04 julho 2012

allen ginsberg / uivo por carl solomon (fragmento)





  I


  Eu vi as melhores mentes da minha geração destruídas pela loucura, esfaimadas
  histéricas despidas,
  arrastando-se através das ruas dos negros ao alvorecer em busca de uma dose
  enfurecida,
  hipsters de cabeça de anjo ardendo pela anciã ligação celestial ao
  dínamo de estrelas na maquinaria da noite,

  que de pobreza esfarrapada e de olhos vazios e mocados se sentaram alto fumando na
  escuridão sobrenatural de apartamentos de água fria flutuando através dos
  topos das cidades contemplando jazz,

  que destaparam os seus cérebros ao Céu debaixo do El e viram anjos Maometanos
  cambaleando nos tectos iluminados das moradas,

  que passaram através das universidades com olhos descontraídos radiantes alucinando
  com a tragédia de Arkansas e a luz de Blake por entre os escolásticos da guerra,

  que foram expulsos das academias por loucura & publicação de odes obscenas na
  janela do crânio,

  que se acobardaram em quartos por barbear em roupa interior, queimando o seu
  dinheiro em cestos de papéis ouvindo o Terror através da parede,

  que foram presos nas suas barbas públicas regressando através de Laredo com
  um saco de marijuana no cinto para Nova Iorque,

  que comeram fogo em hotéis baratos ou beberam terebintina em Paradise Alley,
  morte, ou purgaram os seus torsos noite após noite
  com sonhos, com drogas, com pesadelos ambulantes, álcool e picha e
  tomates sem fim,
  ruas cegas incomparáveis de nuvem estremecendo e relâmpago na mente
  saltando em direcção a postes do Caminho de Ferro de Canada & Paterson, iluminando todo   o mundo imóvel do Tempo entre eles,
  solidificações de paredes de Peiote, árvore verde de quintal traseiro no amanhecer de
  cemitério, embriaguez de vinho sobre os telhados, burgos de montras frontais de passeios ganzados em carros roubados
  no carrossel de néon luz de tráfico cintilante, sol e lua e vibrações de árvore no crepúsculo invernoso rugindo de Brooklyn,
  declarações de cinzeiro e luz da mente de rei generoso,

  que se acorrentaram a carruagens do metropolitano pelo percurso infindo de Battery
  ao Bronx sagrado em benzendrina até que o ruído de rodas e crianças
  os derrubassem estremecendo de bocas escancaradas e aridez desancada de
  cérebro todo drenado de brilho na lúgubre luz do Jardim Zoológico,

  que se afundaram durante toda a noite na luz submarina do restaurante Bickford
  flutuando depois para a saída e sentaram-se fora através da tarde cerveja morta em Fugazzi desolado,
  ouvindo o romper do destino na jukebox de hidrogénio,

  (...)


  

  allen ginsberg


03 julho 2012

luís filipe parrado / o que mais amo



  

Não sou capaz de estranhas paixões
e amo, como muitos, o vento forte
que agita a roupa estendida nas cordas,
as bicicletas ferrugentas
de pneus furados
esquecidas em garagens e arrecadações,
a água fresca que mata a sede
ao mais miserável dos homens.
Mas se, como outros, amo os dias de intensa luz
e o descuido dos pássaros no ar,
ninguém ama como eu
as estrias do teu ventre,
a primeira casa de dois filhos.
De todas as coisas prodigiosas que conheço
são elas o que mais se parece
 com os rasgos abertos por um arado
na terra crua deste mundo.




luís filipe parrado
resumo
a poesia em 2011
assírio & alvim
2012



02 julho 2012

nuno travanca / os pássaros dissertam sobre o reflexo


  


os pássaros dissertam sobre o reflexo
esvoaçam noite afora

por cima do quarto
sobre corpos profusos

recordam todos os quartos
que submergiram

não se afastam das costas

e têm ondas a crescer no peito
que nunca foram senão cultivadas

onde se suspendem [no lago]
há peixes espectro
vários reflexos e luzes estudo

se atentos
ocupam-se de ninhos

e seguem sempre viagem
apesar de






01 julho 2012

rui costa / o pão




Há pessoas que amam
Com os dedos todos sobre a mesa.
Aquecem o pão com o suor do rosto
E quando as perdemos estão sempre
Ao nosso lado.
Por enquanto não nos tocam:
A lua encontra o pão caiado que comemos
Enquanto o riso das promessas destila
Na solidão da erva.
Estas pessoas são o chão
Onde erguemos o sol que nos falhou os dedos
E pôs um fruto negro no lugar do coração.
Estas pessoas são o chão
Que não precisa de voar.





rui costa
a nuvem prateada das pessoas graves
quasi
2005




30 junho 2012

jean genet / uma solidão mortal






               (...)

               ...«uma solidão mortal»...

               Na taberna podes dizer graças,
               brindar com quem quiseres, qualquer um.
Mas o Anjo anuncia-se e deves isolar-te
               para o receber. Para nós, o Anjo é a noite
               que desceu à pista fulgurante.
               Que a tua solidão paradoxalmente se ilumine toda
               e pouco importe a escuridão feita de milhares de olhos
               que te julgam, temem e esperam que caias;
               vais dançar sobre e dentro de uma solidão deserta,
               de olhos vendados, se possível com as pálpebras agrafadas.

