04 junho 2013

luis muñoz / roupa de lã



─  Não, quero estar acordado ─ diz,
embrulhado nas mantas espumosas
que os poemas tecem em redor do mundo,
quando lhe ofereço um copo.

Envergonha-me querer dormir agora,
e já não ter sede, e pressentir um frio.


luís muñoz
trípticos espanhóis vol. III
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2004



03 junho 2013

william carlos williams / o poema



Tudo está
no som. Uma canção.
Raramente uma canção. Deveria

ser uma canção - com
pormenores, vespas,
uma genciana - algo
imediato, tesouras

abertas, olhos
de mulher - centrífuga
ao despertar, centrípeta



william carlos williams
antologia breve
tradução josé agostinho baptista
assírio & alvim
1993



02 junho 2013

samuel beckett / pavor nem




cabeça amarra
in ex quasi morta
até lacerar
muito quedo
leve tremor
descerra o olho
que re quedo
re cerra

cabeça redonda
macio de cinza
um olho
nem sabe quando
logo ofuscado
ciclope não
de lado
o susto

no rosto
se ex tende
imenso na
maior
brancura de neve
lençolando tudo
cabeça de asilo
única mácula



samuel beckett
relâmpago” nr.13
trad. manuel portela

10/2003


31 maio 2013

herberto helder / fôsses tu um grande espaço e eu tacteasse





fôsses tu um grande espaço e eu tacteasse
com todo o meu corpo sôfrego e cego



herberto helder
servidões
assírio & alvim
2013




30 maio 2013

marosa di giorgio / os papéis selvagens


     
2


    O caracol, essa espiral de fumo que não cresce,
                                                                                com o rebordo intensamente rosado,
                                                                                                                                           um querubim,
                                                                                                                                   uma casa delicada.

  De repente, alonga a cabeça e os pés transparentes,
  e caminha como um senhor,
                                               uma jovem dos céus,
                                                                                  dos fúnebres,
                                                                                                         tem surdas trombetas sexuais.

  É, ao mesmo tempo, o senhor e a jovem.
  Nessa pedacinho branco estão Hermes e Afrodite;
                                                                                 deste modo detém-se e conjuga-se sozinho.

  E, após o segundo perturbador, prossegue, sobre os rostos rosados das rosas, como uma corroça,
                                                                                                             uma miniporcelana transumante.


            Até que deixa de olhar.


  Ou cai no prado essa caixinha, verde, desolada




marosa di giorgio
os papéis selvagens
tradução de rosa alice branco
encontros de talábriga



29 maio 2013

mário cesariny / a criança




Objecto que se usava para provocar solidão.
Os últimos a conhecerem o seu emprego fo-
ram os druidas, que lhe chamavam «o prego
da melancolia» e o cravavam na testa das
mulheres para que fossem puras e isentas
de precipitação.
Há fósseis que permitem localizar o apare-
cimento deste utensílio durante todo o se-
gundo glaciar.





mário cesariny
manual de prestidigitação
assírio & alvim

1981

28 maio 2013

guillevic / coisas



Pratos de faiança, usados,
De onde o branco se escapa,
Viestes novos
Para nossa casa.

Aprendemos imenso
Desde esse tempo


  
guillevic
choses, terraqué (1942)
vozes da poesia europeia III
traduções de david mourão ferreira
colóquio letras 165
fundação calouste gulbenkian
2003




27 maio 2013

inês dias / um estranho no meu túmulo



Chegámos tarde a nós.
Eu tinha a pele gasta, o coração no fio.
Tu eras um longo muro de cimento areado
em que deixava a carne inteira
a caminho do encontro.

A primavera ficava-nos sempre
à esquerda, e tu cada vez mais
dentro de mim até não sentir nada,
até estares já do outro lado.
Para trás, a cova matinal na almofada,
o postal entre a leitura suspensa,
o número a chamar de um fantasma.

Se apagar as marcas de onde pousaste
a cabeça sobre a minha vida,
se ganhar novo espaço para o fôlego,
faz-me só um favor:
nunca mais me reconheças.



inês dias
resumo, a poesia em 2012
documenta
2013



26 maio 2013

o amor transido


  (Ode anacreôntica, XXXIII West)
   (Grécia, data desconhecida)



