O amor é masoquista.
Esses gritos, essas queixas,
essas suaves inquietações,
esse estado de angústia dos
apaixonados,
esse estado de expectativa, esse
sofrimento latente,
subentendido, apenas manifestado,
essas mil e uma preocupações
acerca do ser amado,
essa fugacidade do tempo, essas
susceptibilidades,
essas alternâncias de humor,
essas divagações,
essas criancices, essa tortura
moral
em que a vaidade e o amor-próprio
se encontram em jogo,
a honra, a educação, o pudor,
esses altos e baixos do tónus
nervoso,
esses desvarios da imaginação,
esse feiticismo,
essa precisão cruel dos sentidos
que chicoteiam e que rebuscam,
essa queda, essa prostração,
essa abdicação, esse aviltamento,
essa perca e essa recuperação
perpétua da personalidade,
esses embaraços, essas palavras,
essas frases,
esse emprego do diminutivo, essa
familiaridade,
essas excitações nos contactos,
essa tremura epiléptica, essas
recaídas sucessivas e
multiplicadas, essa paixão cada
vez mais perturbadora,
tempestuosa e progressivamente
devastadora
até à completa inibição,
ao completo aniquilamento da
alma,
até à atonia dos sentidos,
até ao esgotamento do tutano,
ao vazio do cérebro,
até à secura do coração,
essa necessidade de prostração,
de destruição,
de mutilação, essa necessidade de
efusão,
de adoração, de misticismo,
essa insaciabilidade que leva a
pedir auxílio à hiper-irritabilidade
das mucosas, ás divagações do
gosto,
às desordens vasomotoras ou
periféricas
e que apela para o ciúme e para a
vingança,
para os crimes, para as mentiras,
para as traições,
essa idolatria, essa melancolia
incurável,
essa profunda miséria moral,
essa dúvida definitiva e
pungente, esse desespero,
todos esses estigmas não
constituem porventura os próprios sintomas do amor,
segundo os quais se pode
diagnosticar
e seguidamente traçar com mão
firme
o quadro clínico do masoquismo?
blaise cendrars
moravagine
trad. e pref. Ruy Belo
livros cotovia
1992