               Mas nada - nem mesmo aplausos ou risos -
               pode impedir-te de dançares para a tua imagem.
És um artista - ai de mim - não podes recusar-te
               ao precípicio monstruoso dos teus olhos.

               Narciso dança?

               Sim, ma sé coisa totalmente alheia à graça sedutora,
               ao egoísmo e amor de si próprio.

               E sendo a Morte, em pessoa?

Deves dançar sozinho. Empalidecido, na ânsia
               de agradar à tua imagem:
               ou a tua imagem é quem dança para ti.

               (...)






jean genet
o funâmbulo
trad. de aníbal fernandes
hiena editora
1984







29 junho 2012

david gonzález / a caminho das sentinas







As ratazanas.

As da prisão.

A que pegámos
fogo
no centro do pátio.

Arrastavam pelo chão
com o seu corpo coberto
de chamas,
a camino das sentinas.

O Papuchi dizia:

Isso é porque
as grandes putas
sabem
que nas retretes
água

Não acredito.

Arrastavam-se nessa direcção
por ali terem a sua casa
por quererem morrer
cercadas pelos seus.

Como se fossem
seres
humanos.

Não importa,
que me lembre,
nenhuma
conseguiu
chegar.

Nenhuma.

Nunca.

Chegar.




david gonzález
poesia espanhola, anos 90
trad. de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000



28 junho 2012

josé régio / cântico negro






"Vem por aqui" - dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho os com olhos lassos,
(Há nos meus olhos ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha Mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Porque me repetis: "Vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?
Corre nas vossas veias sangue velho dos avós.
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
- Sei que não vou por aí!





josé régio


27 junho 2012

jorge fallorca / eu conheço uma música frágil como a chuva…


  

Eu conheço uma música frágil como a chuva ou as lágrimas evitadas. É uma música que ouço muitas vezes enquanto escrevo ou leio, ou que ecoa dentro de mim enquanto leio o que escrevi.

Cada vez que a ouço, que percorro o teclado infindável do piano onde me refugio, esqueço-me do que escrevi e leio as lágrimas que não chorei sulcadas no meu rosto, à espera que chovesse.

Que me lembre, é uma música onde tu não estás. Uma música que se calhar não existe, ou não existe assim, e não passa de uma desajeitada desculpa para finalmente poder chorar.




jorge fallorca
telhados de vidro nº. 11
averno
2008




26 junho 2012

josé carlos ary dos santos / estigma


  


Filhos dum deus selvagem e secreto
E cobertos de lama, caminhamos
Por cidades,
Por nuvens
E desertos.
Ao vento semeamos o que os homens não querem.
Ao vento arremessamos as verdades que doem
E as palavras que ferem.
Da noite que nos gera, e nós amamos,
Só os astros trazemos.
A treva ficou onde
Todos guardamos a certeza oculta
Do que nós não dizemos,
Mas que somos.





josé carlos  ary dos santos 




25 junho 2012

vicente huidobro / o espelho de água





O meu espelho, correndo pelas noites,
Torna-se arroio e afasta-se do meu quarto.

O meu espelho, mais profundo que a orbe
Onde todos os cisnes se afogaram.

É um tanque verde na muralha
E no meio dorme a tua nudez ancorada.

Sobre as suas ondas, debaixo de céus sonâmbulos,
Os meus sonhos afastam-se como barcos.

De pé sobre a popa ver-me-eis sempre a cantar,
Uma rosa secreta cresce no meu peito
E um rouxinol ébrio esvoaça no meu dedo.




vicente huidobro
1893-1948
o mar na poesia da américa latina (antologia)
trad. josé agostinho baptista
assírio & alvim
1999




24 junho 2012

benjamin péret / a doença imaginária


  


Eu sou o cabelo de chumbo
que viaja de astro em astro
que se tornará em cometa
e num ano e num dia te destruirá.

Mas por enquanto não há dias nem anos
existe apenas uma planta viçosa
de que desejas ser semelhante

Para ser irmão das plantas
é preciso crescer na vida
ser sólido quando na morte
Ora eu sou somente imóvel
e mudo como um planeta
Vou banhando os pés nas nuvens
que como bocas em volta
me condenam a ficar
entre os que parados estão
e que as plantas desesperam

No entanto um dia
os líquidos revoltados
lançarão para as nuvens
armas assassinas
manejadas pelas mulheres azuis
como os olhos das filhas do norte

E esse dia será dentro de um ano e um dia.




benjamin péret
tradução de nicolau saião





23 junho 2012

eugénio de andrade / as mãos e os frutos XII





foto de gil t. sousa, s. joão do porto




Se vens à minha procura,
eu aqui estou. Toma-me, noite,
sem sombra de amargura,
consciente do que dou.

Nimba-te de mim e de luar.
Disperso em ti serei mais teu.
E deixa-me derramado no olhar
de quem já me esqueceu.




eugénio de andrade
as mãos e os frutos
poesia
fundação eugénio de andrade
2000





22 junho 2012

ana paula inácio / senhora diego rivera





O que come um génio
para além de amigas e irmãs?
que prato de especial engenho
que entremeados feitiços
ervas daninhas, pêlo de cabra, suco de espinheiro
o fará ficar
nessa companhia de circo
onde equilibramos os pratos
no gume mais esticado do trapézio
quantas quedas será preciso dar
para fazer do corpo o melhor sítio donde se avista o mundo
elevá-lo a ícone nacional
como o chili e a massa de pimentão?




ana paula inácio
telhados de vidro nº. 11
averno
2008