13 dezembro 2011

luiza neto jorge / acordar na rua do mundo






madrugada. passos soltos de gente que saiu
com destino certo e sem destino aos tombos.
no meu quarto cai o som depois
a luz. ninguém sabe o que vai
por esse mundo. que dia é hoje?
soa o sino sólido as horas. os pombos
alisam as penas. no meu quarto cai o pó.

um cano rebentou junto ao passeio.
um pombo morto foi na enxurrada
junto com as folhas dum jornal já lido.
impera o declive
um carro foi-se abaixo
portas duplas fecham
no ovo do sono a nossa gema.

sirenes e buzinas. ainda ninguém via satélite
sabe ao certo o que aconteceu. estragou-se o alarme
da joalharia. os lençóis na corda
abanam os prédios, pombos debicam
   
o azul dos azulejos. assoma à janela
quem acordou. o alarme não pára o sangue
desavém-se. não veio via satélite a querida imagem o vídeo
não gravou

e duma varanda um pingo cai
de uma vaso salpicando o fato do bancário




    
luiza neto jorge
poesia
fragmentos
assírio & alvim
1993





12 dezembro 2011

inger christensen / se estou





se estou
sozinha na neve
é óbvio
que sou um relógio

de outro modo como poderia
a eternidade deslizar





inger christensen
trad. josé alberto oliveira
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001



10 dezembro 2011

henri michaux / náusea ou é a morte que se aproxima?




27 de abril


Rende-te, coração.
Lutámos tempo de mais,
Que se acabe a minha vida,
Não fomos cobardes,
Fizemos o que pudemos.

Oh! Alma minha,
Ou ficas ou vais,
Tens de te decidir,
Não me apalpes assim os órgãos,
Ora com atenção, ora com desvario,
Ou vais ou ficas,
Tens que te decidir.

Eu, por mim, não posso mais.

Senhores da Morte
Nem vos aplaudi, nem blasfemei contra vós.
Tende piedade de mim, viajante de tantas viagens sem
bagagem,
Sem amo, sem riqueza, sem glória,
Sois de certeza poderosos e ainda por cima engraçados,
Tende piedade deste homem transtornado que antes de
saltar a barreira já vos grita o seu nome,

Apanhem-no no ar,
E, se for possível, que se adapte aos vossos
temperamentos e costumes,
Se vos aprouver ajudá-lo, ajudai-o, peço-vos.



  

henri michaux
equador
trad. de ernesto sampaio
fenda
1999



09 dezembro 2011

muhammad al-maghut / inverno





como lobos em períodos de seca
crescemos por toda a parte
amámos a chuva
amámos o outono
um dia até pensámos
em enviar uma carta de agradecimento ao céu
com uma folha de outono como selo de correio
acreditávamos que as montanhas desapareceriam
os mares se dissipariam
apenas o amor seria eterno
de súbito separámo-nos
ela gostava de sofás compridos
e eu de longos navios
ela gostava de sussurrar e suspirar nos cafés
eu gostava de saltar e gritar nas ruas
e, apesar de tudo,
os meus braços vastos como o universo
estão à espera dela …




muhammad al-maghut
trad. adalberto alves
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001

08 dezembro 2011

mark strand / elegia 1969




                               segundo carlos drummond de andrade


  

Arrastas a escravidão até à velhice
e nada que faças te vale de muito.
Dia após dia passas pelos mesmos gestos
tremes na cama, tens fome, desejas uma mulher.

Heróis representando vidas de sacrifício e obediência
enchem os parques por onde caminhas.
À noite, no nevoeiro, abrem as umbrelas de bronze
ou então refugiam-se nos vestíbulos vazios dos cinemas.

Amas a noite pelo seu poder de destruição,
mas enquanto dormes, os teus problemas irão morrer.
Acordar só prova a existência da Grande Máquina
e a luz árdua cai nos teus ombros.

Caminhas entre os mortos e falas
de tempos por vir a assuntos do espírito.
A literatura fez-te desperdiçar as melhores horas de amor.
Fins-de-semana perdidos, a limpar a casa.

De pronto confessas o teu fracasso e adias
a alegria colectiva para o próximo século. Aceitas
a chuva, a guerra, o desemprego e a distribuição injusta da riqueza
porque não podes, sozinho, rebentar a ilha de Manhattan.




mark strand
trad josé alberto oliveira
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001




07 dezembro 2011

constantino cavafy / à espera dos bárbaros





O que esperamos nós em multidão no Forum?

       Os Bárbaros, que chegam hoje.

Dentro do Senado, porque tanta inacção?
Se não estão legislando, que fazem lá dentro os senadores?

