09 janeiro 2016

tiago fabris rendelli / para leopoldo maría panero



eletrochoques ritmam a melodia,
já não tenho mais corpo,
meus olhos se fundiram
para além das janelas
sujas do teu quarto.
escuto o teu grito de borracha abafado,
enquanto teu cérebro sofre da sanidade
de mil elefantes.
tua verdade não é o mijo na calça,
nem o olhar mirando o nada,
nem os teus delírios de infância
amaldiçoados por cachorros loucos.
Mondragón!
Mondragón!
Mondragón!
ecoa o grunhido desse bicho
que engole verdade
e caga demência.
o real habita uma criança morta,
se vê nos reflexos dos retratos
daqueles que não lembramos mais,
está impressa com sangue nos mapas
que apontam continentes desaparecidos.
pela loucura daqueles que se arrependem do suicídio.
pela insanidade dos que ensinam a liberdade no cárcere.
pelo amor que coloca secura nas flores.
pelo teu cigarro aceso e teu fumar de estrelas.
por tudo isso e mais,
grito o teu nome:
Leopoldo!
Leopoldo!
Leopoldo!
tua lucidez
é uma serpente com asas
a voar pelos séculos.


tiago fabris rendelli




08 janeiro 2016

manuel antónio pina / os tempos não



Os tempos não vão bons para nós, os mortos.
Fala-se de mais nestes tempos (inclusive cala-se).
As palavras esmagam-se entre o silêncio
que as cerca e o silêncio que transportam.

É pelo hálito que te conheço  no entanto
o mesmo escultor modelou os teus ouvidos
e a minha voz, agora silenciosa porque nestes tempos
fala-se de mais são tempos de poucas palavras.

Falo contigo de mais assim me calo e porque
te pertence esta gramática assim te falta
e eis por que não temos nada a perder e por que é
cada vez mais pesada a paz dos cemitérios.


manuel antónio pina
ainda não é o fim
nem o princípio do mundo
calma
é apenas um pouco tarde
erva daninha
1982



07 janeiro 2016

a. m. pires cabral / epígrafe



Se algum dia alguém chegar a ler
este dizer agreste,
provavelmente pensará: que pálida lanterna;
não é deste metal que a luz é feita.

Calma. Pois não.

Mas quem assiduamente
visita os desvãos onde a noite se acoita
não precisa de mais que o clarão desta treva,
desta cegueira sem cão se sem bengala,
para no escuro rasgar o seu caminho
e nele ir progredindo às arrecuas.


a.  m. pires cabral
a noite em que a noite ardeu
cotovia
2015




06 janeiro 2016

manuel de freitas / largo do peneireiro


                                            [para a Inês]

  
Tudo se perde, claro. Mas lembrarei
seguramente os olhos vermelhos
de um gato de Alfama e todos os poemas
que não escrevi contra mim próprio,
naquele pátio aberto a ciladas e dissipações.

Vinho tinto, charros, paixões escarnecidas
num diálogo de guitarras desatentas.
Tu fazias vinte e quatro anos, é certo,
e dizias com maior razão que aqueles olhos na noite
pertenciam a uma gata. Perdida, achada luz,

quando se percebe o desabrigo, a difícil
pertença a esta espécie de gente,
comunidade de louco deserdados a que
o empregado, de bigode, chamou
«o pessoal da bebedeira». Porque isto
que não passa, sabemo-lo bem, é a vida

ou a morte, uma perda que dura
e que não se apaga assim, sob um cerco
de navalhas ou de inúteis, vigorosos
sentimentos. Por exemplo o amor,
essa estranha mistura de angústia, desejo
e novamente angústia. O não apenas sexo
de adormecer em braços reais
que afastem para sempre o mundo.

Mas acabo por subir cambaleante as escadas
à hora em que o vizinho de baixo
se prepara para ser uma pessoa altamente
honrada, no talho de bairro
que lhe dá sentido aos dias.

E não é dor, nem prazer, nem
ressentimento o que um corpo
sente, às seis da manhã, prostrado
na lama involuntária destes versos.
Antes um vazio imperfeito, uma
ferida sem lugar que nenhuns lábios,
sequer os teus, saberiam calar.

