo existe o mundo todo!



david mourão-ferreira
obra poética
editorial presença
1996



03 março 2016

per aage brandt / se mudares a entoação duma frase



*
se mudares a entoação duma frase,
por pouco que seja, então é outro que
falará na frase, e se mudares a sua velocidade,
então é outro que falará, e se pegares
na frase com uma pinça como a um in-
secto ou a um preparado, ou se nela, nela repetires
qualquer coisa, então estarás a falar com ironia
e, assim, não poderás estar a falar a sério,
porque o que disseres ou é falso ou tão verdadeiro, que
nem sequer será possível prenunciá-lo

*

  
per aage brandt
livro da noite
trad. maria joão reynaud
poetas em mateus
quetzal
2004



02 março 2016

antónio quadros ferro / ou a empatia



Há-de haver um fundo inesperado no extremo oposto onde
morrem os sonhos, sob os pés onde procuramos a própria
sombra, fundida talvez à luz que um dia ameaçou o regresso
das dores passadas, logo a seguir à infância, muito antes da
poesia.


antónio quadros ferro
ou a empatia
artes e letras atelier
2015






01 março 2016

nicanor parra / paisagem




Vedes essa perna humana dependurada da lua
Como uma árvore crescendo para baixo
Essa perna temível que flutua no vazio
Iluminada apenas pelos raios
Da lua e o ar do esquecimento?

  
nicanor parra
trad. albano martins
relâmpago, revista de poesia nº 17
outubro 2005



29 fevereiro 2016

christoph wilhelm aigner / dois pontos



O vento corre de pés frios
e atira chuva fina como lâminas
corta e fere-nos o rosto
Somos dois pontos num campo
que aparentemente cegos e sem fundamento
se movem um em direcção ao outro


christoph wilhelm aigner
a negação do relógio de pêndulo
stuttgart, DVA, 1996
trad. maria teresa dias furtado
relâmpago, revista de poesia nº 17
outubro 2005


28 fevereiro 2016

reinaldo ferreira / bispo de pádua


              (fragmento)

Ora o céu não é um pálio
Para a passagem de quem
Vai para o trono da morte
Desde as entranhas da mãe,
Nem o mundo coroação,
Nem as vidas que pisamos
Poeira erguida, ao de leve,
Pelo manto que envergamos,
Nem Deus o erro prudente,
Degrau de altura do trono,
Osso de esp’rança atirado
À boca dos cães sem dono.
Nós somos mais, porque vamos
Lutando contra o capricho
Que fez de nós uma estrela
Num firmamento de lixo.


reinaldo ferreira
sião
organização de al berto, paulo da costa domingos
e rui baião
frenesi
1987



27 fevereiro 2016

álvaro lapa / o deserto



O deserto sem nexo, inesperado, tal como surge metaforicamente sentido no imponderável percurso de além-tréguas. Sobrecadência de algum meio-dia já percorrido, já esgotado (em corridas, em percursos múltiplos), e aí se anuncia um excedente percurso a acometer e nesse percurso se revela o deserto. É a experiência pura da terra abrasada, desassombrada, enigmática de neutra. Estranha ao caminhante. Envolve a luz, a distância e a mortalidade consumada do caminhante. A finitude, e os vários amarelos dessas horas solares. Meio-dia, ou mais uma, duas, até sete meias-horas após o meio-dia: as horas magnas da imolação desértica. Em qualquer estrada anexa a um lugar povoado, ao sul. Espírito dos lugares circunvalantes, nas 7 meias-horas do meio-dia, ao sul. Experiência que pode ser instantânea, intervalar. Basta que surja sobre, a mais que, a cadência adquirida de uma manhã esgotada. É nesse além-tréguas, nessa sobre intimidade que o deserto consiste. Ir de rastos, a-té-ao-fim-do-es-pa-ço.


álvaro lapa
sião
organização de al berto, paulo da costa domingos
e rui baião
frenesi
1987



26 fevereiro 2016

cesare pavese / paternidade



Homem só, diante do mar inútil,
À espera da noite, à espera da manhã.
As crianças vêm brincar, mas este homem
Não vê brincar nenhuma junto de si.
Grandes nuvens erguem um palácio sobre as águas
Que todos os dias desaba e ressurge, e põe cor
Nos rostos das crianças. Sempre haverá o mar.

