10 junho 2013

antónio josé forte / reservado ao veneno




Hoje é um dia reservado ao veneno
e às pequeninas coisas
teias de aranha filigranas de cólera
restos de pulmão onde corre o marfim
é um dia perfeitamente para cães
alguém deu à manivela para nascer o sol
circular o mau hálito esta cinza nos olhos
alguém que não percebia nada de comércio
lançou no mercado esta ferrugem
hoje não é a mesma coisa
que um búzio para ouvir o coração
não é um dia no seu eixo
não é para pessoas
é um dia ao nível do verniz e dos punhais
e esta noite
uma cratera para boémios
não é uma pátria
não é esta noite que é uma pátria
é um dia a mais ou a menos na alma
como chumbo derretido na garganta
um peixe nos ouvidos
uma zona de lava
hoje é um dia de túneis e alçapões de luxo
com sirenes ao crepúsculo
a trezentos anos do amor a trezentos da morte
a outro dia como este do asfalto e do sangue
hoje não é um dia para fazer a barba
não é um dia para homens
não é para palavras



antónio josé forte
40 noites de insónia de fogo de dentes numa girândola
implacável e outros poemas
lisboa
1958


09 junho 2013

rui costa / a trapezista



Começou a subir aos telhados.
Começou a resolver neles muito tempo.

(Primeiro, os dedos na janela mais acima.
Depois, era o cabelo que subia.
Um pulso a içar a alma para outra cidade.)

Daqui vê-se tudo.
Os gatos deitam-se e lambem-me os pés.

Os pés sobem molhados pela chuva.
Os homens congeminam negócios estendidos nas mulheres.

As crianças gritam dentro das casas quando os sonhos
lhes arrancam pedaços das costas.

Os homens caminham com quadros pendurados nos joelhos
As pessoas escrevem artigos nas revistas
sobre o que seria o mundo se alguém do outro lado as ouvisse

E é então que eu saio
e sobre os ombros das árvores disponho a economia
cravando-lhe os dentes ou
roçando apenas o meu sexo
no trapézio

Inclino-me sobre a sua demência particular
neste dia emparedado entre sucessos e crisântemos
e as crises
e ouço as ruas onde lá em baixo uma pessoa
ajeita um pouco melhor os ossos

Aquela mulher fabricou uma cozinha resistente a tudo
atravessou os séculos assoberbada de electrodomésticos
inexpugnáveis – ao fim-de-semana envolvia-os em celofane e espanava
um pouco melhor os filhos.

Mais à frente o parque onde as estratégias se apresentam -
o presidente à frente, seguido pelo hidrogénio ou o hélio
– conforme a posição do sol no buço da democracia –
e o écran reflectindo o écran e a
maresia.

Aqui no alto rodo os pés e alongo mais os braços.
Nos primeiros meses estendia-me com o corpo para baixo e deixava
o sangue inundar a cabeça. Via manchas vermelhas da
menstruação por entre os amigos que prometia esquecer.
Eles traziam-me os seus corpos nus e eu aquecia as suas unhas
cravadas pelo vidro.

Dizem: se os videntes permanecem firmes perante pequenos tiranos
podem chegar a suportar a presença do incognoscível.
Todo o conhecimento é o resultado de uma deslocação.
Se é verdade que todos os caminhos são iguais?
Sim. Pois não te conduzem a lugar nenhum.
Se quiseres fazer como o feiticeiro índio da tribo iaqui,
perguntarás: e esse caminho tem coração?

Perdi a minha agenda de fenómenos electromagnéticos.
Não sei por isso de que lado esperar
este súbito irromper
da melancolia.



rui costa
metphoria
guimarães2012
fundação cidade de guimarães
outubro 2012


08 junho 2013

gil t. sousa / mas chegam pela água


18

mas chegam pela água
as folhas
e ele
tão só e tão forte
guarda nas mãos
(talvez nas mãos)
o mistério lento das cores
tem nos olhos
a inquietação anunciada
das árvores
escreve estações
no ser que deserta
as ruas
e passa
ainda passa

como se fosse
à vida



gil t. sousa
água forte
2005



07 junho 2013

boris vian / quero uma vida em forma de espinha



Quero uma vida em forma de espinha
Num prato azul
Quero uma vida em forma de coisa
No fundo dum sítio sozinho
Quero uma vida em forma de areia nas minhas mãos
Em forma de pão verde ou de cântara
Em forma de sapata mole
Em forma de tanglomanglo
De limpa-chaminés ou de lilás
De terra cheia de calhaus
De cabeleireiro selvagem ou de édredon louco
Quero uma vida em forma de ti
E tenho-a mas ainda não é bastante
Eu nunca estou contente



boris vian
canções e poemas
tradução de irene freire nunes e fernando cabral martins
assírio & alvim
1997