Fizeste, já disse, vinte e quatro anos.
Não esperes grande coisa da felicidade.


manuel de freitas
[ sic ]
assírio & alvim
2002




05 janeiro 2016

manuel a. domingos / soneto



Nunca procurei
enganar a vida
e não vou dizer
que ela me enganou

Não: a vida tem sido
honesta comigo
O problema é
dar-lhe carta branca

Pois a minha precariedade
é – acima de
tudo – existencial

Contra ela não há
contrato ou vínculo
que me valha



manuel a. domingos
voo rasante
antologia de poesia contemporânea
mariposa azual
2015




04 janeiro 2016

sylvia plath / tu és



Como um palhaço, contentíssimo, mãos no chão,
Pés para as estrelas, cabeça como a lua,
Com guelras como os peixes. O uso comum de uma prática
Nos polegares apoiado à maneira de um dodó.
Enrolado em ti próprio como numa bobine,
A perscrutar o escuro como faz a coruja.
Calado como um nabo desde o Quatro
De Julho até ao dia das Mentiras,
Ó elevador das alturas, meu tesouro.

Esparso como o nevoeiro e esperado como o correio.
De mais longe do que a Austrália.
Atlas de costas curvadas, o nosso camarão mais viajado.
Recolhido como uma flor em botão e à vontade
Como sardinha em lata.
Um cesto de enguias ondeantes.
Saltitante como feijão mexicano.
Certo, tendo razão como uma conta bem feita.
Uma ardósia limpa e o teu rosto nela.

  

sylvia plath
ariel
trad. maria fernanda borges
relógio d´ água
1996




03 janeiro 2016

josé gomes ferreira / comício



Vivam, apenas.

Sejam bons como o sol.
Livres como o vento.
Naturais como as fontes.

Imitem as árvores dos caminhos
que dão flores e frutos
sem complicações.

Mas não queiram convencer os cardos
a transformar os espinhos
em rosas e canções.

E principalmente não pensem na Morte.
Não sofram por causa dos cadáveres
que só são belos
quando se desenham na terra em flores.

Vivam, apenas.
A Morte é para os mortos!


josé gomes ferreira
comício 1934
poesia I
portugália
1972




02 janeiro 2016

franco loi / dióspiros, frutos de deus sobre manteiga de neve,



Dióspiros, frutos de Deus sobre manteiga de neve,
como maçãs-laranjas que um envidraçado ar de pensamentos
baloiça no mar de nuvens dos telhados;
e os peixinhos dourados trocam palavras vãs
presos na turvação do tanque;
e o Bobi, negro cachorro, cão nojento
que lambe merda e vai, como os cegos
que te passam rente com o frio dos mortos;
e, de lazeira, a tartaruga
procura, esgravatando a terra,
a flor do paraíso, a hortênsia, as libélulas
que voam feitas prata para o azedo da uva
ao longo do muro encantado com o sol;
e Meri, horizonte feito de tristeza,
a senhora dos cães, rapariguinha que, do céu
ciosa, roubava o frio de janeiro
às estrelas de pedra sob os dióspiros luarentos;
tu, Meri,
que uma criada deu à luz,
pássaro de esconder, vestido que passava
entre as grades e as glicínias, olhos de sol,
e a sombra do jardim parecia ela,
passarinho,
envelhecida por três metros de nuvens entrevistos
no gelo das vidraças, pensamentos de chaminés,
a fronte que esquecia os chamamentos
ao sonhar-se, o bando de garotos pelas ruas de neve;
Meri das flores,
mestra de garotada,
aparição de amor que, aos dezoito anos,
com teus silêncios e teu frio saber,
num morrer precipitado e ansioso nos deixaste
a nós, fátuos, a nós, fanfarrões e malacabados como tu,
quando, sobre o longínquo alcatrão de uma estrada qualquer,
o céu era mortalha de fingidas nuvens.


franco loi
memória
colecção poetas em mateus
trad. rosa alice branco
quetzal
1993




01 janeiro 2016

alberto caeiro / se eu morrer novo



Se eu morrer novo,
Sem poder publicar livro nenhum,
Sem ver a cara que têm os meus versos em letra impressa,
Peço que, se se quiserem ralar por minha causa,
Que não se ralem.
Se assim aconteceu, assim está certo.