        É que os Bárbaros chegam hoje.
        Que leis haveriam de fazer agora os senadores?
        Os Bárbaros, quando vierem, ditarão as leis.

Porque é que o Imperador se levantou de manhã cedo?
E às portas da cidade está sentado,
no seu trono, com toda a pompa, de coroa na cabeça?

        Porque os Bárbaros chegam hoje.
        E o Imperador está à espera do seu Chefe
        para recebê-lo. E até já preparou
        um discurso de boas-vindas, em que pôs,
        dirigidos a ele, toda a casta de títulos.

E porque saíram os dois Cônsules, e os Pretores,
hoje, de toga vermelha, as suas togas bordadas?
E porque levavam braceletes, e tantas ametistas,
e os dedos cheios de anéis de esmeraldas magníficas?
E porque levavam hoje os preciosos bastões,
com pegas de prata e as pontas de ouro em filigrana?

        Porque os Bárbaros chegam hoje,
        e coisas dessas maravilham os Bárbaros.

E porque não vieram hoje aqui, como é costume, os oradores
para discursar, para dizer o que eles sabem dizer?

        Porque os Bárbaros é hoje que aparecem,
        e aborrecem-se com eloquências e retóricas.

Porque, subitamente, começa um mal-estar,
e esta confusão? Como os rostos se tornaram sérios!
E porque se esvaziam tão depressa as ruas e as praças,
e todos voltam para casa tão apreensivos?

        Porque a noite caiu e os Bárbaros não vieram.
        E umas pessoas que chegaram da fronteira
        dizem que não há lá sinal de Bárbaros.

E agora, que vai ser de nós sem os Bárbaros?
Essa gente era uma espécie de solução.

                                                         
 [Antes de 1911]






constantino cavafy
90 e mais poemas
trad. jorge de sena
edições asa
2003




06 dezembro 2011

eugénio de andrade / sem ti




E de súbito desaba o silêncio.
É um silêncio sem ti,
Sem álamos,
Sem luas.

Só nas minhas mãos
ouço a música das tuas.




eugénio de andrade
poesia
coração do dia
fundação eugénio de andrade
2000




05 dezembro 2011

gil t. sousa / perigo




42

 


um olhar
que não soubéssemos ter
e todos os pássaros se apagariam





gil t. sousa
falso lugar
2004





04 dezembro 2011

isabel meyrelles / o marinheiro em terra





IV

O Havre era azul de sol
cinzento só nos teus olhos
e na torre radar
grandes barcos
deixavam tranquilamente
o porto
iam todos para o Brasil
na praia seixos desconfortáveis
e o teu corpo imóvel
junto do meu
ocultos pelas crianças
e pelos transístores
os outros
o teu corpo tinha um gosto salgado
de lágrimas recolhidas
um paladar de saudade
a areia rangia entre os meus dentes
à noite fomos ao cinema
na avenida ao alto
as árvores fechadas à chave
como os assassinos
e os marinheiros rebeldes
em baixo
o molhe cercava cegamente o mar
toda a noite
ouvimos as sereias





isabel meyrelles
trad. do francês por natália correia
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001



02 dezembro 2011

manuel antónio pina / outras coisas





Outras coisas  no entanto
o amor e o desamor e também a
morte que nas coisas morre subitamente
o lugar onde vais de súbito

De súbito faltas-me debaixo dos pés
e noutros lugares  De ti é possível dizer
que te ausentaste para parte incerta
deixando tudo no teu lugar

Está tudo na mesma  Também a mim
tempo não me falta lugar sim
Onde cairás morta, flor da infância?
De súbito faltam-me as palavras





manuel antónio pina
ainda não é o fim
nem o princípio do mundo
calma
é apenas um pouco tarde
erva daninha
1982

.
.

01 dezembro 2011

manuel de freitas / pensão mar lindo, 206




Talvez já tenha falado disto.
As horas de noite ainda
numa pensão litoral, fugindo
ao desespero que me abraça.
Não, não tenho mais metáforas.
O teu corpo, mesmo, foi uma
salvação indevida. Acontece.
Acontece muito, aos corpos.

Das almas não sei falar ─ mas
ouço o mar, o tecno vindo
de um bar onde outros (mais
felizes?) agora se engatam
e adiam a manhã e a morte,
sob a frágil ameaça de Setembro.

É lá com eles, lá comigo, a
casa para onde regressam
ou o lugar esquivo que não tenho.
Tanto faz ─ e antes felizes, claro,
como eu julguei ser na tristeza
de outros meses acabados.

