09 abril 2013

gil t. sousa / mais longe


  

15

fora do tempo
é mais longe do que qualquer espelho

minha ilha
meu incêndio de pedra

sobre a corrente assassina
de me perder


cansa-me de água e de sol
inquieta-me

do segredo das sementes
e do chão tóxico

dos vulcões
em que me deitei

quando a noite me atormentava
de não chegares

quando a madrugada
me matava de partires



gil t. sousa
água forte
2005




08 abril 2013

charles simic / primavera




Foi isto que vi - restos de neve no chão,
Três melros a espanejar-se,
E a minha vizinha que sai de casa em combinação
A pôr as camisas do marido a secar.

A aragem da manhã torna-lhe difícil pendurá-las.
Levanta-lhe a roupa bem acima dos joelhos,
Ela teve de parar o que estava a fazer
E deu uma bela gargalhada, enquanto se tapava.



charles simic
traduzido por josé lima
diversos nr. 2



07 abril 2013

manuel antónio pina / à beira do princípio




À beira do princípio, do precipício,
o Anjo do Conhecimento cega
para poder ver o início
da sua queda caótica.

Aquilo que o Visionário vê é o que
o vê a ele do alto do Futuro
para onde cai com o conhecimento obscuro de
saber que está no sítio para onde vai.

(O que regressa ao sítio de onde nunca saiu
é o mesmo que nunca lá esteve,
o que sobe a escada e transpõe a porta
que dá para toda a parte).

1976/1977





manuel antónio pina
aquele que quer morrer
todas as palavras
poesia reunida
assírio & alvim
2012




06 abril 2013

e e cummings / búfalo bill


  

"Búfalo Bill stá
defunto
o que andava
num cavalo
de prata como a água corrente
e matava umdoistrêsquatrocinco gajos assim sem mais Deus meu
era um belo homem
e o que eu quero saber é
se gostas do teu rapaz de olhos azuis
Dona Morte"




e e cummings
búfalo bill stá
trad. jorge de sena


05 abril 2013

pablo garcia casado / publicidade enganosa




está certo reconheço todas as acusações
menti eu sei sabia desde o princípio
todos o fazemos é a maneira de vender

o produto que queres que te diga não sou
quem andavas à procura sim sou um porco
um grandessíssimo cabrão um filho da puta… mas diz-me

que tem tudo isso a ver com o amor?



pablo garcia casado
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000



04 abril 2013

armando silva carvalho / hospital curry cabral


  
                                                       a colien honegger


Parecem as termas de Fellini, disse ela, a catalã
que não sabia nada dos hospitais
de Lisboa.

De facto, o chão fumava,
um vapor espesso subia-lhe pelas pernas
e acalorava os gatos.
E até um garnisé que por ali passeava em busca
das migalhas das visitas
cantou
desirmanado.

Mas era quase erótico o som da sua voz
como a da vedeta italiana
desse filme barroco
caindo inocente na doença ambulante
levada por maqueiros gordos
e libidinosos.

As palmeiras derramavam um choro
no vento melancólico.
E ela a catalã, jovial e magra,
ia batendo palmas às aves embaraçadas,
e avançava a sorrir
pelas zonas infecto-contagiosas.
Mas não lhe era preciso aplaudir um tal cenário
de figurantes mudos e fantasmagóricos
com os seus roupões azuis
de sida
com os seus pijamas de cinza
e tuberculose.
Bastava-lhe olhar a direito ou fechar os olhos
e perguntar pelo Hotel Barcelona.

Mas ela preferiu tropeçar nos varões com sono
arrastados pelo verde do jardim
e passar rente a precipícios que deslizam deitados
à sombra da morte.

E é preciso amar e partir depressa.
Ou atordoar-se com os perigosos jogos do contágio.
Eu respiro a calma que a desgraça me oferece
entre galinhas-da-índia
a encurtar caminho
nesse antigo lugar de mulheres da vida
arrependidas.

Normalmente vou só e não me engano.
A amiga catalã é um devaneio
numa rambla de encontros tenebrosos
com outra espécie de morte.

Tantas vezes pensei
e o poema não veio ao meu encontro.
Tantas vezes devorei este fumo quente e sensual
que começa por lamber-me as calças
e faz de mim um animal em erecção precoce.
Belas termas, estas, amiga tão distante,
nas tuas quimeras musicais
no teu regaço de coloridas risas de passagem.

Passa comigo e pede um copo de água
ou de cólera, como diz o brasileiro,
àquele rapaz com a morte a prazo.
A menina do filme, essa perversa inocente
Cardinale, fica-te tão bem,
diria ele,
esse jovem director de espectros
que te tira o chapéu
e deixa ver um quisto inquietante
na cabeça pelada de trapezista mortal.
Traz contigo mais música.
E passeia comigo entre pavões rubro-azuis
e corpos que rolam
sentados ou jacentes e avançam
para a saída
da vida.



armando silva carvalho
lisboas, roteiro sentimental 2000
o que foi passado a limpo, obra poética
assírio & alvim
2007



03 abril 2013

joan brossa / arlequim mete no bolso...





Arlequim mete
no bolso das calças a bolsa de Pierrot.
Pierrot, portanto perdeu a bolsa.
Dómino, o cão de Pierrot, caça perdizes
ao luar.