06 junho 2013

miguel-manso / o diabo em alta definição



a caminho do Pátio do Salema
reparei num homem de pé, numa ruela, que assistia
à tourada por telemóvel

o pasodoble alumiava-lhe o rosto

Évora é um labirinto estranho, quase perfeito
e belo de mais para o que contém



miguel-manso
resumo, a poesia em 2012
documenta
2013


05 junho 2013

paul claudel / templo



14

Templo
Qualquer coisa
se passa
na sombra
e
de repente
ilumina-se
uma chama
no espelho de prata



paul claudel
cent frases pour éventails (1927)
vozes da poesia europeia III
traduções de david mourão ferreira
colóquio letras 165
fundação calouste gulbenkian
2003



04 junho 2013

luis muñoz / roupa de lã



─  Não, quero estar acordado ─ diz,
embrulhado nas mantas espumosas
que os poemas tecem em redor do mundo,
quando lhe ofereço um copo.

Envergonha-me querer dormir agora,
e já não ter sede, e pressentir um frio.


luís muñoz
trípticos espanhóis vol. III
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2004



03 junho 2013

william carlos williams / o poema



Tudo está
no som. Uma canção.
Raramente uma canção. Deveria

ser uma canção - com
pormenores, vespas,
uma genciana - algo
imediato, tesouras

abertas, olhos
de mulher - centrífuga
ao despertar, centrípeta



william carlos williams
antologia breve
tradução josé agostinho baptista
assírio & alvim
1993



02 junho 2013

samuel beckett / pavor nem




cabeça amarra
in ex quasi morta
até lacerar
muito quedo
leve tremor
descerra o olho
que re quedo
re cerra

cabeça redonda
macio de cinza
um olho
nem sabe quando
logo ofuscado
ciclope não
de lado
o susto

no rosto
se ex tende
imenso na
maior
brancura de neve
lençolando tudo
cabeça de asilo
única mácula



samuel beckett
relâmpago” nr.13
trad. manuel portela

10/2003


31 maio 2013

herberto helder / fôsses tu um grande espaço e eu tacteasse





fôsses tu um grande espaço e eu tacteasse
com todo o meu corpo sôfrego e cego



herberto helder
servidões
assírio & alvim
2013




30 maio 2013

marosa di giorgio / os papéis selvagens


     
2


    O caracol, essa espiral de fumo que não cresce,
                                                                                com o rebordo intensamente rosado,
                                                                                                                                           um querubim,
                                                                                                                                   uma casa delicada.

  De repente, alonga a cabeça e os pés transparentes,
  e caminha como um senhor,
                                               uma jovem dos céus,
                                                                                  dos fúnebres,
                                                                                                         tem surdas trombetas sexuais.

  É, ao mesmo tempo, o senhor e a jovem.
  Nessa pedacinho branco estão Hermes e Afrodite;
                                                                                 deste modo detém-se e conjuga-se sozinho.

  E, após o segundo perturbador, prossegue, sobre os rostos rosados das rosas, como uma corroça,
                                                                                                             uma miniporcelana transumante.


            Até que deixa de olhar.


  Ou cai no prado essa caixinha, verde, desolada




marosa di giorgio
os papéis selvagens
tradução de rosa alice branco
encontros de talábriga



29 maio 2013

mário cesariny / a criança




Objecto que se usava para provocar solidão.
Os últimos a conhecerem o seu emprego fo-
ram os druidas, que lhe chamavam «o prego
da melancolia» e o cravavam na testa das
mulheres para que fossem puras e isentas
de precipitação.
Há fósseis que permitem localizar o apare-
cimento deste utensílio durante todo o se-
gundo glaciar.





mário cesariny
manual de prestidigitação
assírio & alvim

1981

28 maio 2013

guillevic / coisas



Pratos de faiança, usados,
De onde o branco se escapa,
Viestes novos
Para nossa casa.

Aprendemos imenso
Desde esse tempo


  
guillevic
choses, terraqué (1942)
vozes da poesia europeia III
traduções de david mourão ferreira
colóquio letras 165
fundação calouste gulbenkian
2003