A manhã fere. Sobre esta húmida praia
O sol rasteja, agarrado às redes e às pedras.
Ao sol nublado, o homem caminha junto
Ao mar. não olha as lentas espumas
Que sem descanso tentam escorrer na areia.
A esta hora as crianças dormem ainda
Na tepidez da cama. A esta hora, mulheres
Dormem nas suas camas. Estariam a fazer amor
Se não estivessem sós. O homem despe-se lentamente
E nu como as mulheres longínquas entra no mar.

Depois, à noite, quando o mar se encobre, ouve-se
O grande vazio debaixo das estrelas. As crianças
Nas casas tingidas de vermelho caem de sono,
Por vezes em lágrimas. O homem, cansado de esperar,
Ergue os olhos para as estrelas, que não ouvem nada.
A esta hora, há mulheres a despir crianças
E a adormecê-las. Também as há na cama,
Abraçadas a um homem. Pela janela escura
Entra um sopro rouco, e ninguém o escuta
A não ser o homem que conhece todo o desprezo do mar.


cesare pavese
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de ernesto sampaio
assírio & alvim
2001




25 fevereiro 2016

gonçalo m. tavares / o número 76



Uma vaca, com o número 76 na orelha, está morta, o corpo caído sobre a neve. O excessivo frio súbito matou vários animais – dezenas, centenas, milhares de animais. Mas nenhum animal era igual àquela vaca com o número 76 desenhado numa placa amarela agarrada à orelha. Esse número, sabe-se lá porquê, assusta.

  
gonçalo m. tavares
short movies
caminho
2011



24 fevereiro 2016

luís filipe castro mendes / casas na noite



A luz que vem do passado não bate de frente nas casas,
porque ninguém olha de frente para o que passou ou morreu
e demasiadas coisas fomos deixando assim, mal arrumadas por casas velhas,
até nos darmos conta que desse modo aceleramos o nosso próprio fim
 – mas isso é indiferente aos astros e à luz, a sombra vai caindo e a noite
marcha sobre os nossos passos com a leveza de uma criança.
A vida também não nos olha de frente: fita-nos assim de soslaio
E nós, subreptícios no semblante, fazemo-nos desentendidos.
A poesia é mais uma forma de desconversar, aqui, agora,
ou até nos gritos de quem apenas implora “olhem para mim”,
quando irremediavelmente ficou escuro
e a luz não chega para todos e a noite que nos espera
será para sempre de lua nova.


luís filipe castro mendes
relâmpago
revista de poesia
nr. 36/37 abril/outubro
2015



23 fevereiro 2016

antonin artaud / a rua



A rua sexual anima-se
ao longo das caras mal-avindas,
os cafés pipilando de crimes
desenraízam as avenidas.

As mãos de sexo queimam os bolsos
e os ventres fervem por baixo;
 entrechocam-se os pensamentos,
e as cabeças menos que os buracos.


antonin artaud
doze nós numa corda
poemas mudados para português
por herberto helder
assírio & Alvim
1997



22 fevereiro 2016

luís quintais / quarto de hotel



A cada um a sua Balbec.
Aqui regressas. Aqui escutas
o  búzio da morte.

Entre ti e a gaze do sono
um perigo embala-te:
incerta falésia onde te precipitarás.



luís quintais
angst
falésia
livros cotovia
2002



21 fevereiro 2016

thom gunn / fragmento nocturno



O nevoeiro desce lentamente a colina
E conforme subo mais se adensa:
Fecha-se à minha volta, apodera-se de mim
Como lençóis caídos sobre o chão.

Aqui ficam as últimas e ascendentes ruas,
Galerias, que correm pelas veias do tempo,
Quase familiares, onde rastejo em direcção ao sono
Como nevoeiro e pelo nevoeiro como sono.



thom gunn
a destruição do nada e outros poemas
trad. maria de lurdes guimarães
relógio d´água
1993