Mesmo que os meus versos nunca sejam impressos,
Eles lá terão a sua beleza, se forem belos.
Mas eles não podem ser belos e ficar por imprimir,
Porque as raízes podem estar debaixo da terra
Mas as flores florescem ao ar livre e à vista.
Tem que ser assim por força. Nada o pode impedir.

Se eu morrer muito novo, oiçam isto:
Nunca fui senão uma criança que brincava.
Fui gentio como o sol e a água,
De uma religião universal que só os homens não têm.
Fui feliz porque não pedi cousa nenhuma,
Nem procurei achar nada,
Nem achei que houvesse mais explicação
Que a palavra explicação não ter sentido nenhum.

Não desejei senão estar ao sol ou à chuva —
Ao sol quando havia sol
E à chuva quando estava chovendo (E nunca a outra cousa),
Sentir calor e frio e vento,
E não ir mais longe.

Uma vez amei, julguei que me amariam,
Mas não fui amado.
Não fui amado pela única grande razão —
Porque não tinha que ser.

Consolei-me voltando ao sol e à chuva,
E sentando-me outra vez à porta de casa.
Os campos, afinal, não são tão verdes para os que são amados
Como para os que o não são.
Sentir é estar distraído.


alberto caeiro
poemas inconjuntos




31 dezembro 2015

mário cesariny / estado segundo



VII

Dorme meu filho
dezenas de mãos femininas trabalham
a atmosfera
onde os namorados pensam
cartazes simples
um por exemplo
minúsculo crustáceo denominado ciclope
por baixo da pele ou entre os músculos

Dorme meu filho
o amor
será
uma arma esquecida
um pano qualquer como um lenço
sobre o gelo das ruas





mário cesariny
pena capital
assírio & alvim
1982




30 dezembro 2015

jorge de sena / aviso de porta de livraria



Não leiam delicados este livro,
sobretudo os heróis do palavrão doméstico,
as ninfas machas, as vestais do puro,
os que andam aos pulinhos num pé só,
com as duas castas mãos uma atrás e outra adiante,
enquanto com a terceira vão tapando a boca
dos que andam com dois pés sem medo das palavras.
E quem de amor não sabe fuja dele:
qualquer amor desde o da carne àquele
que só de si se move, não movido
de prémio vil, mas alto e quase eterno.
De amor e de poesia e de ter pátria
aqui se trata: que a ralé não passe
este limiar sagrado e não se atreva
a encher de ratos este espaço livre
onde se morre em dignidade humana
a dor de haver nascido em Portugal
sem mais remédio que trazê-lo n’alma.

25/1/1972


jorge de sena
exorcismos
poesia III
1978




29 dezembro 2015

harold pinter /paris


A cortina branca às pregas
Ela dá dois passos e volta-se,
A cortina imóvel, a luz
Vacila nos seus olhos.

Os candeeiros são dourados.
A tarde inclina-se, em silêncio.
Ela dança na minha vida.
O dia branco arde.

1975


harold pinter
várias vozes
tradução miguel castro caldas
quasi
2006




28 dezembro 2015

mário de sá-carneiro / álcool


IV

Guilhotinas, pelouros e castelos
Resvalam longamente em procissão;
Volteiam-me crepúsculos amarelos,
Mordidos, doentios de roxidão.

Batem asas de auréola aos meus ouvidos,
Grifam-me sons de cor e de perfumes,
Ferem-me os olhos turbilhões de gumes,
Descem-me na alma, sangram-me os sentidos.

Respiro-me no ar que ao longe vem,
Da luz que me ilumina participo;
Quero reunir-me, e todo me dissipo -
Luto, estrebucho...Em vão! Silvo pra além...

Corro em volta de mim sem me encontrar...
Tudo oscila e se abate como espuma...
Um disco de oiro surge a voltear...
Fecho os meus olhos com pavor da bruma...

Que droga foi a que me inoculei?
Ópio de inferno em vez de paraíso?...
Que sortilégio a mim próprio lancei?
Como é que em dor genial eu me eternizo?

Nem ópio nem morfina. O que me ardeu,
Foi álcool mais raro e penetrante:
É só de mim que ando delirante -
Manhã tão forte que me anoiteceu.


                                       Paris 1913 - maio 4


mário de sá-carneiro
poemas completos
edição fernando cabral martins
assírio & alvim
2001