A noite passada,
à hora em que a Ursa
mais perto discursa
da mão do Boieiro;
e o sono profundo
no grémio fagueiro
por todo esse mundo
restaura os mortais,
em meio era a noite;
o exemplo dos mais
no leito eu seguia;
sereno dormia...
À porta imprevisto
Cupido me bate!
À pressa me visto;
redobra o rebate;
acudo a correr.
«Sou eu» — diz de fora —
«não tens que temer;
«sou um pequenino
«que vaga a tal hora,
«molhado e sem tino,
«perdido no escuro,
«pois lua não há!»
Ouvi-lo gemendo
de mágoa me corta;
a lâmpada acendo,
franqueio-lhe a porta…
em casa me está!
Descubro (em verdade
mentido não tinha)
gentil criancinha
com arco e carcás.
Remexo nas brasas
da minha lareira;
restauro a fogueira;
as mãos, que são gelo,
lhe aqueço nas minhas,
lhe espremo o cabelo,
lhe enxugo as asinhas;
já frio não faz.
«Vejamos se a chuva»
(dizia e sorria)
«a corda do arco
«me não danaria!»
Levanta-a do chão;
recurva-o, dispara
no meu coração.
A frecha que o vara
parece um tavão.
Eu, dores danadas,
e o doudo às risadas,
de gosto a pular!
«Meu caro hospedeiro»,
(me diz prazenteiro)
«agora é folgar.
«Permite me ausente;
«meu arco está são...
«Quem fica doente
«é teu coração!»



a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de a. f. castilho
assírio & alvim
2001


25 maio 2013

gil t. sousa / quase requiem



17

caminhamos na noite
como verbos sujos numa carta de amor

vencidos pelo tempo e pela luz
perdemos as sombras
e temos no rosto
a condenação das estátuas
a mudez dos seus lábios
o desespero fatal dos seus olhos secos
pela eternidade

que negros navios nos carregaram futuros, destinos
e nos largaram nestas ilhas malditas
nestas geografias podres
a que nunca pertenceremos?

que estranho sangue fizemos correr
nas nossas veias já mortas
ruelas de ruínas queimadas
escombros de palácios onde a alma nos morava
donde foi expulsa toda a esperança
e o sonho se esfumou como incenso no deserto

que brilhantes fantasmas nos tornámos
rindo dos espelhos e das águas
onde nos deixaram as raízes
que nos seguravam da loucura

estamos tão sós, tão podres de agonia
e medo!

o corpo lacrado à dor, as rugas escondidas do tempo
o amor apedrejado às coisas e aos outros
como uma moeda atirada da torre de tortura
duma cidade comida pela peste

que fizemos ao tempo de morrer
com uma mão na nossa mão?



gil t. sousa
água forte
2005



24 maio 2013

abel neves / ouve vou dizer-te


  
ouve vou dizer-te
abre com os dedos uma cereja
daquelas de fazer brinco quando a brisa é boa
tira-lhe o caroço
verás como isso é arrancar o coração do tempo
o carmesim do suco
é o choro e o riso
dos que se amam impacientes e belos



abel neves
resumo, a poesia em 2012
documenta
2013


23 maio 2013

antoni clapés / um dia disseste: parecia a presença de uma ausência




Um dia disseste: parecia a presença de uma ausência
(ou talvez parecesse a própria ausência da ausência).
Nada faltava sob aquele céu figurado.

Também disseste: só a ficção é real,
só aquilo que invento existe
- o resto não é sequer literatura -,

Outro dia congregaste palavras. Palavras
que tinham caído do silêncio
como cinza espalhada por um voo de aves.
Testamento ou herança, aquele livro começou
a inscrever-se nas estâncias brancas
da memória, enquanto um bisturi de luz
fendia as imagens uma a uma: no teu coração
começou a habitar, talvez ainda mais
e para sempre, um tigre com olhos de fogo.


antoni  clapés
poemas                                      
tradução de egito gonçalves



22 maio 2013

josé de almada negreiros / a taça de chá



O Luar desmaiava mais ainda uma máscara caída nas esteiras
bordadas. E os bambus ao vento e os crisântemos nos jardins
e as garças no tanque, gemiam com ele e adivinharam-se o fim.
Em roda tombavam-se adormecidos os ídolos coloridos e os
dragões alados. E a gueixa, porcelana transparente como a
casca de um ovo da Íbis, enrodilhou-se num labirinto que nem
os dragões dos deuses em dias de lágrimas. E os seu olhos ras-
gados, pérolas de Nanquim a desmaiar-se em água confundiam-se
cintilantes no luzidio das porcelanas.

Ele, num gesto último, fechou-lhe os lábios co´as pontas dos dedos,
e disse a finar-se: - chorar não é remédio; só te peço que não me
atraiçoes enquanto o meu corpo for quente. Deixou a cabeça
nas esteiras e ficou. E ela, num grito de graça, ergueu alto os braços
a pedir o Céu para Ele, e a saltitar foi pelos jardins a sacudir as mãos,
que todos os que passavam olhavam para Ela.

Pela manhã vinham os vizinhos em bicos dos pés espreitar por entre os
bambus, e todos viram acocorada a gueixa abanando o morto com um
leque de marfim.

A estampa do pires é igual.



josé de almada negreiros