21 junho 2012

josé miguel silva / vista para um pátio doze





E de repente era São João, era um bom sinal.
Caíam-nos na testa as primeiras ameixas.
Nem as mães interrompiam os mais vivos
desafios nas areias do Douro.
(Que raiva me dava não poder atravessá-lo
com os braços num raminho,
juntar aos mais audazes a minha timidez,
cuspir para o céu quando passávamos todos
à minha porta.)




josé miguel silva
vista para um pátio seguido de desordem
relógio d'água
2003



20 junho 2012

josé carlos barros / os monstros



  

Nos pesadelos
os monstros às vezes temem que os olhemos de frente
que possamos apagar-lhes a sombra
ou acordá-los a meio da tarde
abrindo as portada dos seus refúgios
deixando a luz avassaladora a cobrir-lhes o corpo
a queimar-lhes as pupilas remanescentes
como se fôssemos nós
os monstros
deles.




josé carlos barros
resumo
a poesia em 2009
assírio & alvim
2010



19 junho 2012

henri michaux / venham, mais uma vez


  


Venham, mais uma vez,
venham cá, palavras miseráveis
para exprimir coisa mais miserável ainda
para exprimir o caído, o devastado, o irreconhecível
o três vezes mais temível que na sombra se prepara

Para exprimir os montes de vergonha de súbito surgidos
a tapar os horizontes
a gaiola em todo o lado, para exprimir Judas,
Para exprimir Judas multiplicado, Judas faz companhia
os dinheiros não levam muito tempo para se porem
                                                a correr atrás dos Judas


Para exprimir, as folhas caem
as frontes estalam
apagam-se as gares
estancam os caminhos
o inverno desanca à chicotada o amplo rebanho

Para exprimir braços, estômagos, julgamentos no
                                                                  garrote
e milhões vezes milhões de homens inteiros no garrote
e milhões e milhões corroídos na chaga
da chaga, na chaga da queda
ou detidos, silenciosos, contemplando a desfeita coluna
                                                  vertebral do seu futuro

Contemplando sobretudo a Estátua alta que na derrota
                                                                        dos seus
se desmoronou no pedestal
os seus destroços doem. Os seus destroços torturam.
Somos perseguidos pelos seus destroços.
A noite chega. Afastam-se os ecos. Aumenta o frio.
Um grande corpo com garras, pesando com todo o
                  seu peso, sobre o corpo está estendido.




henri michaux
o retiro pelo risco
tradução júlio henriques
fenda
1999





18 junho 2012

carlos marzal / felizes os felizes



  

felizes os felizes
os mais fortes
os timoneiros do seu mar propício
os da risonha mãe do próprio
os escapados do poço da vida
os iludidos do passo dos sonhos

já estavam na sua margem e nos chamavam
os desde sempre em pose
os mais alerta
os embebidos do primeiro aroma
os do cristal de aumento sobre nada
os da lupa em paz do sol nu

honram-nos com a sua luz os atrevidos
os da desmesura
os radiantes de ser enaltecem-nos
os trágicos alegres em seu cálice

ditosos os ditosos na sua fortuna
os de humor febril do universo
os simples partidários, os devotos
os da pura razão voluptuosa

os delapidadores  nos redimem
os heróis terrestres, os sem culpa
os de já não caber em si de gozo
os da em si mesma essência
os possessos

e felizes nós outros
seus discípulos
por lambermos em mel a chaga viva
por extasiados no tempo amigo
por aprendizes deste amor demente   




carlos marzal
fuera de mí
edit. visor
madrid
2004


17 junho 2012

manólis anagnostákis / a decisão








  


Vocês são a favor ou contra?
Respondam sim ou não.
Decerto já pensaram no problema
Creio sinceramente que ele os tem preocupado.
Tudo na vida traz preocupações
Crianças mulheres insectos
Plantas nocivas, horas sem proveito
Paixões difíceis, dentes cariados
Filmes medíocres. E isto decerto os preocupa.
Sejam responsáveis e digam: Sim ou não.
A vocês é que cabe decidir.
Não lhes pedimos evidentemente que abandonem
Suas ocupações, que interrompam sua vida
O jornal preferido o bate-papo
No barbeiro os domingos ao ar livre.
Uma palavra só. Vamos, então:
Vocês são contra ou a favor?
Pensem bem: Eu fico à espera.





manólis anagnostákis
trad. josé paulo paes
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001





16 junho 2012

giórgos markópoulos / a crédito



  

Goulas, o Korátos, apelidado Thorís,
de Sálona de Stereá
no dia da Páscoa mandou pintar o retrato
a um pintor ­funileiro ambulante
por um pouco de azeite arroz e um bocado de sabão.

