04 maio 2013

toni montesinos gilbert / vida de areia




Quem dera que fosse feito de pó azul
para me diluir em todas as almas.
Se o meu corpo fosse pó a voar
passagens de céu, com um pouco
de frialdade, mereceria as mortes
irrecuperáveis, para sempre já
empoeirados pela sua ausência histórica.

Perderam-se, ficaram sem sangue.
E foi porque ninguém voltou a chamá-las.
E começaram a sonhar com montanhas,
e mais tarde com pedras, depois com areia
do tempo deserto. E por fim, com pó.
O sonho solitário conduziu-as
a cavar o amor numa estrela,
junto do que nunca puderam ter.

Eu quero chegar a todas as almas,
ser azul para distender o tempo,
ser um horizonte entre vida e morte,
esperar os amanheceres lento,
como se voltasse a nascer, azulado.

Quem dera que estivesse fora do século,
sem correspondência com nenhum espaço
concreto, sentir-me livre como pó
diluído em qualquer das ruas
conhecidas por onde caminhei.
Ser a presença total e absoluta.
Possuir o olhar omnipresente…

Mas apenas sou de carne e osso.
Um dia morrerei e não poderei pensar,
nunca mais, como construir um relógio
para sentir a vida mais extensa.




toni montesinos gilbert
poesia espanhola, anos 90
trad. Joaquim Manuel Magalhães
relógio d´água
2000



03 maio 2013

antónio botto / canções


  
1.

Não. Beijemo-nos, apenas,
Nesta agonia da tarde.

Guarda -
Para outro momento.
Teu viril corpo trigueiro.

O meu desejo não arde
E a convivência contigo
Modificou-me - sou outro. . .

A névoa da noite cai.

Já mal distingo a cor fulva
Dos teus cabelos, - És lindo!

A morte
Devia ser
Uma vaga fantasia!

Dá-me o teu braço: - não ponhas
Esse desmaio na voz.

Sim, beijemo-nos, apenas!,
- Que mais precisamos nós?



antónio botto
 as canções de antónio botto


02 maio 2013

antónio josé forte / lisboa revisitada




Frio frio
como a pedra do rio
- as artes as letras
os cafés do rossio

frio frio
- as mãos
presas à noite por um fio
os amantes ao demónio
anjos e arcanjos ao cio

frio
- a morte
ela e a sua corte
de caudas de pavões
no alto do navio



antónio josé forte
edoi lelia doura
antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa
organizada por herberto helder
assírio & alvim
1985



01 maio 2013

josé régio / narciso



Dentro de mim me quis eu ver. Tremia,
Dobrado em dois sobre o meu próprio poço...
Ah, que terrível face e que arcabouço
Este meu corpo lânguido escondia!

Ó boca tumular, cerrada e fria,
Cujo silêncio esfíngico bem ouço!
Ó lindos olhos sôfregos, de moço,
Numa fronte a suar melancolia!

Assim me desejei nestas imagens.
Meus poemas requintados e selvagens,
O meu Desejo os sulca de vermelho:

Que eu vivo à espera dessa noite estranha,
Noite de amor em que me goze e tenha,
...Lá no fundo do poço em que me espelho!



josé régio


30 abril 2013

daniel faria / dos campos que cultivei…




Dos campos que cultivei duas sementes restaram
O centro
Da pedra e as mãos

Dentro da segunda cultivei a hora de afastar-me
(Não havia ninguém a quem dizer
Já vou)

Dentro da solidão os espantalhos (não lhes fora dada
A companhia dos pássaros)

Abri os braços como as vides nos bardos
Hora após hora (e depois delas) te esperei



daniel faria
poesia
das inúmeras águas
quasi
2003


29 abril 2013

constantino cavafy / a origem


  
Consumara-se o prazer ilícito.
Ergueram-se ambos do catre humilde.
À pressa se vestiram, sem falar.
Saíram separados, furtivamente;
e, ao caminhar inquietos pela rua,
como que receavam que algo neles traísse
em que espécie de amor há pouco se deitavam.

Mas quanto assim ganhou a vida do poeta!
Amanhã, depois, anos depois, serão
escritos os versos de que é esta a origem.

                                                          [1921]



constantino cavafy
90 e mais poemas
trad jorge de sena
edições asa
2003



28 abril 2013

franz kafka / diários




1912, 12 de março

No elétrico que passou rapidamente estava sentado a um canto, a face contra a janela, o braço direito estendido ao longo do encosto do banco, um jovem com o sobretudo desabotoado, muito largo para ele, a olhar para o comprido banco vazio. Tinha ficado noivo hoje e não conseguia pensar noutra coisa. O facto de estar noivo dava-lhe uma sensação de conforto e com esta sensação ele olhava de vez em quando para cima, para o tecto do carro eléctrico. Quando o condutor lhe veio vender o bilhete, encontrou facilmente e no meio do tilintar de moedas a moeda exacta, com um gesto só colocou-a na mão do condutor e pegou no bilhete com dois dedos que ele abria como se fosse uma tesoura. Não havia nenhuma ligação verdadeira entre ele e o carro elétrico e não teria sido uma surpresa se, sem ter usado a plataforma e os degraus, ele tivesse aparecido na rua e tivesse ido no seu caminho a pé e com o mesmo ar.