Pulcinella e Colombina convidam Pierrot a jantar.
Pierrot está desolado.
Com um salto, Dómino aparece no meio da mesa
com as calças de Arlequim.
Já podem imaginar a alegria de Pierrot!
Na manhã seguinte devolvem as calças a Arlequim e brindam
á saúde de Dómino.

Por trás
uma armação ou bastidor percorre de cima
a baixo este poema.
A teia tem um punho na sua parte inferior.
Levantai-a um pouco e o poema ficará
suspenso no ar.




joan brossa
(barcelona, 1919 - 1998)
quinze poetas catalães
trad. egito gonçalves
ed. limiar, porto
1994


02 abril 2013

jorge de sousa braga / morte em veneza




De muitas coisas se pode morrer
em Veneza
De velhice de susto
de peste

ou de beleza



jorge de sousa braga
o poeta nu
fenda
1991


01 abril 2013

daniel faria / do inesgotável



6

Amo o caminho que estendes por dentro das minhas divisões.
Ignoro se um pássaro morto continua o seu voo
Se se recorda dos movimentos migratórios
E das estações.
Mas não me importo de adoecer no teu colo
De dormir ao relento nas tuas mãos.




daniel faria
poesia
do inesgotável
quasi
2003


31 março 2013

paul éluard / como duas gotas de água


(fragmento)


De tudo o que disse de mim que resta
Conservei falsos tesouros em armários vazios
Um navio inútil liga a minha infância ao meu fastio
Os meus jogos ao cansaço
A tempestade ao arco das noites em que estou só
Uma ilha sem animais aos animais que amo
Uma mulher abandonada à mulher sempre nova
Em veia de beleza
A única mulher real
Aqui e em qualquer parte
A oferecer sonhos aos ausentes
Sua mão estendida para mim
Reflecte-se na minha
Digo bom-dia sorrindo
Não se pensa na ignorância
E a ignorância reina
Sim eu tudo esperei
E desesperei de tudo
Da vida do amor do esquecimento do sono
Das forças das fraquezas
Já não me conhecem
Lobos são meu nome e minha sombra.



paul éluard
algumas palavras (antologia)
tradução antónio ramos rosa e luiza neto jorge
dom quixote
1977



30 março 2013

federico garcia lorca / ãnsia de estátua




Rumor.
Ainda que não fique nada mais que o rumor.
Aroma.
Ainda que não fique mais que aroma.
Mas arranca de mim a recordação
e a cor das velhas horas.

Dor.
Ante a mágica e viva dor.
Batalha.
Na autêntica e suja batalha.
Mas tira a gente invisível
que rodeia perene a minha casa!




federico garcia lorca


29 março 2013

josé gomes ferreira / é tudo tão pequeno esta manhã




É tudo tão pequeno esta manhã.

As aves acordaram surpreendidas,
a voarem nos meus olhos
curvas fatigadas
de Primavera morta…

As mãos caem-me secas
ao longo do corpo
em folhas recortadas
de árvore de solidão…

As raízes sugam-me nas veias
o sangue da terra
das manhãs de sussurro…

Sim. Hoje só eu existo…

Eu com este remorso de gota de água
que se recusa a cair no mar
─  para se sentir maior
longe da cólera comum da Tempestade.




josé gomes ferreira
poesia II
pessoais 1939-1940
portugália
1962



28 março 2013

jean genet / a solidão, já disse…





A solidão, já disse,
só a presença do púbico pode concedê-la,
e vais ter de actuar de maneira diferente e
recorrer a métodos diferentes.


Através de um artifício —  por efeito da tua vontade
deves fazer entrar em ti uma sensibilidade destas
em relação ao mundo.
À medida que sobem as suas ondas —
como sobe o frio dos pés e chega às pernas,
às coxas, ao ventre de Sócrates —
toma o seu frio conta do teu coração e transforma-o em gelo.


— Não, não, três vezes não:
não vens divertir o público, mas fasciná-lo.
Confessa
que não deixava de ser curiosa a sensação que ele teria —
refiro-me ao maior espanto, ao pânico —
se acaso chegasse a distinguir muito claramente
que naquela noite, pelo fio, andava um cadáver!


«Toma o seu frio conta do teu coração e transforma-o em gelo»..,
mas — é este o maior mistério — precisará ao mesmo tempo
que uma espécie de vapor saia de ti muito leve,
sem ser capaz de te esfumar os ângulos,
e nos desvende o foco que no teu centro
não deixa alimentar esta morte gélida
que iria puxar-te pelos pés.

E o teu fato?
Ao mesmo tempo casto e provocante.
A malha justa do Circo,
um vermelho e sangrento jersey.
Indica com precisão os teus músculos,
cinge-te, enluva-te, mas do pescoço — aberto em redondo,
cortado cerce como se o carrasco nessa noite fosse decapitar-te
— do pescoço à anca um lenço vermelho ainda,
e de panos a flutuar — franjado a ouro.

Escarpins vermelhos, o lenço, o cinto,
o debrum do decote, as fitas abaixo do joelho,
são bordados a lantejoulas.
Com certeza para cintilares
mas sobretudo perderes na serradura,
ao atravessares a pista, algumas lantejoulas mal cosidas,
delicados emblemas do Circo.

Durante o dia caem do teu cabelo outras,
quando vais ao merceeiro.
O suor colou uma no teu ombro.

Em relevo na malha,
o alforge onde guardas os tomates
terá bordado um dragão
de ouro.

(...)



jean genet
o funâmbulo
trad. de aníbal fernandes
hiena editora
1984