Goulas, o Korátos, apelidado Thorís,
pintado, foi vendido pela velha
numa feira da ladra
por uma escova de nylon por uma velha balança
e um espelho do Congo.

A tua tristeza, eh pá, tesouro,
É como a Kaisarianí nas noites de Outono.

Pára lá de me chagar com o rembétiko
por detrás das tascas, nas ruas
Os marujos naufragaram, os marujos nos petroleiros
pegando-se pelo quinhão, perderam-se para sempre.

A última vez que me escreveste, lembras-­te?
O teu recado soube-o num bar
“tens carta”, disse o fogueiro do navio,
choviam grupos de clientes que praguejavam e gritavam
e havia um rádio que chorava ao canto
“O miúdo pirou-­se na outra noite”, escrevias,
às tantas foi comprar fósforos à esquina”.


Noites enormes duplamente esfaqueadas com a amargura do infinito,
noites de barulhos surdos tirânicas e infindas
mil momentos e eternidade mil momentos e morte,
e era uma época difícil, ninguém a ouvia,
só alguma “rapaziada” despejava as noites nas tascas
a juntar-­se ao mal e à guerra civil, diz­-se,
mas quem sabia dessas coisas
via a solidão a torturar e a culpa a espreitar,
até que certa noite te voltámos a ver num palácio mudo sozinha
“ei... como vais?” gritámos, deus meu.
O nosso corpo e o teu corpo
molde de gesso estragado pela chuva e pelos anos
como quartel da guarda em ruínas quartel da guarda
“hão-­de vir uma noite aqueles que esquecemos, dissemos­-te,
de rosto inexistente
o crânio cheio de lagartos e nu
descerão passo a passo sozinhos
descobrirão uma alegria pela vida
por sobre as casas e os túmulos
descobrirão uma alegria pela vida
um amargor de amor por nós e pelos mortos”,
e depois tornaste a desaparecer.

─  Abri um pouco o rádio, a luz e as janelas
porque, na verdade, que vergonha morrermos nos nossos lençóis brancos
enquanto todos os nossos amigos foram assassinados nos passeios.


Os assaltantes do inferno.


  

giórgos markópoulos
trad. manuel resende





15 junho 2012

almeida garrett / o anjo caído


  


Era um anjo de Deus
Que se perdera dos céus
E terra a terra voava.
A seta que lhe acertava
Partira de arco traidor,
Porque as penas que levava
Não eram penas de amor.

O anjo caiu ferido,
E se viu aos pés rendido
Do tirano caçador.
De asa morta e sem splendor
O triste, peregrinando
Por estes vales de dor,
Andou gemendo e chorando.

Vi-o eu, o anjo de Deus,
Vi-o nessa tropelia
Que o mundo chama alegria,
Vi-o a taça do prazer
Pôr ao lábio que tremia...
E só lágrimas beber.

Ninguém mais na terra o via,
Era eu só que o conhecia...
Eu que já não posso amar!
Quem no havia de salvar?
Eu, que numa sepultura
Me fora vivo enterrar?
Loucura! ai, cega loucura!

Mas entre os anjos dos céus
Faltava um anjo ao seu Deus;
E remi-lo e resgatá-lo
Daquela infâmia salvá-lo
Só força de amor podia.
Quem desse amor há-de amá-lo,
Se ninguém o conhecia?

Eu só e eu morto, eu descrido,
Eu tive o arrojo atrevido
De amar um anjo sem luz.
Craveia-a eu nessa cruz
Minha alma que renascia
Que toda em sua alma pus.
E o meu ser se dividia,

Porque ele outra alma não tinha,
Outra alma senão a minha...
Tarde, ai! tarde o conheci,
Porque eu o meu ser perdi
E ele à vida não volveu...
Mas da morte que eu morri
Também o infeliz morreu.




almeida garrett
folhas caídas




14 junho 2012

egito gonçalves / tudo vai bem, amor!...