Só o sobretudo grande de mais existia, tudo o resto foi imaginado.




franz kafka
diários (1910-1923)
trad. maria adélia silva melo
difel
1986



27 abril 2013

armando silva carvalho / em sintra, numa cama




Deitado nesta cama, onde dormiste
onde pesaste o corpo
onde sentiste o gravitar
da chuva o vento
a cobra do vento,

deitado nesta, onde caíste
no alçapão directo das saudades
nas podres drogarias do meu siso,
deitado nesta cama, onde um
penico arde com cigarros,
olhado pelos jarros,
pelos bigodes de um velho
e a mansa mão da esfinge
sobre a mesa,

eu leio nas paredes que me estalam
porque secas de som,
bisonhas redacções de juventude,
sinais de vestuário,
peças de roupa interior
que outrora me feriam.
As linhas que compunha
na bruma caligráfica do tempo
onde te ergui, então, pedra por
pedra, puxando por ridículas roldanas
meus pesados blocos
de ternura.

Deitado nesta cama
revejo o que podia ser teu corpo
na frase trémula que me arrasta
as têmporas. Sacudo puxo penso
com os sentidos livres
de combustão latente
em que me ardeu o sono.



armando silva carvalho
o comércio dos nervos 1968
o que foi passado a limpo, obra poética
assírio & alvim
2007



26 abril 2013

herberto helder / as musas cegas



I

Bruxelas, um mês. De pé sob as luzes encantadas.
Em noites assim eu extinguiria minha alma
cantando humildemente. Fecharia os olhos
sob os anéis dos astros, e entre os violinos
e os fortes poços da noite descobriria
a ardente ideia da minha vida.
Em noites assim amaria o fogo
da minha idade. Cantaria como um louco este grande
silêncio do mundo, vendo queimarem-se nas trevas
as vísceras tensas e os ossos e as flores dos nervos
e a cândida e ligeira arquitectura
de uma vida.


Bruxelas com as traves da minha cabeça
e uma grinalda de carvões em torno dos testículos
de um homem
bêbado da sua idade. Cantaria com esses testículos
negros, as lágrimas, o coração ao meio do nevoeiro
derramando o seu baixo e aéreo sangue,
a sua dor, o lírico
fervor, o fogo de porta entre os símbolos nocturnos.


Era tão pura a ideia de que o tempo começava
depois do verde e fértil e exaltado
mês da carne. Vergada sobre o livro onde o meu rosto
ardia,
a vida esperava com suas torres
vibrantes, seus grandes lagos
límpidos. E eu adormecia
e sonhava um homem em voz alta, um vidro
incandescente, uma fina flor
vermelha colocada sobre a mesa. Era tão violenta
a ideia de cantar sem fim,
até  que a voz consumisse esta garganta sombreada
de estreitos vasos puros.
- Cantar fixa e fria e intensamente
sobre a minha rasa
luminosa vida, ou sobre os campos transparentes e sombrios
de bruxelas do mundo.



herberto helder
poesia toda
assírio & alvim
1996



25 abril 2013

mário cesariny / poema


  

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando -
a delimitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco



mário cesariny
pena capital
assírio & alvim
1982



sempre!


24 abril 2013

antónio josé forte / excepto tu meu amor excepto tu




MEU AMOR
minha aranha mágica agarrada ao meu peito
cravando as patas aceradas no meu sexo
e a boca na minha boca
conto pelos teus cabelos os anos em que fui criança
marco-os com alfinetes de ouro numa almofada branca
um ano dois anos um século
agora um alfinete na garganta deste pássaro
tão próximo e tão vivo
outro alfinete o último o maior
no meu próprio plexo

MEU AMOR
conto pelos teus cabelos os dias e as noites
e a distância que vai da terra à minha infância
e nenhum avião ainda percorreu
conto as cidades e os povos os vivos e os mortos
e ainda ficam cabelos por contar
anos e anos ficarão por contar


DEFENDE-ME ATÉ QUE EU CONTE
O TEU ÚLTIMO CABELO


antónio josé forte



23 abril 2013

wallace stevens / domingo de manhã


  
1
Complacências do roupão e café
Tardio e laranjas numa cadeira soalheira
E a verde liberdade de uma catatua
Sobre um tapete misturam-se para dissipar
A quietude sagrada de sacrifício antigo.
Ela sonha um pouco e sente a escura
Insinuação daquela velha catástrofe,
Enquanto uma calma escurece entre luzes de água.
As laranjas pungentes e asas verdes brilhantes
Parecem coisas em um cortejo dos mortos,
Serpenteando através de água imensa, sem som.
O dia está qual água imensa, sem som.
Acalmado para a passagem de seus pés sonhadores
Por cima dos mares, até à Palestina silenciosa,
Domínio do sangue e sepulcro.

2
Porque havia ela de entregar a sua riqueza aos mortos?
O que é a divindade se pode vir
Apenas em sombras silenciosas e em sonhos?
Não encontrará ela em confortos do sol,
Em fruta pungente e asas verdes brilhantes, ou então
Em qualquer bálsamo ou beleza da terra,
Coisas a serem acarinhadas como a ideia de céu?
A divindade tem de viver dentro dela:
Paixões da chuva, ou melancolias ao cair da neve;
Mágoas na solidão, ou exultações
Insubmissas quando o bosque floresce; emoções
Tempestuosas nas estradas molhadas em noites de outono;
Todos os prazeres e todas as dores, lembrando
O ramo do verão e o galho do inverno.
Estas são as medidas destinadas à sua alma.

(…)




wallace stevens
ficção suprema
trad. luísa maria lucas queiroz de campos
assírrio & alvim
1991