Não me importa. Nunca estive
aqui. Que os vinte e cinco
anos do teu corpo não soçobrem
tão depressa, tão mal assim
─ entre ruídos que não sei.






manuel de freitas
[ sic ]
assírio & alvim
2002




30 novembro 2011

philippe soupault / mar vermelho





P.S. em 1982

O Mar Vermelho é um íman que atraiu e reteve os homens que iriam agitar os alicerces do mundo.
Não é que nos obstinemos a determinar o segredo das partidas de Rimbaud nem descobrir necessariamente o seu esquecimento da poesia, mas, mais simples do que isso, saber dos porquês do Mar Vermelho e suas margens fascinarem o viajante infatigável, nunca satisfeito, sempre à procura de novas luzes e novos mistérios.
Foi nessas margens que eu segui os itinerários traçados pelo futuro “negociante”, itinerários que ele finalmente havia preferido — ele que falava em regressar a França para se casar e fazer um filho que seria “engenheiro”.
Tendo procurado as pistas de Rimbaud em Londres e em Chipre, fui a Aden, vi a Arábia, Harar, a Etiópia. Em 1951. Ao explorar o Mar Vermelho, vi-me metamorfoseado. Não foi tanto a descoberta de um universo diferente; nem a solidão; mas uma metempsicose. Je est un autre. O homem que eu acreditava ser já não se parecia comigo. Experiência dolorosa mas irreversível. Inútil lutar contra esta ruptura. O olvido.
A sombra de Rimbaud, imperceptível, era impossível não se ficar obcecado por ela. Sombras. O que o vidente não podia conhecer nem mesmo imaginar.
E no entanto...
Os que encontrei eram também eles vítimas do esquecimento. Mesmo aquele milionário, senhor Besse que, alguns anos depois da partida do negociante havia feito fortuna ao retomar por sua conta os projectos que o ardenense teve de abandonar. Mesmo aqueles fantasmas ou aqueles destroços que erravam de Djibuti a Aden sem espírito de regresso.
A última viagem, a viagem da agonia do carregador de luíses de ouro.
Saberia ele que ia morrer?

Paris, 1982





philippe soupault
mar vermelho
trad. célia henriques e vítor silva tavares
& etc
2000






29 novembro 2011

herberto helder / as palavras







Ficarão para sempre abertas as minhas
salas negras.

Amarrado à noite,
eu canto com um lírio negro sobre a boca.

Com a lepra na boca,
com a lepra nas mãos.

Este mamífero tem sal à volta,
este mineral transpira, a primavera precipita-se.

Com a lepra no coração.

Mais de repente,
só chegar à janela e ver uma paisagem tremendo
de medo.

E uma vida mais lenta
só com uma estrela às costas,
uma tonelada de luz inquieta,
uma estrela respirando como um carneiro
vivo.

Igual a esta espécie de festa dolorosa,
apenas um ramo de cabelos violentos
e o seu odor a pimenta,
no lado escuro
como se canta que as salas vão levantar
o seu voo.

Ficarão para sempre abertas estas mãos exageradas
em dez dedos com sono,
como uma rosa acima do pénis.

Ao cimo do caule de sangue,
essa flor confusa.

Um equilíbrio igual,
só a estrela ao cimo do êxtase.

Só alguma coisa parada no cimo de uma visão
tremente.

A primavera, que eu saiba,
tem o sal como cor imóvel,

Por um lado entra a noite,
assim de súbito negra.

De uma ponta à outra enche-se o espaço
aplainando tábuas.

Rasga-se seda para aprender o ritmo.

Abraço um corpo com as camélias
a arder.

Abertas para sempre as negras partes
de mais uma estação.

Semelhante a isto
as mulheres andam pelas galerias transparentes,
e o palácio queima a noite onde estou
cantando.

É possível ainda cortar ao meio o ofício de ver —
e num lado há espelhos bêbedos,
no outro um cardume ilegível de sons
obscuros.

Sabe-se então pelo silêncio em volta,
sabe-se em volta que são lírios
sonoros.

Passando
as mulheres colhem estes sons irrompentes,
e as mãos ficam negras junto à beleza
insensata.

Elas sorriem depois com um talento
terrível.

Levamos às costas um carneiro palpitante.

Pesa tanto uma estrela
quando se acorda nas salas negras abertas de par em par,
e as mãos agarram um ramo de cabelos dolorosos,
e sobre a boca um lírio em brasa,
branco, branco,
que não nos deixa respirar.

A lepra na boca,
que não nos deixa respirar.

Um ramo de lepra contra o corpo,
como isto então só o movimento de águas obscuras
pelos canais de um canto,
como um palácio de salas negras abertas
para sempre.

Este animal respira como um espelho de pé,
no ar,
no ar.






herberto helder
apresentação do rosto
editora ulisseia
1968