Tudo vai bem, amor! Aqui estamos longe!
Aqui malogra-se a abordagem dos terrores,
ninguém descarna o sonho ou a esperança,
não há fantasmas de espingarda ao ombro,
ninguém agoniza chicoteado pelas sombras...
Aqui não há ditadores nem guilhotinam os oráculos,
ninguém encobre estrelas com areia,
não cortam com navalhas os seios das mulheres,
não se incendeiam guetos com corpos de crianças:
é tudo útil, simples, como um campo de trigo
─  a Esfinge é um animal de pedra muito gasta.
Os poetas podem passear nas ruas; a paz
não é uma aranha sobre terra árida.
O sono não se povoa de estátuas de ameaça,
o amor não se faz de coração crispado:
o leito do amor é a simples terra nua.





egito gonçalves
o vagabundo decepado
edição notícias do bloqueio
1958



13 junho 2012

gil t. sousa / equador


  

3

mais tarde
sentiria a dor da terra seca

havia de ouvir o cinzel do tempo
e experimentar o arrepio
da fusão lenta dos espelhos

que estranho fogo nos queima
quando da solidão suprema
se ergue o chão de todas as coisas

e exangues de saudade e medo
aí deixamos o amor
todo o amor
com a violenta ternura
do que é eterno

quanto mais se pode dar
a quem um dia nos cruzou o coração
como um equador
de vida e paixão?



gil t. sousa
água forte
2005



12 junho 2012

werner aspenström / a sardinha no metropolitano



  
Não quero lavar-me com esse sabonete!
Não quero usar essa pasta de dentes!
Não quero dormir naquele sofá-cama!
Não preciso desse papel higiénico!
Não estou interessado nessa apólice!
Não penso mudar de marca de cigarros!
Não me apetece ir ver aquele filme!
Recuso-me a sair em Skärholmen!

A sardinha quer que a lata
seja aberta em direcção ao mar.




werner aspenström
(suécia, 1918-1997)
tradução de vasco graça moura



11 junho 2012

wallace stevens / hibiscos nos litorais adormecidos






Agora eu digo, Fernando, que naquele dia
O espírito vadiava como vadia uma traça,
Entre as flores para lá do areal imenso;

E que o mínimo rumor do vaivém das ondas
Nas algas marinhas e nas pedras submersas
Não incomodava nem o mais ocioso ouvido.

Foi então que aquela monstruosa traça
Que ficara imóvel pregada no azul
E no púrpura colorido do mar preguiçoso,

E dormitara ao longo de litorais ossudos,
Surda para a conversa que as águas fiavam,
Se ergueu perlada e buscou o rubro ardente

Salpicada de pólen amarelo ─  tão rubro
Como a bandeira no cimo do velho café ─
E por ali vadiou toda a estúpida tarde.





wallace stevens
harmónio
trad. jorge fazenda lourenço
relógio d´água
2006




10 junho 2012

josé tolentino mendonça / uma coisa a menos para adorar





Já vi matar um homem
é terrível a desolação que um corpo deixa
sobre a terra
uma coisa a menos para adorar
quando tudo se apaga
as paisagens descobrem-se perdidas
irreconciliáveis

entendes por isso o meu pânico
nessas noites em que volto sem razão nenhuma
a correr pelo pontão de madeira
onde um homem foi morto

arranco como os atletas ao som de um disparo seco
mas sou apenas alguém que de noite
grita pela casa

há quem diga
a vida é um pau de fósforo
escasso demais
para o milagre do fogo

hoje estive tão triste
que ardi centenas de fósforos
pela tarde fora
enquanto pensava no homem que vi matar
e de quem não soube nunca nada
nem o nome

  


josé tolentino mendonça
baldios
assírio & alvim
1999

09 junho 2012

jean-arthur rimbaud / depois do dilúvio III






No bosque há uma ave, o seu canto
detém-vos e faz-vos corar.

Há um relógio que não toca.

Há uma lixeira com um ninho de
bichos brancos.

Há uma catedral que desce e um lago
que sobe.

Há um carrinho abandonado nas moitas,
ou descendo a vereda em correria,
engalanado.

Há uma troupe de pequenos cómicos
com os seus fatos, visíveis sobre a estrada
através da orla do bosque.

Há, enfim, quando tens fome e sede,
alguém que te enxota.




jean-arthur rimbaud
iluminações
uma cerveja no inferno
trad. mário cesariny
estúdios cor
1972